31/08/07

Morte aos assassinos (2)

Não teria sido necessário escrever o último texto publicado - lendo o post de Tiago Barbosa Ribeiro e depois os comentários, ficaria esclarecido e menos sarcástico acerca de todo este assunto.
A verdade é que parece que quem foi convidado foi o PC colombiano, que aparece apoiar (de acordo com o DN) os terroristas da FARC.
Vários problemas: qual a medida de bondade de todos os que se indignam contra um facto menor da política portuguesa, qualquer coisa que devia de ser apenas uma nota de rodapé da actualidade, um assunto interno do PCP? Por outras palavras, existem valores absolutos nestes fogachos dos bloggers politicamente empenhados? O que se condena? O métodos terroristas das FARC? O apoio do PCP, camuflado ou não, ao tal grupo? A venda de material da organização por parte do PC colombiano? Em relação à primeira questão, ninguém pode não condenar os métodos terroristas da organização. E condena-se os objectivos? Ou os fins justificam os meios? É claro que o problema não é de natureza, mas sim de substância. O que os blogues (e jornalistas) de direita fazem é rejeitar, por princípio, toda e qualquer ideia, criminosa ou não, terrorista ou não, de organizações de esquerda. A luta ideológica não se trava no campo da acção, mas sim das ideias. Apenas assim se explica que se defenda e se condene ditaduras ao gosto da ideologia dominante; a direita não se importa que os E.U.A. apoiem teocracias islâmicas ao mesmo tempo que perseguem ditadores empobrecidos até à morte (assassinando no processo milhares de inocentes); neste aspecto, a esquerda é menos hipócrita (se bem que tão imoral como): é capaz de apoiar políticos como Chavéz ou Fidel Castro até ao último momento, e simultaneamente rejeitar os desmandos de um ou outro regime de direita, democrático ou não.
Por isso, falar de actos criminosos como pretexto para condenar uma organização política acaba por se tornar uma bela hipocrisia. Não será criminoso o comportamento de democracias que intervêm em nações independentes, ainda que agindo em nome de valores mais altos (a tal ideia de que os fins justificam os meios)? Mas a coragem não abunda, eu sei. Admitir que o campo político com que nos identificamos também comete os crimes que, por princípio, rejeitamos, não é fácil. A retórica da política não pode permitir coisas como honestidade, verdade ou, acima de tudo, dúvidas. Exclui o factor humano em favor de conceitos abstractos, utopias perigosas. Pura literatura. Poder.

[Sérgio Lavos]

Morte aos assassinos

Eu gostava de ter visto o mesmo empenho que muitos bloggers agora estão a ter quando, há uns tempos, se falou de uma reunião de partidos de extrema-direita europeus em Lisboa, organizada pelo PNR. O empenho em corrente que protesta contra o facto de um evento cultural organizado por um partido político, uma organização privada, portanto, com regras próprias, neste caso o PCP, convidar alguém, neste caso uma organização de extrema-esquerda, as FARC, para a Festa do Avante, é admirável. Repare-se, o movimento iniciado por Tiago Barbosa Ribeiro, do blogue Kontratempos, e logo secundado por meia blogosfera de direita, não se insurge (belo e liberal termo) em particular contra a presença de membros de PC's de países comunistas, embora o facto seja referido; o principal problema é mesmo a FARC. Um pedido a todos os subscritores desta corrente: quando Robert Mugabe visitar Portugal a convite do Governo (que, não sei se sabem, representa todos os cidadãos do país, ao contrário do PCP, que representa apenas os seus próprios eleitores), redobrem o esforço, multipliquem a indignação, protestem, protestem contra o indigno gesto do Estado português. E, já agora, gostaria de ver outra coisa que não a menorização e desculpabilização da extrema-direita portuguesa nos prezados blogues associados deste benemérito gesto da próxima vez que, sei lá, ela decidir colocar um cartaz de teor racista em pleno Marquês do Pombal ou organizar reuniões com elementos comprovadamente criminosos, portugueses e estrangeiros, e que, para além do mais, querem lançar "a vertigem totalitária onde quer que actuem".
Sem falar dos estados criminosos que empurram outros países para o caos e para a deriva totalitária; e que matam gente aos milhares. Democracias, diziam?
Éramos todos tão perfeitos se fôssemos coerentes, não éramos?

