05/11/07

O local de filmagens

Stalker é um filme de Andrei Tarkovsky de 1979. O filme pode ser dividido segundo dois critérios visuais: o primeiro, em tons sépia (porque o sépia suja todas as imagens, cobre de lama paredes, rostos, roupas) com planos da cidade onde Stalker vive; e o segundo, num deslumbrante poema às intensidades da natureza, agora já na interdita Zona. A Zona é um lugar contaminado, poluído pelos escombros da abandonada fábrica, o óleo é ainda visível na superfície da água ainda que peixes insistam em lá viver. Na Zona, a água inunda o terreno, ensopa a terra, predominando ainda na chuva, no rio, na cascata, no interior das casas, sempre a água, translúcida ainda que poluída. É um hábito de Stalker levar pessoas para a Zona a troco de algum dinheiro. Desta feita, conduz o Professor (ou a Ciência) e o Escritor (ou a Arte) para a Zona com o objectivo de alcançarem a sala da esperança onde os desejos se tornam realidade e de onde quase ninguém regressa.

Qual a origem do misticismo do lugar? No início do filme fala-se de um meteorito que caíra e destruíra a vila mas esse contacto alienígena, justificaria os processos de auto-conhecimento pelos quais os seus visitantes involuntariamente passam? A perigosidade de entrar na Zona é imensa e incalculável: a todo o instante mudam as armadilhas, muda a fisionomia do terreno, perigosidade avivada pelo facto de não se poder andar pelo caminho mais curto nem se poder voltar atrás. É verdade que há indícios do terreno mudar, mas também há indícios de tudo ser criação abusiva de Stalker, o único que conhece as regras da Zona. As outras personagens também duvidam e perguntam a Stalker como é que ele sabe que ali se podem realizar os desejos. Ele simplesmente sabe. A filmagem decorreu em parte na Estónia, perto de Tallin, num campo radioactivo, partículas químicas que terão alimentado a ideia de lugar como organismo vivo – que se desloca, que deseja, que engana, que respira e que dialoga com os humanos.

Os recursos cinematográficos de Tarkovsky concentram-se na imagem e nos actores: o zoom é extraordinariamente lento, os rostos devidamente enquadrados (as personagens surgem, surpreendentemente, pela parte inferior do enquadramento contrariando a perspectiva natural). Uma das vantagens de um realizador de cinema ser também ensaísta é contribuir para a sua própria interpretação. Assim, este filme, juntamente com Andrey Rublyov (1969) e Solyaris (1972), faz parte de um conjunto teórico escrito por Tarkovsky (Esculpir o Tempo, em tradução brasileira) sobre as possibilidades cinematográficas de representação directa do tempo. Como libertar o tempo (ou duração) da montagem (ou movimento)? Criando a imagem cinematográfica no próprio local de filmagens. É interessante afirmar que o local de filmagens seja tão criativo quanto o realizador ou os actores, como um interveniente do filme. Com Stalker, parece que esta afirmação ganha mais verdade. É o tempo que controla o ritmo, os lentos zooms, os rápidos travellings; o tempo é a duração de cada plano e o ritmo de cada movimento. Cabe ao realizador esculpir o tempo, dar-lhe forma, compreender a pressão do tempo no momento das filmagens.

Cada plano, nasce no local da filmagem e não na mesa de montagem porque a montagem, a reorganização artificial dos planos fixos, sem duração, não é fiel à matéria-prima do cinema: o tempo. Por este motivo, são poucos e longos os planos nos filmes de Tarkovsky, porque, idealmente, o tempo seria o único agente no cinema tornando o realizador o canal privilegiado de passagem dessa intensidade, intermediário que preserva a pureza da duração registada no local, a pressão da passagem do tempo. Stalker pertence ao lugar tanto como a aranha que lhe passa nos dedos. Na impossibilidade de mostrar a pressão do tempo em imagens fixas do filme, opto por mostrar em movimento porque só enquanto estão em movimento, estas imagens existem.

(texto inicialmente publicado no Verdete)
[Susana Viegas]

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