27/02/08

Exibicionista

Nesta importantíssima problemática do Oscar (sem acento), o que me aborrece, mais que tudo, é a unanimidade em relação a Daniel Day-Lewis. O papel de Daniel Plainview é grande. Certo. Grande no sentido de ser extenso, de ter muitas falas para decorar, monótonos monólogos monocórdicos. Plainview é um crápula. Mais, é um crápula que enriquece. À custa do petróleo. Se isto não é o mais perfeito cliché que se pode produzir sobre a América, não sei o que possa ser. A alma liberal de P. T. Anderson tanto dá para chorar sobre bons sentimentos derramados (Magnolia), como para servir uma fábula anti-capitalista que, desconfio, metade dos membros da academia não apreendeu na totalidade. E o que faz um inglês que quer ser irlandês no meio disto tudo? Faz-se ao Oscar. Atira-se desalmadamente, cresce, assoberba-se, deixa-se captar em toda a grandiosidade balofa do contra-picado. Rouba cada cena do filme, mesmo aquelas em que não aparece (haverá alguma?).
Qual é o meu ponto? Simples - Day-Lewis não precisava deste papel (para todos os efeitos, também não precisava de ter aparecido no postiço de Scorcese, Os Gangs de Nova Iorque) para provar que é um grande actor. Grande, dançando nas margens de um overacting que, nas palavras mansas da maior parte dos críticos, é contido. Ora, expliquem-me lá de que modo Day-Lewis é contido a fazer de Plainview? Nos gritos, na violência, no domínio físico de cada cena, em especial aquelas em que aparece Paul Dano?
Onde quero chegar? Há cenas maiores em filmes menores que provam o ponto: lembro-me de As Bruxas de Salem, ou de Em Nome do Pai. Arrisco mesmo uma hipótese: Day-Lewis tornou estes dois filmes melhores do que na realidade são (apesar da densidade dramática do texto de Arthur Miller no primeiro filme referido ser inescapável). Mas eu, de caras, prefiro Viggo Mortensen em Promessas Perigosas, e apenas porque ainda não vi os filmes dos outros nomeados - e acho que Tommy Lee Jones vai ser daqueles bons actores que, por nunca terem feito de aleijado, deficiente, psicopata ou tudo ao mesmo tempo, chegam ao fim da carreira com não sei quantas nomeações e sem Oscar. Mortensen cria uma personagem. Day-Lewis limita-se a ser ele próprio; imponente, sim. Marcante, claro. Mas dificilmente alguém que consiga sobreviver ao seu próprio talento. Daniel Day-Lewis a fazer de Daniel Day-Lewis. E nem o sotaque o safa.
O Oscar é mais que merecido.

[Sérgio Lavos]

24/02/08

O verão

Ele apenas queria: um lugar vazio no sítio certo, conhecidos trocando conversas, amigos para companhia e dedicar-se ao esquecimento. Esquecer. A primeira parte da vida. Esquecer. A parte da vida que interessa. Esquecer. Amigos; conversas, desconversas. O calor de uma imagem debatendo-se nas ondas. O sol. Esquecer. Amigos, conhecidos, uma conversa. Um lugar exacto, certo, a chegada dos amigos. Esquecer. A chegada dos amigos, o verão que os amigos lhe trazem, o esquecimento. O lugar vazio no sítio certo, a areia cobrindo as conversas, lenta e breve; esquecer. O movimento secreto dos amigos, o verão enredado na areia, nos dedos dos amigos que conversam. Ouvir. No sítio certo. Há memória crescendo no lugar exacto, uma silva que alastra no lugar vazio que o espera. Ele apenas queria. Os amigos irão regressar ao lugar, e no seu lugar, o vazio. O esquecimento. O que ele não queria.

[Sérgio Lavos]

A casa

Não havia um homem nesta casa. Quando entrou, o mestre disse-me para me sentar a um canto. Como nenhum canto estava livre, sentei-me no meio da única divisão, circular e com uma chaminé no centro. O mestre caminhou em meu redor; três voltas completas. A cada passagem pela minha frente, as montanhas desapareciam. Reapareciam. Desapareciam. Quando parou, o mestre soprou nas minhas costas: "O que vês lá fora, as montanhas ou o intervalo entre cada corpo?" "Qual corpo?" - perguntei. "O que neste momento tu não vês." E calou-se. Passado algum tempo, adormeci. Agora, acordo, e vejo que nenhum homem habita esta casa.