[Sérgio Lavos]

29/08/07

Videografias 15 (Franz Ferdinand/LCD Soundsystem)


Não sei já onde li que, a haver uma música deste verão, esta devia ser o "All My Friends", dos LCD Soundsystem. Gosto mais do original - aproxima-se da perfeição (mas o que é isso?) - mas gosto menos do video (apesar de também ser muito bom). Passado pouco tempo, os momentaneamente desaparecidos Franz Ferdinand fazem uma cover. Onde, com LCD, se ouve piano, tocado como se fosse um Keith Jarrett ainda mais speedado, ouça-se, com os Franz Ferdinand, guitarras, new, new wave típico. Há menos escalada - o crescendo emocional de James Murphy torna-se uma harmonia plana nas mãos da banda escocesa. Rocka-se melhor, com estes. Abana-se a cabeça com mais vivacidade, com os outros.
(Pensava apenas colocar o vídeo dos Franz Ferdinand, mas ficam aí os dois. Apenas resta responder a uma questão? O que deu aos FF para fazerem uma cover de uma música tão recente? E parece que John Cale também já andou a versionar a faixa. James Murphy, o novo e excêntrico guru da franja pop do indie, será isso?




(Versão de John Cale aqui.)

[Sérgio Lavos]

27/08/07

A pátria

Ao ver Nélson Évora emocionado (e feliz, e principalmente perplexo) a ouvir o hino, não deixei de pensar naqueles que, neste momento, mais sofrem: os meninos de cabeça rapada que não se cansam de dizer que têm orgulho em ser português. Nélson Évora, nascido na Costa do Marfim, filho de pais cabo-verdianos, puro ébano, português desde criança. Como antes Naide Gomes, nascida em São Tomé e portuguesa desde muito cedo. Ou mesmo Francis Obikwelu, que aos vinte anos se exilou por cá (imagine-se, alguém gostar de viver em Portugal) e decidiu renegar as suas origens nigerianas, naturalizando-se português. Alguém duvida que, olhando para a bandeira, Obikwelu não pense em tudo o que o país lhe ofereceu? Uma pátria, uma carreira, fama e dinheiro.
Gosto de atletismo desde criança, fascina-me o esforço levado até aos limites, a afirmação simbólica da vontade individual, a superação. E o culminar de qualquer prova de atletismo é o momento da subida ao pódio, a bandeira e o hino. Os rostos de alegria, plena ou emocionada, a indescritível sensação que deve ser estar lá em cima. Assisti em directo (era um miúdo, mas vi) à vitória de Carlos Lopes, a mais significativa, por ser a primeira de Portugal nuns Jogos Olímpicos (no atletismo). E no mesmo ano recordo Rosa Mota na maratona a ultrapassar nos últimos quilómetros Ingrid Christiansen para chegar à medalha de bronze. Lembro-me melhor destes momentos do que das vitórias seguintes. Depois, a gloriosa vitória de Fernanda Ribeiro nos jogos de Atlanta, am 1996: a desforra da derrota na final dos 5 000 metros contra Wang Juxia (Fernanda nem sabia como se pronunciava o nome da chinesa). Nos 10 000 metros, a vontade pura, a tenacidade, contra a superioridade da outra atleta. Os metros que a Juxia conseguiu cavar antes da última volta, e a recuperação final, até ao triunfo.
O que é o racismo? Acima de tudo, a supremacia da ignorância sobre a sensatez das evidências. Nenhuma simbologia abstracta - a pátria, a raça, a nacionalidade - resiste à força das excepções. Eusébio tornou-se um símbolo nacional numa época de colonialismo. A França foi campeã do mundo de futebol com uma selecção de imigrantes de segunda e terceira gerações durante um período de emergência de Le Pen e seus comparsas. O pequeno racismo, de taberna, do português médio, torna-se ridículo perante a admiração de figuras como Liedson, Luisão ou Quaresma. As claques futebolísticas e a sua escola de selvageria skinhead são, neste aspecto, sintomáticas da estultícia de qualquer ideologia supremacista - insultar os adverários pela cor da pele, aplaudir os jogadores estrangeiros do clube que apoiam. Alguém os levará a sério?
Sinto-me mais português quando vejo Nélson Évora ou Francis Obikwelu no pódio, hino a tocar, bandeira ao vento. Eles escolheram ser portugueses. Se por cada um dos que escolhem, fosse retirada a nacionalidade a outro que a envergonha (e a ignorância racista é um dos piores crimes cometidos contra o orgulho pátrio), viveríamos num país mais saudável. Mais livre. Melhor.

