30/06/13

O seu rosto

Chega de mansinho, a meio da felicidade.

À traição, embosca-se e encurrala-nos,
e entrega-nos à sua ferocidade negra.
Num momento, estamos esquecidos do mundo
e somos o seu centro unívoco.
No outro, o sangue arde nas veias
e a náusea dança nas entranhas,
atraindo à boca a alma e o seu reverso.

É a vida esse doce esquecimento dela,
e quando tentamos submete-la a um compasso,
a uma esquadria, ela escapa-se-nos, desfoca-se,
torna-se o absoluto vazio, matéria solta, espaço
ocupado pelo cão negro que nos persegue pelos dias fora.
E não conhecemos as defesas.
Tentamos recordar aquele tempo
em que os dias eram largos e fluidos
como o mar que nos pede o verão.
Falhamos. A cada tentativa voltamos a
perder – palavras acumulando-se sobre
os passos, som sem sentido, eco desaparecendo.

Na volta que damos,
procuramos o rasto do esquecimento,
a terna mão que nos leva pelos montes
até ao lugar onde repousa a infância.

Não olhemos de frente o medo:
o seu rosto é tão parecido com o nosso.

26/06/13

Joana Vasconcelos, o kitsch e o poder político

O percurso de afirmação de um artista pop acaba sempre por partir das margens para o centro, da descoberta de uma novidade para a institucionalização. Desde o primeiro momento, da primeira peça, ele – o artista – talvez não deseje mais do que isso: que a sua obra acabe na colecção permanente de um museu, que pertença a um canône – qualquer que seja ele -, que seja vista pelo maior número possível de pessoas. E, em última instância, que o poder político a normalize e legitime, tornando a obra de arte aceitável para a esmagadora maioria do público. No limite, a obra de arte apenas se define quando consegue chegar a um público que esteja para lá da crítica e do diminuto círculo de iniciados.
Joana Vasconcelos percorreu todos estes estádios da normalização da arte. De uma nova artista que, desde o início, teve o respeito e o elogio da crítica e do meio, até à massificação da produção artística, começando pelo primeiro passo do processo – no seu atelier um conjunto de pessoas produz em série, à maneira da fábrica de Andy Warhol – até ao derradeiro: as suas obras são vistas pelo grande público e o poder político apadrinha-a, sendo criada uma identificação entre a subjectividade da obra e um “sentir nacional” também subjectivo, mas na aparência fundado em símbolos objectivos, como os galos de Barcelos, as saias nazarenas, o vidro verde das garrafas.
É compreensível que se gere uma resistência entre a obra de Vasconcelos e parte da intelectualidade distante do poder. Durante algum tempo, achei que o risco que ela corre – o de aproximação ao centro afastá-la da periferia que desde o início a legitimou – não compensava os méritos eventuais da obra. Mas a verdade é que o caminho que vai da margem ao mainstream não só é ilusório – toda a criação existe para chegar ao maior número de pessoas possível (dentro do público ideal que o artista visa) e mente quem afirma o contrário – como, no caso de Joana Vasconcelos, desde o início o espírito da consagração popular estava incorporado na obra, na sua essência.
As peças de Joana Vasconcelos caracterizam-se não só pela ironia com também pela apropriação de ícones da cultura popular entretanto tornados obsoletos e esvaziados de parte da sua carga de representatividade. O kitsch, à maneira de Jeff Koons, é simultaneamente matéria-prima e instrumento de trabalho. A pós-modernidade transformou o que antes era um conjunto de imagens exemplares da identidade nacional – por sua vez, estas imagens eram símbolos, imitações da verdadeira arte popular – em ícones de um fulgor nacional ultrapassado. Note-se que a carga simbólica destes objectos implica um uso apriorístico da ironia – os cães de loiça sobre os frigoríficos – no seu uso quotidiano; são tão irónicos os cães sobre os frigoríficos como os que são expostos por Joana Vasconcelos nos museus. As lições de Duchamp ainda são válidas, mas é também certo que o gesto que transporta o urinol para o museu não é bem o mesmo que o que leva o cão de louça para esse espaço. O carácter prático do primeiro não é equivalente à natureza lúdica do segundo. Ninguém encara um urinol ironicamente, a não ser que esteja num museu. O mesmo já não se pode dizer de um cão de loiça ou de um galo de Barcelos. O kitsch existe antes da instituição artística o legitimar enquanto tal.
De que modo podemos então olhar para a própria artista? Se ela, desde o início, procurou, através da ironia, questionar modelos convencionais e teorizar sobre o papel da mulher – a instalação com os tampões ou os sapatos gigantes, por exemplo – ou sobre a herança cultural do país, por que razão não poderá estar, no momento em que se institucionaliza, a confrontar a sua persona com quem legitima a sua obra? É difícil olhar para a fotografia recente da inauguração da exposição no Palácio de Ajuda sem interpretarmos ironicamente a figura de Joana Vasconcelos. As poses institucionais do secretário de Estado da Cultura, do primeiro-ministro e da primeira-dama contrastam com o vestido da artista. Esse vestido, criado intencionalmente para o acontecimento, evoca vários trajes tradicionais, desde o minhoto ao nazareno, e, na mesma medida em que contém diversos motivos referindo explicitamente as preocupações artísticas de Joana Vasconcelos, contextualiza a seriedade do momento. O vestido de Joana é como um fato de carnaval usado por uma criança. Contudo, quem aparece deslocado, no meio do festim kitsch de Joana Vasconcelos, são os membros da instituição legitimadora. Assumindo a ironia de ser apadrinhada pelo poder político, Joana Vasconcelos expõe ao ridículo esse poder e os seus representantes. É um gesto equivalente a tantas obras que recontextualizam os símbolos nacionais – o primeiro-ministro, o secretário de Estado da Cultura e a primeira-dama são os galos de Barcelos e os cães de loiça que a ocasião solene proporciona. Joana Vasconcelos, no processo de institucionalização da sua obra, não deixa de distanciar-se ironicamente de quem lhe atribui importância e poder. A obra exposta em Versalhes – o lugar do kitsch, por excelência -, as photo oportunities com políticos e o cacilheiro a caminho de Veneza não passam de performances, tão plenas de sentido artístico como tudo o que Joana Vasconcelos produziu até aqui. Quem cai no ridículo não é a artista, mas sim o poder político que, sem perceber - ou sem querer perceber - a obra que apadrinha, se coloca como mais uma figura no universo irónico criado por Joana Vasconcelos.