[Sérgio Lavos]

22/02/08

O homem

O homem parado na margem pensou: "Não consigo parar o rio. O rio consegue parar-me a mim. E se eu me tornasse o rio?"
Não podia ter escolhido pior altura. Naquele momento, começou a chover, e o céu tornou-se o rio que ele ambicionava ser.
Ficou ali parado, fronteira entre céu e rio, risco no espelho que os dois usavam.
O movimento é o reflexo de água na água.

[Sérgio Lavos]

21/02/08

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Dois textos na revista Malagueta:

Para o leitor desprevenido e com pouco tempo em mãos, uma das coisas que pode ajudar na escolha de um livro é o primeiro parágrafo. O nível de intensidade, o tom, o estilo, o tema, tudo pode ser lido nessas primeiras frases. Para um leitor mais habituado, estas primeiras frases ainda são mais importantes do que para o desprevenido. A audácia do escritor nesta definição inicial é fundamental. E esta audácia passa muitas vezes pela criação de um diálogo com a memória do leitor. Um romance histórico pode começar com um aforismo que defina uma época: “Aquele era o melhor dos tempos, aquele era o pior dos tempos (…)” (Um conto de duas cidades, Charles Dickens. Nova Cultural, 2003). Um épico inicia-se com uma evocação de alguém que conheceu o herói em tempos: “O Sueco. (…) O nome era mágico; também o era a sua cara esquisita” (Pastoral americana, Philip Roth. Companhia das Letras, 1998). Um livro no qual o acaso desempenha um papel importante principia com o desafio ao destino: “Durante um ano inteiro não fez outra coisa senão guiar, viajando erraticamente pela América enquanto esperava que o dinheiro acabasse” (Music of chance, Paul Auster). (...)

Ouvia na Internet a emissão do programa Zane Lowe Show, na BBC Radio 1, aquele em que os Radiohead foram convidados como DJs, e percebi que é possível ouvir música pop sem perceber as palavras cantadas. Percebi o óbvio, portanto. Todos sabiam já, certo? (...)

[Sérgio Lavos]

20/02/08

Correspondência

Milhares de cartas inundaram a caixa de correio, a perguntar a mesma coisa: por onde andas? Respondi a todas, sentado numa esplanada para fumadores enquanto a chuva ia e vinha. Café? Confirmo. Cigarro entre os dedos? Claro. Alcoólicos perdidos no dia, copo atrás de copo? Sempre. A esferográfica na mão (não tinha tinta para a caneta) e sentia-me um passo à frente da modernidade. Eu espreitava por cima do ombro - que mulher feia ela se tornou, e eu conheci-a tão nova. A minha caligrafia é um acidente geográfico, Himalaias em potência - nem eu percebo, por vezes, o que escrevo. Tusso um pouco, mas como não fumo muito não chega para afirmar: sofro de catarro. Uma mulher passa, desvia o olhar, mas as calças de ganga apertadas segredam-me ao ouvido: "escreve, responde às cartas". Um yuppie com pretensões intelectuais - estão a ver o estilo, camisa e blaser, suíças crescidas - sai para a rua, dedo no ouvido, telemóvel na outra mão, a gritar para quem o ouve: "É o que eu te digo, a terceira guerra mundial vai começar". Achei normal, hoje em dia qualquer um pode ser profeta, ou melhor; comentador político. E era mesmo: "esta cena da Jugoslávia, foi ali que começou a primeira e a segunda, vai começar ali a terceira. A Espanha não aceita, a França também não, a Itália não estou a ver, os Estados Unidos só fazem merda". Lá ao fundo, uma voz meio desesperada ouve-se: "Amor, o café está a arrefecer". Espreito para dentro, olhar cruzado, regresso ao papel timbrado de hotel, escrevo cartas. Nos próximos dias, receberão uma resposta no correio. Entretanto, aproveito o sol e dou uma última passa, esmago a beata. Espreguiço-me. "Amanhã falamos, temos de ir à neve ainda este ano".
A terceira guerra mundial ali à esquina.

