[Sérgio Lavos]
31/12/07
Olímpio
[Sérgio Lavos]
30/12/07
Ao balanço de 2007 (blogues)
Em tempos, quase que fui convencido a entrar num convento. Não para uma visita turística, nem para filmagens demoradas e consequente consagração fílmica mundial. Nada disso. Nem sequer era um convento feminino, apesar de, durante muito tempo, terem pairado no meu espírito umas imagens de freiras a divertirem-se com objectos de dimensões generosas, mas adianto-me ao falar de cinema italiano dos anos 70. Pensando bem, não era um convento. Era um seminário. Mas sobrava-me em rebarbagem hormonal o que faltava em fé, e tudo se conjugou de uma forma perfeita: escapei a uma vida consagrada ao silêncio. Agora, falo, falo, falo, mas não me peçam para falar de Deus nesta quadra, até porque, garanto, a blasfémia de Richard Dawkins (A Desilusão de Deus) concorreu em grande estilo com a de Christopher Hitchens (Deus Não é Grande) no capítulo das ofertas natalícias deste ano. Enfim, paradoxos da modernidade.
Amigos, pois então deixai que eu vos aborreça um pouco mais, com o meu top blogger do ano. O cálculo complicadíssimo que fiz para chegar ao resultado final acabou por valer a pena. É fácil: os meus blogues do ano são quase todos os que tenho linkados na coluna da direita, excepto os seguintes que, por hábito ou desfastio, clico diariamente e portanto nomeio os blogues, mesmo blogues do ano a sério:
A Causa Foi Modificada (imagino o torso masculino que este troféu não mereceria, se o maradona se dignasse vir aqui)
Irmão Lúcia (longe da selecção olímpica, amigo, muito longe, mas nem por isso mais perto do Céu)
Estado Civil (lamento o carácter recíproco e amiguista desta nomeação, mas, ainda assim, obrigado)
In Absentia (independência, rigor, descomprometimento - parece o programa do governo, mas é muito melhor)
As Aranhas (mais um a equivocar-se redondamente com Diespinnen)
Pastoral Portuguesa (ele não merece, pelo menos enquanto não revelar o tortuoso processo que levou ao anagrama de "Rogério Casanova")
Diário (e não me chames amigo, por favor)
Ana de Amsterdam (como não??!! O melhor)
Terapia Metatísica (o prémio póstumo, com um pedido especial de regresso)
A Vida Breve (o esteta mais sacana da blogosfera portuguesa).
[Sérgio Lavos]
29/12/07
O prazer do esquecimento
Sentado no meu cadeirão, lendo (finalmente) Doutor Pasavento, de Enrique Vila-Matas, vejo o céu ir ganhando as cores do fim do dia, e o tempo a ir atrás, desaparecendo para lá dos telhados cinzentos e das chaminés de Inverno, fumegando. A verdade é que não leio, escrevo. E escrevo achando que é cada vez mais reduzido o tempo que temos para deixar o tempo passar, fluir sentindo cada minuto desaparecer. A leitura é um bom cronómetro do tempo interior. Se deixarmos os sentidos levantar voo, melhor ainda; dá para pensar em tudo o que guardamos para pensar depois, dá para que o corpo se vá infiltrando no pensamento, sentir o cheiro da pele, a pulsação, o movimento interno a construir a imobilidade externa: tudo é imóvel, fora do corpo, o tempo é uma larga extensão que a memória percorre.
Li o livro? Acompanhei a história desse médico inverosímil, o seu percurso para o desaparecimento? Se o li, já desapareceu, confirmo a intuição de Blanchot. A história desapareceu do lugar onde estava: aquela hora em que eu, sentado no cadeirão ao fim da tarde, percorri as páginas em sossego.
Uma acumulação inútil sobrepõe-se a tudo. Não sou um pessimista, mas convivo muito bem com o realismo do desaparecimento. Brinco com isso, escrevo ludicamente sobre o assunto, leio autores que desapareceram ou autores que dedicam as suas histórias ao tema. As estantes enchem-se de livros em que eu nunca irei pegar, nem sequer para ler as primeiras linhas. Se o que leio irá desaparecer, salvo milhares de livros do esquecimento - tudo o que não leio continuará a existir.
Alguém me sopra ao ouvido: as histórias que os livros contam nunca desaparecerão; sobreviverão aos escritores, aos homens. Recuso esta ideia antiga. Um mundo sem homens, onde as histórias insistem em viver, guardadas em bibliotecas borgeanas que ninguém poderá visitar. Imagino o ar de uma biblioteca vazia - o pó rarefeito cobrindo os livros, lentamente, até que se deixe de ver as palavras que estão escritas nas capas; até que desapareça o nome dos autores. A biblioteca, contudo, não está lá. No meu cadeirão metafísico, apenas existo eu e o livro que leio - a biblioteca é um esforço da imaginação, portanto mais material do que algo que tenha uma existência real e eu nunca tenha imaginado.
Anualmente, fazem-se balanços do que já se leu. Arruma-se os livros nas tristes prateleiras da memória. Transforma-se o livro em coisa inanimada, sem vida, um breve lapso de tempo preso num irrecuperável fim de tarde, a que nunca poderemos voltar. Classifica-se, cataloga-se, destrói-se a alma do livro.
Leu o texto precedente? Durará o tempo em que eu o escrevo, recuso que algum papel o condene ao esquecimento.
[Sérgio Lavos]
28/12/07
Ao balanço de 2007 (cinema)
Suponho então (diz-me a vozinha no fundo da consciência) que este ano há uma lista dos melhores. A questão é simples: o tempo precisa de barreiras; as listas anuais pelo menos fazem-nos esquecer que mais um ano passou, e vimos mais alguns filmes, e lemos mais alguns livros, e ouvimos mais alguma música nova, e nem por isso ficámos mais sábios ou menos descrentes. Acomodamos o marasmo a um calendário imaginário. Que seja. Um blogue é uma forma de prolongar o tédio; a realidade não basta, é necessário aborrecer os outros com os nossos gostos.