[Sérgio Lavos]

O escritor (2)

Robert Wilson acaba por confirmar o cliché que repete: não há como o olhar do estrangeiro para perceber o que somos. Não sei bem o que é o orgulho pátrio. Mas se aquela pontinha de emoção que se sente ao ouvir um estrangeiro descrever na perfeição os cambiantes da nossa alma se aproxima da definição de um orgulho qualquer, então devo senti-lo. O carácter reservado, desconfiado ao primeiro contacto, que esconde um coração necessitado de tempo para se revelar, para se abrir ao outro. Isto e a verdade que tantas vezes esquecemos: somos um povo pacífico; evitámos tantas vezes a guerra dentro de fronteiras que muitas vezes parece que subterraneamente desejamos essa zona de ruptura. Uma tensão que se dirige a nós próprios, conduzindo à tipicamente portuguesa autodepreciação patológica. Preferimos a desobediência ao conflito. A interiorização da violência a actos disruptores. Há quem considere estas características defeitos. Não pode haver moral na História. Mas prefiro a moral à História. Sou português, de facto.

[Sérgio Lavos]

O escritor

Tinha passado despercebido, e nem sei se é uma reposição, mas é uma excelente ideia o canal 2 ter decidido produzir uma série de entrevistas a escritores estrangeiros que vivem em Portugal. Hoje foi a vez de Robert Wilson. O tema da conversa seria a sua visão do país, mas acabou por desembocar aqui e ali numa reflexão sobre a escrita e os seus processos. De uma forma desarmante, o escritor revela o percurso que cada livro tomou até chegar ao leitor. A saborosa (ainda que algo paternalista) história do caseiro que julga que Wilson fabricou o livro, o objecto livro, e não o escreveu apenas, complementou a ideia que Wilson tentou fazer passar nesta passagem da conversa: a de que escreve para entreter, e tenta fazê-lo o melhor possível. O que contraria o que pensa a maior parte dos escritores portugueses. A literatura enquanto produção, sem qualquer carga metafísica ou religiosa. Por cá, a ideia romântica do escritor enquanto figura inspirada por Deus demora a desaparecer. O sofrimento, a inspiração, o acto divino - a Obra nasce. O escritor inglês conta as histórias verdadeiras que respiram por baixo da pele ficcional que ele tece. Sabemos tudo? Quase nada. O suficiente.

[Sérgio Lavos]

25/08/07

Eduardo Prado Coelho (1944-2007)

Nos apontamentos dos blogues a propósito de Eduardo Prado Coelho, alguma frieza e distância. Imagino mesmo que alguns dos que o lembraram tenham escrito textos nada simpáticos a propósito de uma ou outra crónica do "intelectual mais influente dos últimos 25 anos", de acordo com Eduardo Pitta.
O tom neutro denuncia quase sempre dois sentimentos: respeito pela importância no meio e discordância pela atitude. E o pudor, o raio do pudor perante a morte. Disserto sobre a incerteza. A verdade é que lia o EPC vai para quinze anos, primeiro na crónica semanal do suplemento Mil Folhas (e do seu percursor no Público) e depois nas crónicas do Fio do Horizonte. Quase sempre com interesse. Mas a maior parte das vezes descortinando mais do que o bom senso de alguém com poder em certos meios; o tactear de sensibilidades em que Prado Coelho se tornou perito valeu a inimizade de metade da blogosfera, sempre tão pronta a criticar quem está do outro lado - os que beneficiam da projecção dos meios de comunicação tradicionais. Prado Coelho respondeu sempre à agressividade dos bloggers com ferocidade mais ou menos ressentida. Ninguém conseguiu tocá-lo, muito menos desacreditá-lo. A ideia que passou para quem não conhece o meio é que os que dele dependiam sempre conseguiram protegê-lo da crítica e do descrédito. O que fica, então? Uma obra académica menos valorizada do que devia, consequência da exposição mediática diária a que o autor foi sujeito durante demasiado tempo.
A familiaridade artificial proporcionada pelo contacto diário com a escrita muitas vezes intimista de Prado Coelho levou a que sentisse a sua morte quase como o desaparecimento de alguém que conhecia pessoalmente. A morte de um hábito - e será pouco, isto?

