28/05/12

Invisível

Como parece ser evidente no meu texto, li Cidades Invisíveis muito antes de ter visitado Veneza (dez anos é tempo perdido) - e a referência directa à cidade não ficou sedimentada na memória, apesar de Marco Polo. Obrigado ao Luís M. Jorge por me lembrar que há alusões mais certeiras, porque intuitivas, do que a razão e o conhecimento permitem. Ou então tudo é suficientemente claro, mas não para mim na altura certa. Tenho de reler o livro de Calvino.

27/05/12

Amélia Pais (1943-2012)

Não preciso da proximidade entre dois acontecimentos para reforçar nexos de causalidade; mas ainda há poucos dias falava daqueles instantes decisivos que podem mudar o curso de uma vida. E falava também das pessoas ainda mais importantes do que esses instantes decisivos, as pessoas que, ao contrário dos acasos que nos empurram para um ou outro lado, nos puxam, nos rebocam, na direcção certa - se não certa, pelo menos a direcção que nos traz ao presente. Uma dessas pessoas foi Amélia Pinto Pais.
Apanhei-a como professora no 12.º ano, na Escola Francisco Rodrigues Lobo, em Leiria. "Apanhei-a" parece-me um termo adequado - ela foi com uma doença benigna que me deixou imunizado a uma série de ideias feitas da adolescência. Não sabemos o que somos, e sobretudo não sabemos do que gostamos - e aquilo de que gostamos é o caminho mais rápido para a conquista de uma identidade. A professora Amélia Pais não me abriu portas, mas janelas; fez-me perceber por que razão gostava do que gostava e que aquilo de que gostava poderia definir o que seria. Demasiado alusivo? Não - o tempo encarregou-se de apagar os pormenores que a memória guardara, mas a essência continua a ser viva, clara. Ela era a professora que incentivou esforços literários a quem pouco ou nada tinha a oferecer ao mundo. Amante da poesia - manteve o blogue ao longe os barcos de flores durante anos a fio - soube ensinar-me a ler poetas de quem já gostava - Pessoa, Camilo Pessanha, Antero do Quental, Herberto Helder - e mostrou-me outros - mas sobre esta sensação tenho já poucas certezas. Mas também me apresentou prosadores que não estavam no limitado programa de Português - lembro-me de O Perfume, de Patrick Suskind - a obra de culto para os adolescentes da minha geração - mas também de Kafka, de Camus, de Garcia Márquez, autores que definiram a minha transição para a vida adulta. E marcante foi a confissão numa aula de que já tinha tentado ler várias vezes o Ulisses, e que não tinha passado da página 200, provando que ao leitor tudo é permitido, até ser derrotado por uma obra. E acima de tudo revelando a máscara de perfeição que cobre a cara dos professores e mostrando aos seus alunos que, mais do que servir de exemplo, um bom professor deverá sobretudo apontar direcções, mostrar as várias escolhas com que nos iremos deparar ao longo da vida.
Cada tentativa com Ulisses é dedicada à professora Amélia Pais. Em Outubro passado, ensaiei a terceira, e posso dizer que passei das duzentas páginas, o marco que ela, há dezoito anos, ainda não tinha ultrapassado - talvez tenha conseguido entretanto, nunca lhe perguntei. Aqui há uns anos, descobri o seu blogue, enviei-lhe um mail, agradeci-lhe. Ela não se lembrava de mim. Eu não tinha sido um aluno marcante, achei normal, mas foi simpática e correcta. Não precisava de se lembrar de mim para eu a achar uma daquelas pessoas que - devo-lhe também correcções aos meus clichés nos poemas que lhe mostrava, mas a este prefiro não fugir - mudam uma vida. A minha, e a da maioria dos seus alunos, não duvido. Dos leitores do blogue. Deixou obra em papel - livros de apoio à leitura dos clássicos, uma adaptação em prosa d'Os Lusíadas. Mas deixou mais - deixou paixão, amor à literatura. E conseguiu passar esse amor a muitos. Terá valido a pena.
No meu percurso de livros por acabar, paixões por resolver, Ulisses que não conseguem regressar a casa, ela foi um dos meus espíritos da boa fortuna, definindo-me. Que descanse em paz - os amantes da poesia vivem sobre a espuma dos dias, merecem essa paz mais do que ninguém.

26/05/12

Veneza

Não me canso de ver as fotografias do Venice Daily Photo - descoberto há uns tempos através do Luís M. Jorge. Veneza é sem dúvida a única cidade das que visitei que não se repete a cada imagem. Olhar para as fotos ajuda-me a recordar e ao mesmo tempo a imaginar o que será Veneza no momento em que o fotógrafo dispara. Já lá estive, e continua a parecer uma cidade que não existe, uma cidade invisível como as de Italo Calvino. E se alguma coisa a viagem reforçou, foi a sensação de irrealidade que dela irradia. Antes, era um postal turístico, um lugar cuja aura de cliché o tornava pouco apetitoso. Durante, depois, o fascínio. Não estarei muito longe da paixão - e por isso cada vez menos a reconheço, e é menos real, um sonho. Os pés que pisaram as ruas da cidade não acreditam nela. E por isso, amam-na.