Portanto, aqui vai:
1º: INLAND EMPIRE, David Lynch
2º: Death Proof, Quentin Tarantino
3º: Eastern Promises, David Cronenberg
4º: Zodiac, David Fincher
5º: Control, Anton Corbijn
[Sérgio Lavos]
26/12/07
Ao balanço de 2007 (música rock)
[Sérgio Lavos]
A crítica musical e outros universos
Mas quer-me parecer (acho graça quando alguém escreve quer-me parecer; a pobreza da expressão comove-me) que há aqui um pequeno preconceito que passo a explicar (passo a explicar também é das minhas preferidas): a pop é coisa menor que qualquer um pode perceber e/ou executar/criar. Logo, a escrita sobre pop é menor e idem os que sobre ela escrevem. Estou quase tentado a concordar consigo (repare que já lhe atribuí esta ordem de pensamento, mesmo que não seja a sua; perdoe-me o maniqueísmo), assinalando como excepção eu próprio, visto gostar muito de mim.
A partir daí, grosso modo, a gente escreve tudo da mesma forma e somos, vaga e geralmente, uns patetas - ou escrevemos patetices. (Gosto da parte em que dizem que não temos referências. Aprecio sobremaneria quando indivíduos que não me conhecem me reduzem intelectualmente sem saberem se estudei engenharia ou fotografia, se leio Heidegger ou livros de culinária. Não leio Heidegger, claro - acho-o um pateta.)
Ora, não augurando, da parte que me toca, a escrever, em jornais, mais que patetices (pois, grosso modo, essa é condição essencial para ser publicado - um bom texto nunca foi, nunca será publicado num jornal, e qualquer pessoa que tenha estudado, por exemplo, filosofia, sabe isso), acho caricato que, digamos, um texto de Manuel Gusmão não seja considerado uma verborreia inenarrável de referencialidade abusiva exclusivamente centrada em maus poetas e escrita apenas e só para gáudio onanístico de um pequeno salão de medíocres, mas um texto bem escrito sobre uma canção não possa ser algo respeitável. (Eu pessoalmente não quero que seja respeitável; por mim tornava os textos - e o jornal - desrespeitador; mas isso são opções.) Da mesma forma não vejo o mesmo furor em esventrar a prosápia medíocre de um Vasco Correia Guedes, ou o péssimo - péssimo - português da maior parte dos nossos cronistas, que me abstenho de mencionar (doem-me os dedos se premir certa sequência de teclas).
É mais difícil, percebe, porque essa gente (termo que roubo ao bom Correia Guedes, Eça de quinta com amargura no lugar do cérebro) escreve sobre assuntos "respeitáveis". E, meu Deus, se o portuguesinho gosta de respeitabilidade e seriedade. Essa gente sabe (acha o Rui) de CINEMA, essa gente sabe de LITERATURA. Essa gente por vezes, mas só por vezes, até ouve pop, mas quando ouve não cai nessa armadilha dos pobres de a engrandecer ou tratar com respeito. Não, essa gente não cai nessa patetice porque essa gente LÊ (ao contrário destes moços, trabalhadores indiferenceiados resgatados à estiva).
Duvido, por exemplo, que o Rui Manuel ache os seus textos uma patetice, ou pomposos, ou pedantes. Chame-lhe intuição. Eu não lhe noto capacidade para tratar a literatura por tu, mas antes por sim minnha senhora como vai.(E no entanto, consta que a senhora é devassa.) Nada disto o diminui, note-se; apenas que padece do mesmo mal (ou ainda pior) que aponta; não tem, é certo a obrigação de ser claro. Também me parece que dando de barato que a pop é sempre a mesma coisa (como um romance), seria aborrecido ler o mesmo texto, apenas com uma ficha técnica diferente.
Enfim, tropeço na minha (inexistente, como decerto já notou) argumentação.
Quero com isto dizer (outra expressão que merece a minha comoção) que o assunto define o olhar dos pretendentes a intelectuais sobre os textos sobre o assunto. Posso por outro lado (hipótese a considerar) estar ressabiado.
Termino dizendo que não me leve a mal tanto impropério. Nas minhas horas menos problemáticas (tem dias que a gordura no fogão me conduz a um fugaz abismo existencial) gosto de o ler.
Desejo-lhe bons discos, já que do resto não percebo puto(excepto BD, é bom de ver, os moços da pop gostam sempre de BD).
Ouço o disco dos National e saudinha.
João Bonifácio
[Sérgio Lavos]
22/12/07
Pepe Carvalho
Cada refeição começa-se a preparar com a antecedência minuciosa de um gourmet - a escolha dos ingredientes é, evidente, fundamental. A textura, o cheiro, a aparência, o toque, a leveza; e, sobretudo, a confiança nos habituais fornecedores - isto de cozinhar assemelha-se em muito a consumir uma droga; a confiança no dealer é essencial. Depois, as mãos sobre a comida em bruto, a sua dança, a escolha da ordem com que os legumes, peixe, a carne, são cortados e colocados dentro dos tachos. A descrição das lâminas a cortar a polpa dos frutos - o presunto servido antes, os queijos, o vinho. O amor ao detalhe é tão grande que ultrapassa largamente qualquer outra passagem dos romances. Cozinhar é uma volúpia que poucos descobriram - e quem realmente gosta de comer acaba por querer, mais cedo ou mais tarde, controlar todo o processo que leva ao prazer.
Montálban provoca este desejo de comer - a literatura para o estômago de que falava Julien Gracq, no seu sentido mais literal e benigno. Um bon-vivant, esse velho e estafado cliché, terá de necessariamente amar a vida ao ponto de a achar uma desilusão. Um detective mergulhado em caos e corrupção é o derradeiro hedonista - ainda bem que a ficção se aproxima mais da vida mental do escritor do que da realidade que retrata.