Sombra

Não te convenças de que sabes tudo
nem que estes sejam os últimos momentos de vida
e que tudo o que recordas
seja como o vento
soprando pelo sonho de alguém.

Não te convenças de que tudo o que sabes
é mais do que aquela folha seca
que o rio transporta em direcção ao mar.
Não carregues aos ombros mais do
que a sombra das brincadeiras
que tinhas nas traseiras da casa de infância
ou a luz que te leva pela margem
quando procuras o lugar para ancorar.

Nesse lugar onde podes esquecer
quem és e o que te prende à terra,
esperas pela grande ordem material,
o zimbro imemorial, o fogo sólido,
na boca e nos braços abertos ao mundo
partes sabendo que
no fim da viagem, para lá da curva
plena onde assenta a penumbra dos plátanos,
colherás o incêndio semeado.

O que sabes não se esconde, onde te perdes;
mas a sua sombra, estendendo-se,
recolhe-te e vai-te enganando. Ou tu te enganas.

23/06/13

Um sonho

Do lado de lá dos montes
sopra o vento, trazendo
com ele o canto dos pássaros
do fim da tarde, quando se preparam
para o sono, voando na sombra das árvores,
procurando nas folhagens o melhor
lugar para dormir.

É o regresso do fim,
um sinal familiar de cansaço,
o calor desaparecido uma memória
escrita na pele,
um cheiro a sal e a desejo domado.

Deixamos entrar a melancolia
e trocamos palavras com o medo.
Pelas portadas vem
o princípio do sonho e aquela
lembrança do filme que vimos
num ano melhor do que este.
Não olho para ti;
na cama deixamos que
a aragem leve o que guardámos
para os pássaros.

A fome cumprida e a sede saciada,
desenha-se no tempo a cicatriz deixada pelo amor.
A tarde retira-se, derrotada.