[Sérgio Lavos]

A casa vazia


Ferro 3 reforça uma certa obsessão que Kim Ki-duk tem por dois elementos, portas e casas, já visível em Primavera, Verão... A porta-limite entre exterior e interior, público e privado, é pacificamente arrombada por Tae-suk e, só esse arrombamento revela a função da casa enquanto espaço habitacional. Tae-suk procura diariamente um sítio para dormir e, aproveitando a ausência dos donos da casa, entra e habita nela por empréstimo, pagando a sua estadia com pequenos arranjos em electrodomésticos, ou tratando da roupa. Até que um dia, numa casa aparentemente vazia, é surpreendido por uma mulher, Sun-hwa, vítima de um marido violento. O fantasma vem à superfície por breves momentos, os suficientes para uma fuga com Sun-hwa e uma relação tão silenciosa como as casas que juntos passam a habitar. No final, o reencontro perfeito com o fantasma que sempre esteve lá, uma presença subtil e fantasmagórica fora do campo de visão. Em português o título indica o taco de golfe, Ferro 3, também personagem desta narrativa, mas em inglês, Empty houses, faz justiça à ideia do realizador : “We are all empty houses waiting for someone to open the lock and set us free”.
(o verdete)

[
Susana]

12/02/08

The Darjeeling Limited


Owen Wilson, Adrien Brody e Jason Schwartzman estão perfeitos nas suas personagens Louis Vuitton em viagem espiritual pela Índia. A banda sonora é fantástica com Satyiajit Ray, Peter Sarstedt (que marca, principalmente, Hotel Chevalier, uma curta história que antecede o filme e a ele se irá relacionar) e The Kinks. Wes Anderson de luxo e melancómico.

[Susana]

08/02/08

Passar por estranho

Há cerca de um mês que não ouvia The National - mas continuo a fumar; ninguém é perfeito. Uma passa agora mesmo, na Radar, o lado B de Mistaken for Strangers (White Dance, White Trash?). Darjeeling Limited. não é tão bom como poderia ter sido, mas é melhor do que parece ser. Ou então, como escreveu a Rita (procurar texto), a minha é de facto a geração que se sente confortável como personagem de um filme de Wes Anderson. A geração que adormece a ouvir The Smiths e acorda com The National, sonhando pelo meio com Radiohead. Curiosamente, o que se ouve mais nos filmes de Anderson é música dos anos 60. Um mimo. Aqui há dias morreu o guru dos Beatles, e lembrei-me disso enquanto via o filme. Quarenta anos depois, perdemos a paciência para crises existenciais curadas pelo misticismo perdido da Índia; apesar de corrermos o risco de tropeçar num qualquer guru contratado por um daqueles resorts paradisíacos do Índico, enquanto bebemos um daikiri à sombra de uma palmeira e somos servilmente servidos à velha maneira colonial. Os novos burgueses místicos não diferem muito dos antigos lordes ingleses; damos outros nomes à exploração. Kinks, então, com sitar e tudo. Paisagens estranhamente desfocadas, o lugar comum da beleza tingida pelo desperdício. Seja na Índia ou em Nova Iorque, a família como lugar de desagregação. Ou outro modo de dizer que o tédio pós-moderno permite-nos culpar os progenitores pelos nossos próprios falhanços. Pelo vazio que se instala. Precisamos de imagens? Os núcleos familiares corroídos de Wes Anderson. E de música? Mistaken for Strangers depois de Babies, dos Pulp.
Mas há pormenores no filme de Anderson a precisarem de um código. O sabor que fica na boca.

As reuniões familiares são estaleiros onde navios
se despem de artérias e tendões, revelando os ossos,

a pele uma dobra invertida, os afectos - sussurros

acumulados na evocação da verdade, a memória falsa.

[Sérgio Lavos]