[Sérgio Lavos]
20/12/07
Coppola
Vale a pena, a surpresa e o calor podem surgir a cada frase. Na reportagem de hoje, na revista Visão, publicada originalmente na Time, a determinada altura é-nos dito que uma amiga de adolescência ofereceu a Coppola o livro de Kerouac, Pela Estrada Fora. O homem vive. E suscita em nós a inveja. Tudo bem; podíamos, de alguma maneira estranha, conseguir aplacar a inveja por não termos conseguido criar Apocalypse Now ou, vamos lá, o primeiro e o terceiro Padrinhos. Se o conhecêssemos, teríamos de reprimir a vontade de o esmurrar e substituí-la (com dificuldade) por uma sentida vénia - é assim que se deve proceder perante sua Eminência. Mas haver no passado uma enamorada (termo que nunca devia ter caído em desuso) que tem o bom-gosto de oferecer o livro de Kerouac, isso parece-me imperdoável. Inveja, inveja. E que bom sonharmos que aquela miúda de olhos verdes que, por um reflexo caprichoso de sombra, parecia olhar para nós enquanto jogávamos basquetebol no recreio, poderia um dia vencer a timidez (a nossa, claro, a nossa) e dirigir-se-nos portando um exemplar de Agulha no Palheiro nas mãos (a velha edição da Livros de Brasil, evidente). O que me aconteceu de mais parecido com este devaneio, o empréstimo de O Estrangeiro por uma colega loura por quem eu nutria pouco mais do que uma vaga simpatia (se bem que...), descambou em desastre completo. A começar pelo facto de eu achar que o interesse dela era puramente intelectual - essa coisa de debater pontos de vista sobre o livro, discutir ideias, trocar opiniões em vez de fluidos corporais; e a acabar no facto do livro ter desaparecido para sempre num vórtice que se localizava exactamente por trás do móvel encostado à cama onde dormia, um lugar tão inacessível como o é o paraíso para os grandes capitalistas e os raquíticos ignorantes. Nunca tive coragem de confessar o pequeno incidente; e ela nunca teve necessidade de me perguntar pelo livro (era loura, era virgem - só podia -, imagino o rubor que sentia de cada vez que pensava na ideia).
Coppola teve uma mulher que lhe ofereceu o livro de Kerouac e tornou-se no que se tornou. Imaginem o que me teria acontecido se alguma vez aquela morena de olhos verdes tivesse ganho coragem para se aproximar de mim com o livro de Salinger nas mãos.
(Ah, e Coppola tem a filha que tem; há homens que bem poderiam repartir a sorte que lhes calha com o resto de nós.)
[Sérgio Lavos]
Michel Gondry
Há nos videos de Michel Gondry uma vontade de regresso que toca qualquer um agora na casa dos 30, ou prestes a entrar nela. Pode não haver uma identificação completa com os fétiches infantis (nem sempre há paciência para os peluches "qu'iduchos" perseguindo Bjork), mas a verdade é que Gondry consegue mostrar uma criatividade assombrosa na perseguição de uma quimera: um estado de espírito entre sonho e memória de infância (há quem afirme que um e outra não estão assim tão distantes). Nas longas-metragens, o realizador francês conseguiu prolongar o imaginário dos vídeos, consubstanciado na excelente parceria com a imaginação delirante do argumentista Charlie Kaufman, em Eternal Sunshine of the Spotless Mind. Desde a praia de infância até ao mundo visto à escala de uma criança, são várias as imagens marcantes do filme.
As diferenças de escala, a distância entre mundo sonhado e mundo real, a natureza como refúgio das agressões da cidade, as metamorfoses, de criança a adulto, de um objecto noutro, as coreografias de aparência caótica desenhando uma ordem concreta, tudo temas que se reproduzem de video para video. Como neste, um dos meus preferidos, Dead Leaves and the Dirty Ground, dos White Stripes. Ou de como um video pode introduzir uma inovação ao nível da representação de uma ideia cinematográfica. Dois tempos que coincidem, o passado projectado no presente (ou dois presentes existindo simultaneamente), numa solução técnica original que consegue criar uma imagem cristal (duas camadas de tempo sobrepostas) deleuziana. Grande cinema no pequeno écrã: e a música ao nível das imagens.
[Sérgio Lavos]
13/12/07
Um hífen
Começou bem, com pinta de blogue decadentista com pretensões a qualquer coisa que nunca se veio a tornar (não explico). Prossegui, seguindo as indicações do blogger - todos os passos, o nome, que não sei já como surgiu mas que me pareceu evidente, o nome que assina, e... o url. Não aceitou à primeira a proposta: que existia um qualquer auto-retrato. A banalidade do título tinha o seu preço. Adiante. Inverti a ordem das coisas. E de algum modo, sempre que tenho de digitar retrato-auto, lembro-me do mecânico bate-chapas onde o meu pai levava o carro - a palavra bate-chapas espichada na parede de cimento da oficina, a tinta a escorrer por ali abaixo para sempre. Há fardos mais pesados.
O problema é mesmo a ortografia. Em tempos, a questão colocou-se de forma muito simples: deveria escrever Auto-Retrato, a forma correcta (como isto é um título, vá lá, uma espécie de título, as duas palavras que compõem o termo começam com maiúsculas) ou Auto-retrato, a grafia adoptada por alguns blogues que linkaram este? Como mudei durante algum tempo, acabei por deixar ficar assim como está, até porque aprecio mais a anglicização do termo, a partir de self-portrait (e que me desculpe o André, principalmente ele, que jogou as suas cartas a favor da primeira versão).
Muito tempo depois, como numa história infantil, tenho diversões versões do nome grafadas pela blogosfera fora. Auto-retrato, Auto-Retrato, simples; mas também retrato-auto ou Retrato-Auto, ou Retrato-auto(o que eu aprecio bastante, tendo a conta a tal história do bate-chapas), auto retrato e Auto retrato e Auto Retrato, todos sem hífen, talvez para poupar a maçada de pensar em qual será a grafia correcta. Mas o meu preferido, porque simplifica (e de que maneira) as coisas, tem de ser o do Rogério Casanova. Ora bem, a sua fantástica ginástica linguística chegou a um hermético O Invisual Grego às Avessas. Confesso que levei tempo (pr'aí... hum... três minutos) a descodificar o anagrama, mas haverá melhor definição do que tem sido feito neste blogue, desde o início?