21/06/13

Um ideal para a vida

A atomização do pensamento e a distância entre pessoas artificialmente iludida pela Internet levaram a que a ilusão da democracia se espalhasse, não só como ideia concreta, mas também como objectivo e ideal das sociedades nas quais a liberdade efectiva (mesmo que ilusória) não existe. As ideias espalham-se mais facilmente do que fogo em mato seco. Ninguém poderá afirmar que isto não será bom. Mas as ideias muitas vezes estão tão afastadas da acção, ou pior, do discurso performativo, que acabam por funcionar como obstáculos à sua concretização, barreira a uma verdadeira mudança nas mentalidades.
O capitalismo liberal é tão sufocante e dominador que mesmo os movimentos que pugnam por transformações radicais ou pelo o derrube dos valores liberais acabam por ser assimilados, entendidos e sufocados por um conceito de liberdade que, nunca deixando de legitimar os poderes difusos e a tríade essencial do capitalismo - capital, oportunidade, escolha -, acaba por se afastar dos valores e da natureza primitiva do liberalismo clássico. Os movimentos que procuram a libertação destes valores fundamentais do capitalismo usam os produtos que dele nascem e não se conseguem afastar dos valores das sociedades onde existem. Os movimentos alter-capitalisas são como outra a face do capitalismo, feitos da mesma matéria, percorrendo um caminho paralelo, partilhando a seta do progresso eterno, ideia charneira do liberalismo moderno.
O momento presente é sempre aquele em todas as virtudes e todos os defeitos se encontram e se concentram na sua máxima potência, porque o presente é a única possibilidade de existência a que temos direito. Vivemos no presente e nele concentramos o melhor e o pior dos mundos, todas as realizações e todas as possibilidades de mudança. Vivemos no presente e enquanto parte do mundo pensa e sonha com um mundo melhor, a outra parte luta para o conservar tal como está, com todas as qualidades e defeitos. Ninguém poderá afirmar com certeza que tem a razão do seu lado. Isso é certo. 

20/06/13

Notas para uma crise (5)

"O país trabalha em ordem, vós os dizeis e os políticos vossos servos muares. O país trabalha em paz, vós mo dizeis desde a cabeça do poder até à última prostituta e limpa-retretes. Também as formigas trabalham porque a natureza as fez estúpidas para isso. Também a besta anda à nora e com os olhos vendados para não ver que anda e ter acaso uma hipótese negativa na sua capacidade de besta. Também o burro puxa à carroça e leva pancada se faz greve de zelo, porque não calcula que é ele o sujeito desse puxar. Assim não é possível chegar a uma formiga e dizer-lhe pára um pouco e pergunta-te que diabo ando eu aqui a fazer?"

Vergilio Ferreira entra em território desconhecido quando os seus narradores - ou alguma personagem - começam a falar de política, explicita ou alegoricamente. É uma marca que se repete em vários dos seus romances - e se em Portugal existissem editores à maneira anglo-saxónica, essas longas diatribes, entre o moralismo e a indignação bacoca, seriam cortadas sem apelo nem agravo. Isto sou eu quem diz. Eu, que em Saramago também não gosto dos narradores intrusivos e que têm opinião sobre questões de política, os narradores sentenciosos e demasiado próximos da própria personagem saramaguiana. Sei que pensando isto nego parte da arte da ficção tal como Saramago a entendia; várias vezes ele afirmou que o narrador se confundia com o autor, ou pior, que o narrador (nas suas narrativas na terceira pessoa) nunca deixa de ser o autor. Mas o que mais me fascina em Saramago é o domínio do tempo e do ritmo das histórias contadas e a destreza linguística. E os defeitos que lhe encontro não esvaziam este fascínio.
Mas voltando a Vergílio. Será este talvez o terceiro verão em que regresso a ele. Agora, Em Nome da Terra, do qual retirei a passagem acima. A política entra na minha vida sem pedir licença, e mesmo quando  me afasto ela me persegue, nem que seja através da voz da personagem de um romance. Tudo é política, ainda hoje eu dizia - os aspectos mais banais do nosso quotidiano dependem de decisões tomadas por outros, decisões que não conseguimos controlar. Não sei se somos formigas ou bestas, "com os olhos vendados para não ver", mas sei que facilmente caímos nessa dócil escravatura que nos obriga a percorrer o carreiro das formigas de Zeca Afonso. Vivemos um tempo em que se é cada vez mais difícil seguir em sentido contrário. Quando a herança de Zeca (e de Saramago, e até de Vergílio Ferreira) é assim traída, o que nos resta? 