07/02/08

Mais logo

À hora a que escrevo, certamente já perdemos 3-1 com a Itália (e vão 20 jogos seguidos) e seguramente não passa pela cabeça de ninguém despedir o treinador. À hora a que escrevo, apenas resta um candidato Republicano nas primárias americanas, John McCain, e dois Democratas, Hillary Clinton e Barack Obama. Não confirmo os factos, apesar de estes terem acontecido. Suponho, adivinho, especulo. Que é, aliás, algo que facilmente seduz. Tenta-se saber menos em que condições estão agora a viver as pessoas que foram despedidas no último ano em Portugal - apesar do interesse pontual de uma ou outra televisão à procura de miséria para transmitir em directo. Procura-se em menor grau perceber o que sucedeu às populações que viram as urgências encerradas nos últimos meses, que dificuldades têm no dia-a-dia, o que fazem quando precisam de cuidados de saúde imediatos. O que está feito, está feito, e a indignação dura o tempo que uma transmissão em directo demora, meia-dúzia de populares concentrados apenas interessa quando é para falar bem do Cristiano Ronaldo. A vertigem é tudo, e poderia pôr-me aqui a adivinhar o que neste momento acontece no mundo, que acabaria por acertar num ou noutro facto - as coisas repetem-se, entediadamente agrupando a totalidade dos dias.
Temos vivido vários momentos históricos, nos últimos meses. O encerramento das urgências, o crescimento da taxa de desemprego, a normalização do nepotismo, da corrupção, da vigarice pura e dura. O momento mais espectacularmente histórico dos últimos anos foi a ultrapassagem supersónica, por parte dos novos países na União Europeia, da velha caravela a que chamamos Portugal. Os buracos acumulam-se no porão, os ratos roem tudo, a água é mais que muita, mas alegremente continuamos a remar em busca de uma mirífica ilha que ora se chama convergência, ora riqueza nacional, ora progresso e bem-estar das populações - aquelas que vão ter filhos a Espanha, lembram-se? A culpa é dos carpinteiros que construiram o bote? Mas se já lá vão séculos, não seria tempo de comprar um meio de transporte mais moderno?
Somos bons em metáforas (um país de poetas, dizem), mas péssimos em gramática; óptimos a gastar dinheiro (telemóveis, casas, carros, férias), menos bons a tentar ganhá-lo da melhor maneira possível; temos os melhores patrões do mundo - apenas quando está em causa o seu próprio bolso. Dar o melhor pelo país, só se for no Second Life. Somos o mais descrente dos países católicos - pomos o nosso bem-estar sempre à frente do do próximo, pensamos viver cada dia como se não houvesse amanhã nem Deus para nos amparar no fim. Todos sabem diagnosticar a doença - devemos muito à hipocondria - mas ninguém consegue descobrir a cura. O doente (ou a nau, ou a jangada separada da Europa) vai morrendo aos poucos. Quem se apieda dele, e lhe oferece o golpe de misericórdia?
Aguardemos até ao próximo Europeu.

[Sérgio Lavos]

05/02/08

Escrever torto

Não queria ter publicado neste blogue o texto que Dóris Graça Dias não chegou a ver publicado no Expresso. O tal texto. Aquele texto de opinião sobre o Rio das Flores, que misteriosamente foi recusado pelo director do Expresso himself sob o pretexto de "falta de qualidade". Ora, eu não queria ter publicado porque o texto nem é carne nem é peixe: não elogia nem desfaz a obra. É uma criancice amedrontada que, enquanto estava a ser escrita, já previa a polemicazinha futura. Um texto com medo de si próprio, que nem sequer se atreve a desmontar o romance de Miguel Sousa Tavares como ele merece, que não consegue mostrar o que aquilo verdadeiramente é: literatura de cordel, enfarta-brutos, um desastre ecológico a produzir-se em sucessivas edições em papel.
O respeitinho é muito, eu sei, mas pergunto: por onde andam os críticos com tomates, que não têm medo de pegar num romance popular e avaliá-lo sem usar pinças e luvas esterilizadas, por aquilo que ele é e não aquilo por aquilo que representa? À excepção de um texto do José Mário Silva para a Time Out, nada. Nicles. E ter sido dada alguma atenção ao romance de MST, já não foi pouco. Acabou por ter mais sorte que José Rodrigues dos Santos, por exemplo.
O que é lamentável é eu ter que dar razão à direcção do Expresso, sabendo que, caso a crítica tivesse sido feita com a atenção e competência devida, teria tido o mesmo destino que o texto de opinião inventado por Dóris Graça Dias. Miguel Sousa Tavares, transferido há não muito tempo do Público para o Expresso com um estrondo de estrela de futebol, não teria admitido tal afronta, desse por onde desse. E agora é vê-lo de beicinho estendido, lamentando a inveja dos mesquinhos que se atrevem a não gostar dele.
Será esta a Michiko Katukani que o país merece? Não se arranjará nada melhor?