Talvez fosse boa ideia fazer um acordo ortográfico com todos os blogues que hiperligam o auto-retrato: e que tal mudarem o nome deste blogue, na barra de links, para O Invisual Grego às Avessas?
(É claro que bati, de longe, o meu recorde de auto-linkagem. À consideração da Carla, para a série metabloggers do it better.)
[Sérgio Lavos]
12/12/07
Uma história
Tínhamos de escrever sobre qualquer coisa - um ensaio, um conto, um daqueles exercícios um pouco idiotas de escrita criativa que os professores de português são obrigados a fazer de vez em quando. Não me recordo do texto que escrevi (terá sido uma longa e chata digressão sobre o sistema que nos obrigava a fazer a PGA ou um qualquer conto de uma página ao estilo Robert Heinlein, um dos dois, um dos dois, assim tem sido a minha vida). Lembro-me de forma bastante clara da extravagância sobre o nada que esse colega inventou. A professora delirou. (Alguém - algo? - me sopra ao ouvido - "todos os textos são sobre nada" - mando calar a vozinha: "não sabe que isso é um cliché?"). A professora leu o texto alto para a turma (e não falo de crianças, estaria para aí no 10º ano), como bom exemplo da criatividade juvenil. Curioso era o facto de esse colega ser um aluno medíocre, bom de bola (pé esquerdo assassino, marcava cantos directos em jogos dos distritais de Leiria e tinha um toque de bola que fazia lembrar o Balakov, gingar e passar, sempre a vinte à hora). Bom também no capítulo mulheres. Para que queria ele então saber escrever? Estudar? Escrever é para nerd de primeira fila (alto, alto, que nessa altura eu já andava pelas últimas). Que benefício lhe poderia trazer a escrita? Tinha quantas namoradas quisesse, jogava bem à bola, que lhe interessavam os livros? A verdade é que a história que ele inventou foi uma desculpa para a preguiça. Encostado pela obrigação de mostrar algo, naquele momento, naquela aula, inventou, criou. Não é para todos. Aproveitou o aperto? Não sei, não o vejo há mais ou menos 15 anos, e a última vez que tive notícias dele, estava bem na vida, casado e tal, essas coisas a que todos chegam. O seu lampejo foi breve, ele nem deve ter ligado. Ah, e também não se tornou futebolista. Julgo que a carreira se terá perdido entre a preguiça e a vontade de viver encostado à vida. Histórias.
Conclusão? Para quê insistir então, se a felicidade está tão perto?
[Sérgio Lavos]
09/12/07
O mal dos blogues (3)
Há duas fases principais no processo de escrita - o impulso inicial, que leva à escrita nem que seja para ser apagada cinco minutos depois, e a vontade posterior de divulgar o que se escreveu - há muito, quase tudo, de ego nesta segunda fase. Os blogues permitem eliminar uma série de problemas: a avaliação por parte do outro, ainda antes da publicação; a reescrita séria e empenhada daquilo que se escreve (a maior parte dos bloggers escreve directamente para ser publicado, sem passar por corrector ortográfico); o arrependimento (apesar da possibilidade de se poder apagar depois). Publicar num blogue elimina os escolhos com que um texto se depara. Mas a verdade é que são esses escolhos que permitem a solução dos problemas do texto. Por isso, o texto publicado em blogue é, à partida, mais fraco do que aquele que chega à fase de impressão. Para além disso, existe uma diferença de esforço entre quem escreve para uma publicação periódica e quem escreve pensando num livro. Uma escala crescente de exigência: blogue - revistas e jornais - livros.
É claro que um mau escritor é-o em qualquer suporte. Daí o lugar-comum que vemos escrito por muitos bloggers - de que existem muitos textos blogosféricos melhores do que muita coisa que se publica em papel. Ora, isso não diz nada acerca de coisa nenhuma; nem sobre os textos virtuais nem sobre a qualidade média da literatura publicada em livro. Mas acaba por ser mais imediato, mais fácil, e portanto menos exigente, a publicação em blogue. Por enquanto.
A evolução natural deste estado de coisas leva a duas situações: o progressivo abandono, por parte do escritor, do suporte livro; a crescente tendência para os conteúdos criativos da Internet serem pagos, seja directamente, pelos donos dos sítios onde o escritor publica, seja indirectamente, através da publicidade que aparece nos blogues. É claro que os puristas irão reclamar - quem está por cá desde o início acha que o diário virtual deve continuar a ser o exercício jaculatório que até agora tem sido. Este modo de pensar não ajuda ao respeito pelo texto: uma rede de blogues onde o leitor tivesse de pagar para aceder aos conteúdos não significa que os blogues que nascem como nódulo de uma rede social desaparecessem. Mas os melhores blogues passariam a ser valorizados - e o trabalho intelectual seria compensado.
(1) e (2)
[Sérgio Lavos]
08/12/07
Ler os outros
Que querem, que fale das polémicas de antigamente - a Questão Coimbrã, o manifesto anti-Dantas, as diversas diatribes em que Luiz Pacheco se viu envolvido? A que distância estamos - em estatura, moral ou intelectual, os polemistas de agora são como anões prostrados diante de montanhas.
Polémicas políticas em blogues? Nem sou da velha escola, comecei a escrever há tempo insuficiente tanto para conhecer tudo como para merecer o respeito de quem lê. Os galões, nos blogues como na vida, são ostentados à mínima veleidade de quem se arrisca.
Tenho uma opinião sobre a esterilidade dos textos produzidos? Uma opinião vale o que vale - a opinião do que grita acaba sempre por se sobrepujar à daquele que apenas a murmura. A palavra escrita apenas é lei quando a inscrevem no código civil. Tudo o mais são casualidades do tempo.
Posso ler durante horas textos que conduzem a nada, becos sem saída, retóricos ou infrutíferos, labirintos de figuras de estilo que alojam no centro um gigantesco buraco negro (perdoem-me a contradição cientificamente errada). Horas que poderiam ser aproveitadas para outras frivolidades mais enriquecedoras - o problema é apenas meu, mas a psicose abunda nos blogues. Basta saber que as maiores audiências são atingidas por blogues de pendor ou político ou sexual. A política será o viagra de um país deprimido?