Notas para uma crise (4)

Comecei este blogue em Março de 2006. Antes, tive outro blogue (o Arquivo Fantasma) que se iniciara em Janeiro de 2005. Desde o início, escrevi para não deixar na gaveta, para tornar público o que durante muitos anos era privado. O exercício da escrita - poemas, ficção, prosa não ficcional - é coisa antiga, começou mais ou menos na mesma altura em que percebi que a leitura poderia ser um prazer permanente na minha vida. Não sabia aos dez anos que uma década depois a escrita faria já parte da minha identidade, do meu "eu", não freudiano, mas expressão da minha consciência no mundo. 
(Digo não freudiano porque desde sempre considero que a escrita esconde mais do que revela, é mais impressão de uma realidade - mesmo que seja interior - do que expressão de uma verdade.)
Durante oito anos, não cheguei a perceber para que serve um blogue, para além dessa vontade de oferecer algo que se calhar não tem qualquer interesse. A minha perspectiva mudou quando fui convidado para escrever no Arrastão. Fiquei lisonjeado pelo convite porque significava um reconhecimento. Aceitei pensando continuar a escrever sobre o que escrevo aqui, ampliando os meus interesses para a política (tema que raramente me estimulou no Auto-retrato). No fundo, a decisão tomada não teve qualquer ponderação grave. Um blogue é um blogue é um blogue, a importância disto tudo é nula. 
Mas a verdade é que escrever para o Arrastão me foi afastando do Auto-retrato. Pior: escrever no Arrastão implicou sempre um esforço de apreensão de um mundo que eu considero, desde cedo, uma poça fétida onde os medíocres gostam de chafurdar - a política. Não que não tivesse prestado atenção à política desde sempre, e que não ache que não seja essencial manter essa atenção para compreender porque estou aqui, agora, e para onde posso ir, e como. Mas o exercício de escrever com regularidade sobre politiquice e questões que, para todos os efeitos, me transcendem (e à esmagadora maioria das pessoas), fugindo do meu controlo, tornou-se uma pedra de moer e ao mesmo tempo um vício - o prazer imediato do comentário sobre a actualidade, as polémicas, a verrina, conseguem realmente viciar. Mas afastam-me do resto, do coração da escrita, daquilo que eu era antes de começar a escrever sobre política.
Tudo isto cansa. A vida cansa. As possibilidades que se estreitam e os caminhos que deixam de se bifurcar começam a pesar nas decisões. O tempo é uma seta apontada ao futuro - e mesmo que não saiba qual é esse futuro, sei que não posso ir por aí, pelos desvios que reclamam a atenção e a afastam do que realmente conta. Como há coisas, muitas, que não consigo controlar, só me resta concentrar no que consigo. 
O meu objectivo: regressar ao Auto-retrato e começar a ter a mesma regularidade que vou tendo ainda no Arrastão, abandonando temas políticos. Deixar respirar a escrita, libertar-me do que não consigo mudar. Pode ser que daqui a algum tempo volte tudo à casa desta partida. Veremos. Não sou dogmático.

18/06/13

Mestres antigos

O amor que temos aos desconhecidos de quem aprendemos a gostar - os poetas, os cineastas, os músicos, os artistas, os professores das coisas vãs e fúteis que são a matéria da vida - tem uma natureza diferente do amor pela família próxima ou pela mulher que nos escolheu amar de volta. Mas nem por isso é um amor inferior ou menos importante. O que somos, o que nos constitui, tem tanto a ver com pessoas como com os objectos artísticos que nos deslumbram. Sentimos tanto a distância dos nossos mestres como das pessoas com quem vivemos os anos da nossa vida. Mais claro: amamos quem nos ama de volta mas também quem, criando, nos ensina a amar o mundo. E quando os mestres se vão, a dor é funda.

14/06/13

Notas para uma crise (3)