(Ler, por favor, este texto que diz tudo o que deve ser dito, do Luís Rainha - que saudades eu tinha de o ler - no Cinco Dias)

[Sérgio Lavos]

04/02/08

Respiro

Talvez nestes últimos tempos tenha havido mais do que um assunto que me tenha despertado a atenção, de entre a modorra quotidiana de notícias que, diariamente, inunda os jornais. Poderia dispensar a ligeira constipação que se apoderou da última frase - não poderei afirmar seriamente que a arrogância de que essa frase está enferma não seja um defeito, mas administro, em doses homeopáticas, a arrogância a algumas coisas que faço.
Não queria desaguar aqui: aqui. Antes preferia continuar a falar dos assuntos que me interessaram e dos quais não falei. Deveria falar? Quando escrevo não falo, parece-me evidente, embora uma voz na minha cabeça me vá ditando coisas com as quais nem sempre concordo. Mas, é sério, deveria referir que isto ou aquilo me afectou profundamente, aquela coisa ou a outra me indignou apaixonadamente, um ou outro acontecimento me transformou de maneira decisiva? Tenho as minhas razões para me manter calado. A menor das quais é o desinteresse que isto possa ter para quem me lê. Mas, se me lêem, é porque tem interesse.
O principal motivo de orgulho, desde que fui silenciando o tribuno que habita em mim (5º esquerdo, ali mesmo ao pé do fígado), é a sensação de controlo de estragos, de higiene totalitária, que este blogue respira. Algumas recaídas quase que deitaram tudo a perder. Acessos súbitos de vaidade, tropeções mais ou menos públicos, alguma tosse inconsistente a meio da peça do silêncio que neste momento está em cartaz por estas bandas. Mas o tempo apaga tudo (menos as insistentes nódoas da tarte de mirtilos do verão passado). E tudo se esquece, ao sabor do vento que sopra os textos mais antigos lá para baixo (não espreitar, por favor). Cada vez mais penso - e não estou sozinho nesta demanda - que o ideal seria escrever sem dizer absolutamente nada (a dupla negativa aconselha-se). Sei que neste campeonato teria a concorrência de quase todos os colunistas que escrevem em jornais portugueses. Melhor, retiro o que afirmei na última frase. A maior parte da gente que escreve por aí diz tudo sem escrever absolutamente nada. De jeito. Sabe tudo sem saber realmente nada. E o realmente nada seria, neste caso, calar o impulso de ganhar uns cobres e deixar-se ficar sentado no silêncio, imaginando a neve que não cai lá fora, enquanto o mar desaba a sua impotência sobre a areia de um fim de tarde de verão.
Deixo em paz o colunista encostado ao doce cadeirão da improbabilidade poética, o malfadado colunista escrevendo o texto que leio com tal intensidade que no momento seguinte o esqueço, um suspiro nos lábios, agora não, que não me interessa. O tribuno grita. Vou ali amordaçá-lo, não quero discursar sobre nada que interesse minimamente ao eventual leitor deste texto. O momento seguinte, de libertação completa, me espera. (Utilizo o brasileirismo para não quebrar o ritmo da frase). E como quebrei o ritmo da frase, escrevo uma mais sem dizer nada. Respiro sobre a língua, e ela encolhe-se.

[Sérgio Lavos]

Intervalo


[Sérgio Lavos]

01/02/08

Falhar melhor

(...) Sabes, eu acho que não tens razão. Acho que as pessoas se apercebem mesmo daquilo que são, daquilo que podem ser, daquilo que, no limite conseguem ser. O problema é que, no limite, nunca conseguem deixar de ser aquilo que são. E quase todas conseguem ser muito pouco, ou muito, mas mal. Podem disfarçar, querer passar por aquilo que não são, mas sabem que não são como pretendem ser. Pretender significa querer ser, mas também fingir. Ninguém usa uma máscara de forma inocente. Todos sentem o rosto verdadeiro por baixo. Os que não sentem, não chegam a saber o que são. Os que sentem, sofrem. Porque saber que se é uma coisa, apenas aquela coisa, e não se conseguirá nunca ser outra, apenas pretender, é, mais que uma dura pena, a consistência que mantém qualquer sociedade a funcionar. Funcionamos à custa de não sabermos corrigir o que que somos. Persistimos em ser, e não é um erro; a nossa natureza verdadeira é o erro, aquilo que a toda a hora corrigimos. Falhar? Falhar melhor? Nunca acertar, ou estatisticamente acertar mais vezes do que os outros. O único consolo que nos resta. (...)

[Sérgio Lavos]