Ler com tempo, acontece muito pouco em blogues. A meia-dúzia de textos diários que se aproveita vale a pena. Mas a mecânica das coisas é cansativa: ler um ecrã certamente não se aproxima da sensação de ter um livro aberto ao artesanato da interpretação.
A humildade, infelizmente, não surge suficientemente cedo na vida. Ler como quem não espera nada, escrever como se apagasse tudo, eis o possível engodo.
[Sérgio Lavos]
06/12/07
Inland Empire DVD
"Se gostou ou não gostou, é irrelevante, o importante é ter estado aqui" afirma-se no email informativo citando Luís Miguel Oliveira (para o Público). Sublinho o carácter irrelevante do gosto estético perante a reconhecida qualidade artística deste filme: a palavra do crítico vale por todas as opiniões anónimas que tenham sido escritas.
[Susana Viegas]
05/12/07
Eastern Promises
Mas a violência do filme não é verosímil. Pode ser realista, no sentido em que o realizador encena a realidade de forma convincente. Mas a violência não é ilustrativa, como o é num docudrama como o recente (e ainda não estreado em Portugal) Tropa de Elite, pretendendo representar uma realidade, o ambiente nas favelas no Rio de Janeiro, fazendo uma tangente ao real, recorrendo aos truques habituais: a câmara aos solavancos, o estilo jornalístico, a caução da verdade com o genérico inicial afirmando que o filme foi baseado numa história verdadeira.
Cronenberg não está interessado em histórias verdadeiras. O seu cinema é um cinema de ideias (sem ser programático). A violência não tem qualquer gratuitidade, pertence ao próprio esquema do filme. Os rituais de purificação das personagens permitem que o espectador perceba o impacto que a violência pode ter sobre o corpo. O realismo de Cronenberg é, portanto, da ordem da imaginação cinematográfica, da fábula; daí a artificialidade dos inserts, planos muito curtos, em close-up, da violência a ter lugar. Como em Eisenstein, a montagem serve para vincar no espectador a excepcionalidade da situação retratada. Michael Haneke, em Caché, recorre precisamente ao mesmo artifício. Em Eastern Promises, a morte do mafioso russo pelo adolescente curdo surge de forma imprevista; o golpe da navalha no pescoço é um golpe na consciência do espectador, transporta-o de imediato para território desconhecido. O choque é brutal, como acontece no filme de Haneke, na cena do suicídio do imigrante argelino: e quem vê é puxado sem remédio para dentro da cena. Ora, a realidade não é assim. Não há inserts no dia-a-dia (e Tropa de Elite não tem efeitos deste tipo). Filmes assim conseguem criar uma impressão de realidade necessariamente distante da realidade de onde partem.
[Sérgio Lavos]
03/12/07
Livros
(Obrigado ao Armando pela dica)
[Sérgio Lavos]
01/12/07
A expiação
[Susana Viegas]
28/11/07
Don't Come Knocking
[Susana Viegas]
27/11/07
Rua de sentido único
[Sérgio Lavos]
A escala das coisas
[Sérgio Lavos]
22/11/07
Ian Curtis: um tributo
Primeiro, existirá algum juízo estético que seja virgem, separado de pré-conceitos e da experiência de quem escreve? Esqueçam, era apenas retórica.
Eu fui ver Control porque sim, os Joy Division, e em especial Ian Curtis foram decisivos no meu percurso pessoal. Eu, eu, eu. Não há capacidade, nem vontade, para escapar à aleatoriedade das escolhas. Se o Ian Curtis retratado por Anton Corbijn fosse próximo daquele que eu conhecia (imaginava), gostaria do filme; se não, não gostaria. Aconteceu o mesmo com Last Days - o Kurt Cobain tinha perdido, para mim, a aura que se criara em vida. Porque a criação de um mito tinha ficado irremedivelmente ligada à adolescência - e a idade adulta obriga-nos a matar os nossos ídolos. Kurt Cobain morreu muitos anos depois de ter colocado o cano da espingarda na boca - mas morreu. A diferença está na distância em relação ao tempo em que Curtis viveu. Nunca precisei de o matar porque nunca foi o meu ídolo. O que eu admiro é apenas a arte, a poesia e a música criada em conjunto com os outros Joy Division (mais os outros, parece, e a prova é a continuação como New Order).
Li alguns textos de gente que nem tinha uma especial admiração pela figura. Ajudam a distanciarmo-nos do impacto do realismo que perpassa do filme. Contudo, sabemos que o realismo é uma falsa questão. A intenção de Corbijn é, acima de tudo, esconjurar uma obsessão. Ele sim, teve de matar o seu ídolo (confessa-o em entrevistas). A frieza era improvável, a reflexão irónica impossível (ao contrário do que acontece em Last Days). O exorcismo envolve sempre uma carga emocional intransponível. As dificuldades de Corbijn passavam sobretudo por transmitir a emoção de uma memória em forma de imagens em movimento (as fotografias encenavam uma realidade, criavam o mito - e isso suspeito que Corbijn não queria). O método não se fundou numa recusa do percurso conjunto de Corbijn e Ian Curtis (reforço o nome do músico, o filme é sobre ele, a banda é mais uma peça do enigma, o enigma que cada Homem é sempre); a imagética está lá - o preto e branco urbano-depressivo, a gabardine, os cigarros, as ruas cinzentas de Manchester e Macclesfield, a poesia em voz-off (sim, sabemos que as letras de Curtis eram poesia), a loucura controlada da Factory. Mas o filme consegue elevar-se acima do poster de quarto de adolescente - há vida, sangue e tripas, choro e traição e amor. E acima, de tudo, confusão e perda. Irrealidade, alienação do mundo. Ian Curtis era isto? Sabemos que sim, são essas as nossas expectativas. Corbijn também conhecia as nossas expectativas. E com isso em mente, esforçou-se por destacar o homem da imagem que o mundo tem dele. O facto de ter decidido adaptar o livro de Deborah Curtis, a viúva atraiçoada, foi o clique que lhe conferiu a credibilidade necessária; haverá fãs que não lhe perdoaram. Fez muito bem, ninguém conhecia melhor Curtis do que a sua namorada de adolescência.