23/05/12

Ilusão

O passado vai-nos iludindo enquanto não o confrontamos com o presente. Existe numa redoma, num sonho. Quando despertamos, revela-se, revela-nos; e o presente torna-se o lugar possível. Mais feliz, concreto e belo do que qualquer ilusão.

19/05/12

New York Herald Tribune

A sequência, breve,
deixa marca.
Como se uma imagem pudesse sobrepor-se
ao objecto que imita ou a memória do
acontecimento substituísse
a realidade – o atrevimento da filosofia.

Ela passa ao lado
e ele pára imitando o coração.
Mas recomeça, e nesse salto ultrapassa
o limite imposto pelo tempo,
e ninguém nota;
mas não importa.

O lapso entre o espanto
e a obrigação, um momento de espera em que ele
não sabe se vai ou volta, e o sol
dança com a indecisão, e o sol avança;
e passou.

A marca deixada, cicatriz entremeando
tudo e nada, desaparece, não é já
sombra fantasma.

Não se encontrarão no café com o quadro de Lempicka na parede.
Não perceberão um no outro o sentido das coisas quietas;
fins-de-tarde; passeios demorados; acordar todos os dias.
Não entenderão o desconserto do mundo e não saberão que nem o amor
o poderá emendar.
Não vão tarde, nem cedo, existem em dois tempos.

Apenas o cinema
- ou um desatinado poema –
Os pode resgatar.

Dead man

15/05/12

Andorinhas

Menos andorinhas, este ano. No beiral do meu prédio, mesmo por cima da janela do meu quarto, elas todos os anos regressam aos ninhos. Estamos em Maio, e ainda não chegaram. Faz calor, o sol voltou, mas talvez se tenham perdido nos temporais do último mês. Não vieram as andorinhas, e cerejas há poucas; e caras.
A Primavera foi adiada: demasiadas mortes, mortes demasiado tristes, o mundo a pesar sobre os ombros, uma melancolia alastrando sobre a pele. Os instantes de alegria breve escasseiam. Abril cruel, Maio a caminho de se perder enredado em si mesmo. O que nos poderá redimir?

13/05/12

Uma questão de distância

O que se me apresenta como vulgar, repetição, comum diário, se olhado de longe, plano afastado, torna-se bizarro, diferente, extraordinário. Basta dar um passo atrás, e a imagem foca-se. A única ressalva: que atrás  de mim não se abra o precipício.

05/05/12

Olé

Não cheguei a terminar Dublinesca. Deve ter sido o primeiro livro de Enrique Vila-Matas a levar esse tratamento. Não me recordo de quais as exactas circunstâncias em que tal aconteceu, apesar de ter sido há menos de um ano. Mas ao ler a entrevista do escritor feita por Carlos Vaz Marques (na Ler deste mês) fiquei com vontade de comprar o tal Ar de Dylan. Aquela coisa de ser tão bom entrevistado como escritor pode parecer um cliché hiperbólico, mas quem retira tanto prazer de uma entrevista quanto das linhas escritas pelo entrevistado tenderá a concordar. E Vila-Matas nas entrevistas é tão esquivo e metaliterário como nos livros. É como se nos últimos anos ele se tivesse vindo a metamorfosear num dos seus Montano ou Bartlebys - e ele admite-o na entrevista, presta-se ao jogo. Não admira que tenha ido buscar Dylan - o tal homem que não tem rosto real, apenas uma máscara. Mas sem pretensões, como de resto Vila-Matas também admite. As coisas são como são, e numa entrevista não esperamos encontrar verdades. Mesmo que haja algumas confissões pelo meio - nesta, a admissão de que há personagens nos seus livros que gostam de citar supostas frases de escritores que são do próprio autor catalão. Como a agora famosa tirada de Marguerite Duras que aparece em Paris Nunca se Acaba: "escrever é tentar escrever o que escreveríamos se escrevêssemos". Um certo fetichismo literário, e a vingança da personalidade submetida a um questionário preparado por um estranho, um interrogatório. Ser uma estrela (como Dylan) é também ganhar calo nestas coisas, e passados tantos anos a escrever sobre escritores que o recusam ser (tudo o que vem com este trabalho, aparecer, falar, vender o produto), Vila-Matas, munido de um sentido de humor auto-depreciativo, irónico, que tanto existe na voz dos seus narradores como na voz do narrador que responde a entrevistas, chegou a um cúmulo que inclui roteiros turísticos pelas ruas e lugares que aparecem nas suas obras de ficção (?). 
Talvez antes de Dylan regresse a Dublinesca, para compreender a brincadeira do "grande salto inglês"; que inclui uma confraria de joyceanos passeando-se por Dublin no Bloomsday, fazendo-se passar por anarquistas espanhóis. Tudo não passa de um jogo. Que refrescante, se pensarmos no modelo de entrevista habitual das "grandes figuras" da literatura...

04/05/12

Flannery

Chego sempre tarde a estas coisas, sobretudo por teimosia e alguma pose, mas posso afirmar com segurança: a Flannery O'Connor é uma maravilha do outro mundo.