Como não acautelei a compra do livro de Herberto Helder, fiquei sem ele. Parece que a edição de 5000 exemplares foi comprada por especuladores e leitores de circunstância - mas isso não é o mais importante.
Dos poemas que tenho lido, nota-se essa transição de uma poética da transcendência para um regresso a uma imanência que se faz contra um mundo que mudou bastante nos últimos anos. Não será o "regresso ao real" de que falava Joaquim Manuel Magalhães - apesar de essa premissa se ler nas entrelinhas do depoimento de Manuel de Freitas e do texto António Guerreiro no Ipsilon de hoje - mas uma aproximação a um "tempo final" que não só se manifesta pelas circunstâncias da biografia do poeta, mas também através da fala de uma época consumida por ecos de um fim.
Esse fim não é o "fim da História" profetizado há mais de duas décadas, mas será antes o fim do Ocidente, tal como o conhecemos. Vivemos "tempos interessantes" desde pelo menos a crise de 2008 - e que se pressentiam depois do 11 de Setembro -, quando a finalidade última da política e dos políticos deixou de ser o "serviço do povo" para passar a ser uma qualquer vassalagem a poderes mais ou menos invisíveis ou a uma ideia que se afirma além da política (mas não é, porque tudo é política) e se alimenta de números, previsões e modelos económicos
É claro que a urgência passa ao lado da maior parte dos países da Europa. Esta restrição abrupta de parte da nossa vontade não se fará sentir nos países "não-intervencionadas". A destruição sistemática de um modo de vida fundado na solidariedade entre povos e entre classes - que nunca chegaram a ser verdadeiramente desmanteladas - é como uma onda selectiva que apenas varre os povos do Sul - que sejam a Grécia, berço da civilização ocidental, e Portugal, porto de partida da globalização mundial, é significativo. Lá fora, fora de nós e do sufoco que nos oprime, o mundo continua a rodar, sem percalços e forças de maior. 
A forma como está a ser construída a União Europeia trouxe-nos a um ponto em que a legitimação democrática é comprometida a cada momento. O voto, expressão última da vontade do povo, deixou de criar a ilusão de controlo de que as democracias representativas se servem para resguardar a sua existência. A descrença na política e nos políticos, sintoma maior da doença da democracia que fere a União Europeia, não tem sido convenientemente tratada por quem detém o poder. E este desdém pelo "sentimento do povo" não é inócuo ou sinal de uma displicência; numa União Europeia em que a maior parte dos cargos de decisão são ocupados por pessoas não-eleitas, é apenas natural que não exista uma verdadeira preocupação com este fosso cada vez mais aprofundado entre as decisões políticas e as pessoas que são afectadas por elas. É perfeitamente indiferente a um burocrata de Bruxelas que uma decisão sua envolva milhões de pessoas. E neste ponto o burocrata não está assim tão distante dos "burocratas" do Holocausto, retratados por Hannah Arendt na sua reportagem ao julgamento de Eichmann em Jerusálem. O burocrata do Holocausto limitava-se a cumprir ordens e a fazer o que lhe pedia. Um burocrata de Bruxelas segue a cartilha económica dominante e cumpre o decidido à partida. O burocrata da troika tem "um programa" para implementar e aterra em Lisboa para averiguar se esse programa é seguido à risca. O burocrata do Governo olha para os números e comove-se com a beleza intrínseca do "ajustamento", da mesma forma que o burocrata do Holocausto se comoveria com a beleza de uma tarefa bem cumprida. Não existe compromisso com as consequências da beleza, mas sim uma espécie de frieza sociopata possibilitada pela distância entre eleitos e eleitores - e por isso o burocrata do Governo se orgulha de "não ter sido eleito coisíssima nenhuma". 
O mal estar de um tempo. O fim da democracia tal como a conhecemos. O progressivo abandono das pessoas e das suas vidas por parte de quem decide o destino delas. E essa espécie de sufoco diário de quem vive sujeito a poderes que não controla e a decisões que podem mudar o curso de uma existência. A ilusão de que o voto poderia mudar este curso definido, ou a ilusão de que o progresso não teria fim, terminou.  Que exista um poeta que, no fulgor dos seus oitenta anos, tenha decido tratar - no sentido de cuidar, também - estes problemas, criando uma identificação entre o sujeito poético e o sujeito civil, abandonando o manto do demiurgo (como Manuel de Freitas o qualifica) e assumindo a precariedade de um corpo e de um fim, simultaneamente afirmando a potência de quem sente e vive no mundo, e com ele pensa  e combate, é o milagre possível. Nada vai mudar, certo. Mas sim, fica a poesia.

12/06/13

As manhãs

As manhãs,
plúmbeas, opressivas, abissais.
Sair de casa sem saber se regresso,
a caminho de um dia sem final.

Aquelas manhãs, o lento nevoeiro
cobre o espírito, deixa-o perder-se
na floresta onde aguardam as feras
as suas presas, mortais,
o seu modo de emboscar,
implacável, o espírito dominado
pela profundidade animal.

Aquelas manhãs, vozes
calando o rumor do pensamento,
banais, eliminando os restos
de luz, de movimento.

Mas, o céu, e a sua beleza rompendo,
é o pão diário dos olhos,
uma possibilidade de voltar,
o retorno.