Não falei de cinema. Mas existem pormenores soberbos, claro, toda a gente sabe quais são: o traveling inicial; a simultaneidade de acontecimentos nos planos de conjunto (quando Ian e Deborah se conhecem, a entrevista com Annick); a paisagem devastada por onde Curtis passeia o seu desespero, a incrível sequência do suicídio, tensa, tensa até ao limite do insuportável, porque sabemos, sabemos, o que vai acontecer, e porque Samantha Morton é uma actriz fenomenal, e está muito bem acompanhada por um Sam Riley em esforço camaleónico de interpretação. O plano final, o fumo sobrepondo-se ao fundo natural, ali tão perto, tão perto do cimento cinzento do subúrbio. Factos que definem o filme, e que compensam um ou outro cliché a que Corbijn não consegue (ou não pode) fugir.
O filme consegue superar as intenções iniciais: é um biopic, mas tem uma ideia de cinema. As soluções encontradas não são circunstanciais, intensificam as ideias do autor. Sem referências, com pouca cinefilia, resta saber se Corbijn consegue criar uma marca de autor, como criou nos vídeos e nas fotografias. Por enquanto, Control chega. E sobra. Faz juz à singularidade grandiosa de Ian Curtis.
[Sérgio Lavos]
O Silêncio dos Livros
Steiner tem um estilo de escrita reconhecível, no qual avulta a profunda erudição e a capacidade de criar ligações entre ideias e autores. A este conhecimento enciclopédico, Steiner alia um entusiasmo sempre disponível, incapaz de deixar de admirar intensamente as obras dos grandes génios nas artes e na ciência - e para ele, a ciência é o ramo que nunca se devia ter separado da filosofia (foi essa uma das principais ideias da conferência que deu há umas semanas na Gulbenkian). Usa os nomes dos seus génios pessoais como fétiches ou mnemónica para as suas linhas de pensamento - Homero, Platão, Aristóteles, Shakespeare, Milton, Mozart, Turner. É um classicista, certo, e desde sempre foi - o ensaio que o tornou conhecido, No Castelo do Barba Azul, é uma resposta ao texto de Eliot, Notas para a Definição de Cultura, modernista nos seus propósitos, quando não no conteúdo (mas aí, a verdade é que Eliot já não tinha o optimismo da juventude quando o escreveu, em 1948). Nunca foi moderno, na sua intransigência na defesa de um gosto que recusa a modernidade - repetiu na conferência uma frase chave: "Ao lermos a Odisseia, acharemos sempre que é mais moderna que o Ulisses, de Joyce". Apesar deste conservadorismo estético, ou em consequência dele, digamos, Steiner tornou-se um autor popular fora dos círculos académicos - imagino que atraindo a inveja dos especialistas das diversas áreas que toca - a filosofia política, a estética, a literatura. De resto, o seu combate à especialização de saberes no mundo actual acaba por ser uma defesa da sua própria obra e sentido de vida. Não surpreende.
A ameaça do ritmo do mundo actual aos livros é um falso problema. Havendo mais oferta, há mais possibilidade de escolha - mas as obras que definem uma existência continuam a poder ser lidas - há, de certeza, neste momento mais traduções da Odisseia disponíveis do que há cinquenta anos. Ou há trezentos. Steiner diz que dificilmente aparecerá outro Shakespeare - mas apenas há um por milénio; esperemos mais 500 anos. Enquanto vem e não vem, podemos ir lendo os autores que não são génios (é a centelha de Deus, acessível a poucos), recolhendo nos livros a maior dádiva de todas: a possibilidade de se escolher aquilo em que se acredita.
(O Silêncio dos Livros, de George Steiner, com um texto adicional pouco interessante de Michel Crépu, é editado pela Gradiva.)
Texto publicado no Arte de Ler
[Sérgio Lavos]
19/11/07
Bem controlado
Sem espaço para a criatividade que deveria ser o trabalho cinematográfico, sem imaginação no trabalho de argumento, é decepcionante esta recriação de uma vida tão irrepetível como a de Ian Curtis (e no entanto tão comum a tantos anónimos) porque não mostra uma visão pessoal sobre Ian. Se não fosse pela música dos Joy Division, iríamos ver um filme cinzento e angustiante, sobre um homem depressivo, apático, com uma vida cinzenta e monótona? Ainda que não houvesse interesse pessoal pelo artista, um bom realizador conseguiria criar uma personagem autónoma e não uma recriação do que todos já sabemos ter sido a vida de Ian Curtis.
Não fosse sobre Ian Curtis, dar-nos-íamos ao trabalho de ir ver Control? Não me parece porque, cinematograficamente, é um filme menor, ou, pelo menos, era de esperar mais de Anton Corbijn, mais do que a encenação das imagens que captou dos verdadeiros Joy Division enquanto fotógrafo; era de esperar que Corbijn fosse tão bom realizador quanto fotógrafo. O facto de ser uma filme sobre Ian Curtis é por si um tema redutor e, por isso, cabe à genialidade do realizador (não é o caso) criar a sua personagem ainda que só de raspão apanhe o original, ainda que só na diagonal diga respeito à vida dessa pessoa. Neste aspecto, um bom exemplo é Last Days de Gus Van Sant, onde Blake é uma personagem fictícia, é uma criação cinematográfica de Van Sant e não uma cópia de Kurt Cobain. Isto para dizer que um docudrama não deveria ser uma mumificação de alguém que se admira mas antes uma interpretação que faça diferença.
[Susana Viegas]
16/11/07
15/11/07
NADA 10
Novo número para a revista NADA:
. A geração de 60/70, as metamorfoses da política e os dilemas da tecnociência, entrevista a JOSÉ LUÍS GARCIA por Helena Jerónimo e João Urbano
. Intersecções, confrontações, apropriações, incorporações, comparações, relações: A arte biológica vista do laboratório, LUÍS GRAÇA
. E o elevador irrompeu em direcção ao céu,atravessando as nuvens, rumo ao infinito…, SUSANA VENTURA
. Irene Izes, JOÃO OLIVEIRA
. Incontornável, A DASILVA O
. Estudos Culturais e Formas de Arte Pós-Moderna:Os Novos Movimentos Sociais?, BYRON KALDIS
. A Construcção Política da Esperança Colectiva, DANIEL INNERARITY
. O futuro começa agora, entrevista a RUDOLF BANNASCH por Paulo Urbano e João Urbano
. A Máquina Desejante de João César Monteiro SUSANA VIEGAS
. Birland & Balde de FACS, ADAM ZARETSKY
. Reflexões SILVA CARVALHO
. O Homem sem Bagagem JOÃO URBANO
[Susana]
13/11/07
Contra o fanatismo
No fim, a maior impossibilidade que o ensaio de Oz denota é a da sua voz se fazer ouvir por entre a poeira levantada pelos radicais de ambos os lados. A lucidez de um homem só de nada vale perante a loucura de muitos. E essa é a maior derrota para os dois povos.
(O livro é editado pelo Público)
(Texto antes publicado no Arte de Ler)
[Sérgio Lavos]
11/11/07
A nudez dos mortos
Mailer morreu, mas nem por isso as manchas da sua vida foram apagadas. Enfrentem isso, quem gosta dele. Eu não ligo, e apenas me lembro disso quando a veia tablóide de gente mais ou menos séria nas suas intenções sobressai de modo evidente. O escritor que morreu era misógino, violento, virulento. E, ah, era liberal - o que contradiz a ideia de superioridade moral da esquerda. Mailer esfaqueou uma das seis mulheres com quem foi casado. O horror para as feministas - alguns livros queimados à mistura. A obra, que não morreu - por enquanto - também era tudo isto. Mulheres (no geral) e homens (de estômago mais sensível), façam um favor aos vossos escrúpulos - não o leiam. Ou melhor, leiam-no - seria doce a vingança depois do túmulo (e escrevo isto sem calafrios).
Filipe Guerra ensaiou uma interessante aproximação ao problema, depois de uma revelação recente, a prova pública de que Pepetela e Luandino Vieira colaboraram activamente numa qualquer purga de contornos estalinistas, algures em Angola. Ignoro a escrita de Pepetela. Confesso que fiquei desapontado com Luandino Vieira. Mas não por razões de gosto. Talvez pela estética da figura, pela aura mítica do escritor recluso que recusa os louros que o mundo lhe oferece. Enquanto imaginei Luandino recusando o prémio como consequência do apelo da solidão, de uma entrega ao esquecimento, a sua obra pareceu-me prenhe de um apelo irresistível. Li mais do que conhecia, escrevi sobre isso, achei na atitude do escritor toda a motivação para cultivar um gosto pela obra. Resumindo, antes de gostar do que Luandino escreve, gostei da figura que imaginei que ele fosse. Um homem bom? Não é essa a questão, parecia-me um homem verdadeiro. E agora, o arrepio? Filipe Guerra acerta: não porque Luandino seja um crápula (como o era Céline, ou Ezra Pound), um falso ingénuo (como Sartre ou Saramago) ou simplesmente alguém com o coração no sítio certo mas as mãos no sítio errado (como Mailer ou Hemingway ou Roth). A razão é simples: Luandino foi um funcionário ao serviço da barbárie, e isso torna-o cúmplice de gente sem imaginação, sem desejo de liberdade. E a obra? Admiro-a exactamente com a mesma intensidade que admirava antes.
Temos os nossos mitos, as figuras que julgamos ser tão perfeitas como a obra que criam. Porquê? Procuramos na arte o reconhecimento de nós próprios, enquanto parte de um grupo, enquanto essência real de uma ideia: ser humano. Projectamos nos artistas que amamos aquilo que gostaríamos de ser, o arquétipo. Mas eles, sabemos bem, insistem em desiludir-nos. Persistem em ser humanos. Como nós. Ao contrário da obra produzida - essa é que pode aspirar a ser perfeita e imortal.
[Sérgio Lavos]
10/11/07
House e o tabaco
Não terei lido, até agora, melhor texto sobre House, M.D. Onde? No Ipsílon, ontem, escrito por Francisco Luís Parreira numa recensão a um desses sub-produtos de merchandising associados a uma série de sucesso. Curiosamente, no mesmo dia em que, no mesmo jornal, Vasco Pulido Valente voltava a investir contra o fascismo sanitário que transverte as sociedades democráticas actuais - outra maneira de caracterizar a campanha anti-tabágica que vai alastrando pelo mundo. Um excerto:
(...)Imagino quem, de facto, quererá este mundo sufocante e asséptico, obcecado com a "saúde"? Gente, como é óbvio, com pouca imaginação. Por mais forte que seja o culto e a idolatria do corpo, a velhice chega. E, com ela, a irrelevância, a obsolescência, a solidão. Esta sociedade de velhos trata muito mal os velhos. A ideia (e a propaganda) de uma adptação contínua é uma grande e cruel mentira. Os velhos são um embaraço. Um peso que se atura, que se arruma num canto, que se mete num "lar". Setenta anos de esforço para durar acabam num limbo à margem da verdadeira vida, quando não acabam no sofrimento e na miséria. O Ocidente está a criar um inferno. Por bondade, claro.
É interessante que, ao mesmo tempo que recusamos a morte e a velhice como processos intrínsecos ao acto de viver, e tornamos a vida um simples adiar da morte, nos entusiasmemos por séries como House, que explicitamente defende valores contrários aos dominantes. Gostamos do politicamente incorrecto apenas em forma de ficção? Procuramos uma fuga ao "real", construindo simulacros de vida para tornar suportável o insuportável. Fugimos.
[Sérgio Lavos]
09/11/07
Animais domésticos
[Sérgio Lavos]
07/11/07
No I in the threesome
[Susana]
05/11/07
O local de filmagens
Stalker é um filme de Andrei Tarkovsky de 1979. O filme pode ser dividido segundo dois critérios visuais: o primeiro, em tons sépia (porque o sépia suja todas as imagens, cobre de lama paredes, rostos, roupas) com planos da cidade onde Stalker vive; e o segundo, num deslumbrante poema às intensidades da natureza, agora já na interdita Zona. A Zona é um lugar contaminado, poluído pelos escombros da abandonada fábrica, o óleo é ainda visível na superfície da água ainda que peixes insistam em lá viver. Na Zona, a água inunda o terreno, ensopa a terra, predominando ainda na chuva, no rio, na cascata, no interior das casas, sempre a água, translúcida ainda que poluída. É um hábito de Stalker levar pessoas para a Zona a troco de algum dinheiro. Desta feita, conduz o Professor (ou a Ciência) e o Escritor (ou a Arte) para a Zona com o objectivo de alcançarem a sala da esperança onde os desejos se tornam realidade e de onde quase ninguém regressa.
Qual a origem do misticismo do lugar? No início do filme fala-se de um meteorito que caíra e destruíra a vila mas esse contacto alienígena, justificaria os processos de auto-conhecimento pelos quais os seus visitantes involuntariamente passam? A perigosidade de entrar na Zona é imensa e incalculável: a todo o instante mudam as armadilhas, muda a fisionomia do terreno, perigosidade avivada pelo facto de não se poder andar pelo caminho mais curto nem se poder voltar atrás. É verdade que há indícios do terreno mudar, mas também há indícios de tudo ser criação abusiva de Stalker, o único que conhece as regras da Zona. As outras personagens também duvidam e perguntam a Stalker como é que ele sabe que ali se podem realizar os desejos. Ele simplesmente sabe. A filmagem decorreu em parte na Estónia, perto de Tallin, num campo radioactivo, partículas químicas que terão alimentado a ideia de lugar como organismo vivo – que se desloca, que deseja, que engana, que respira e que dialoga com os humanos.
Cada plano, nasce no local da filmagem e não na mesa de montagem porque a montagem, a reorganização artificial dos planos fixos, sem duração, não é fiel à matéria-prima do cinema: o tempo. Por este motivo, são poucos e longos os planos nos filmes de Tarkovsky, porque, idealmente, o tempo seria o único agente no cinema tornando o realizador o canal privilegiado de passagem dessa intensidade, intermediário que preserva a pureza da duração registada no local, a pressão da passagem do tempo. Stalker pertence ao lugar tanto como a aranha que lhe passa nos dedos. Na impossibilidade de mostrar a pressão do tempo em imagens fixas do filme, opto por mostrar em movimento porque só enquanto estão em movimento, estas imagens existem.
Os 5 filmes do dia 5
. Johnny Guitar Nicholas Ray 1954
. Les quatre cents coups François Truffaut 1959
. Naked Mike Leigh 1993
. Lost highway David Lynch 1997
. Code inconnu Michael Haneke 2000.
e passo ao Harry , Domingos, Armando , Filigraana e H.
[Susana Viegas]
04/11/07
Interpol
[Sérgio Lavos]
03/11/07
Dylan/Blanchett
Teríamos, falando de Haynes, de passar pelo camp. Ele fez o mesmo em Velvet Goldmine, é esse o seu programa - mais acentuadamente do que Gus van Sant, por exemplo, que se limita a filmar adolescentes de modo mais ou menso discreto - em Elephant como agora em Paranoid Park. Senti-me ligeiramente defraudado quando, a meio de um filme quase intocável, Last Days, há uma sugestão qualquer de homossexualidade da personagem. Não é que talvez não se justificasse - o tom crístico do filme, a figura andrógina do pseudo-Kurt Cobain poderiam levar facilmente a esta alusão. Mas a verdade é que, ao derivar para esse aspecto, e sabendo nós quem van Sant é, a obra perde alguma credibilidade.
Van Sant e, no caso que me interessa, Haynes, passeiam-se por um mainstream marginal, se assim se pode dizer, repisando temas fortes e não deixando de deitar uma pitada da sua própria agenda nas obras que produzem.
Mas Bob Dylan talvez justifique o ângulo enviesado - dúvido que seja original. As faces de Dylan, as múltiplas personagens que constroem o nome - Bob Dylan - são tão falsas como o pseudónimo que arranjou para usar em vez do mais vulgar Robert Zimmerman. O documentário de Martin Scorcese, No Direction Home (o melhor filme dele, já o disse e repito-o) desenvolve-se formalmente de acordo com todas as regras do género - existem entrevistas, imagens de arquivo, perguntas a Dylan. Mas o resultado final vai muito mais longe que a soma das partes. A montagem, entrecortando episódios polémicos com as justificações do músico, colando em sequência as críticas dos detractores e as canções mais emblemáticas, serve de bússola para o olhar do cineasta. As palavras das figuras entrevistadas estão constantemente a ser dinamitadas pela força das imagens, das músicas. A trupe folk denuncia Dylan pela traição, por se ter vendido ao capitalismo; Dylan responde cantando, a afirmação de uma serena fúria de liberdade - e a liberdade mais pura, a do indivíduo perante os seus próprios desejos e visão do mundo; sem compromissos.
O que há a destacar, enquanto o filme de Haynes não estreia, é então a espantosa (e surpreendente) semelhança física entre Blanchett e Dylan. Daquilo que tenho lido, é mesmo o actor que mais se aproxima do fantasma Dylan. Não do verdadeiro - nunca saberemos quem é - mas da imagem que o mundo tem dele. O documentário de Scorcese prova duas coisas muito simples: é impossível sabermos realmente quem Dylan é (no limite, qualquer aproximação a qualquer um de nós é sempre parcial, e portanto, falsa); e, que importa, a realidade da vida de Dylan é apenas ficção, não poderia ser de outra maneira. Não é muito, para um cineasta - a dança entre realidade e ficção deve ser a principal preocupação que Scorcese deve ter, quer se movimente num registo ou no outro. Mas, para quem vê, saber que chegamos ao fim do documentário conhecendo ainda menos Dylan do que conhecíamos ao início, pode ser frustrante. Se quisermos saber mesmo quem é Dylan.
Eu não quero. Prefiro construir uma imagem mais ou menos verdadeira, contento-me com a ficção - afinal, tudo o que interessa; a realidade é demasiado escorregadia para que se deixe tocar.
[Sérgio Lavos]