[Sérgio Lavos]

23/08/07

Os dedos de uma mão

É difícil escrever sobre os amigos depois do poema de Herberto Helder. Mais fácil será falar dos amigos que o deixaram de ser. Amigos que se afastaram, amigos de quem eu me afastei, os cinco dedos de uma mão, separados, a unidade que deixa de fazer sentido. Não há vontade suficiente, quando os encontramos por acaso, de afastar aquela desagradável sensação de familiaridade forçada. De intimidade cercada. Um esforço de conversa, as histórias a que entretanto se foi perdendo o fio, a bola. Nada resolve o problema. E se o afastamento vem de longe, desse lugar de sombras, a infância - que sentido fazia procurar mais do que as sombras projectadas que víamos? -, irremediável desastre. Somos outros, deixámos tudo pelo caminho. Nada temos a oferecer, a vida torna-se despojos das peles que fomos largando, coisa antiga. Não vejo amigos há anos, décadas. Se os visse agora, não os reconheceria. Mais que estranhos, seriam lugares a evitar, a recusar. Reencontrar amigos de infância é como caminhar entre ruínas. O frio das pedras entrando pela carne até aos ossos. Vazio sobre o vazio, um horizonte de zinco sobre as casas.

[Sérgio Lavos]

20/08/07

Terapia Metatísica

Para desenjoar de assuntos tão sérios (ah!), gostaria de chamar atenção para o blogue Terapia Metatísica, que é do melhor que tenho lido nos últimos tempos. É tão bom, tão bom, que vou fazer um pujante (e pungente) copy/paste de dois textos (2) que desfizeram muitas dúvidas existenciais que me atormentavam (ainda não tiveram vontade de clicar no blogue? o que espereis?) e outras menos existenciais que me divertiam nas horas livres de tormenta - fazendo imitações do Mendes Bota botando discurso sobre o mirrado Marques Mendes - e isto não é uma reles piada sobre os atributos físicos do homem. Ei-los:

A filosofia de Wittgenstein é a filosofia do silêncio para além da matemática. Dizem que a filosofia de Wittgenstein é terapêutica e eu percebo isso; dizem-no porque a terapia se aplica, em regra, depois da doença, e toda a filosofia antes de Wittgenstein é patológica, afectada, irresoluta, falsamente modesta, envenenada e excessivamente palavrosa. Acredito, porém, que devia encarar-se a filosofia de Wittgenstein como uma filosofia preventiva - previne o homem de ser homem em excesso. O super-homem, por exemplo, é o homem (ou o deus) da sede e da insatisfação, é o homem por excelência que só tem um atributo: estar vivo. O homem-silêncio de Wittgenstein é que é um novo homem: inquieto mas discreto na sua inquietude, o homem que, como eu o imagino, só se revela na cama e na filosofia.

Não chega? Tomai outro, então:

Literatura

O que nós queremos do amor e o que os outros querem do nosso amor é que ele nos agarre pela mão e nos diga: «Anda, eu sou a solução para todos os teus problemas.» Quando nos dirigimos a um amigo ou a alguém da nossa confiança e dizemos «Estou apaixonado.» - assim, tão afirmativamente -, não é comum que nos perguntem o essencial sobre o nosso amor. Perguntam-nos que coisas faz na vida, se é bonito, se é um bom partido, se é bom na cama, que idade tem, se já coleccionou outras pessoas antes de entrarmos na sua caderneta ou, em última análise, se gostamos dele - a pergunta que fazem sempre os amigos mais verdadeiros. Nunca nos perguntam: «E ouve lá, isso é publicável?», que é o mesmo que perguntar se o nosso amor tem literatura suficiente para chegar a ser livro. Não me parece que «Sim.» seja a resposta ideal. Raramente a literatura tem algo de insondável e, mais importante do que isto, aquilo que há de insondável na literatura compete com a nossa vontade de a explicarmos. O verdadeiro amor é, pois, aquele que não é publicável, que não é amor-narrativa, o amor sem espaço, sem tempo, sem demasiada acção ou demasiado enredo. É, quem sabe, o amor que, quando acaba, não nos deixa nada para além dele mesmo, ou seja, é o amor que não acaba.

E depois façam-me o favor de linkar o blogue ou guardá-lo nos favoritos do browser ou copiar tudo muito bem copiadinho para uma sebenta (um moleskine é que não - visitem o blogue para saber porquê).

E chega. Ou queriam também, para cúmulo, uma cura definitiva para a caspa?

[Sérgio Lavos]

O terrorismo dos outros (2)

A tomada de posição envergonhada de Miguel Portas (que não me lembro já se foi ou não para Bruxelas com o meu voto) e a consequente indignação das castas donzelas liberais do nosso burgo fez-me lembrar um sketch dos Monty Python, o da "Inquisição Espanhola". "Ah, ah! Nobody expects the Spanish Inquisition!! e tal... estão a ver qual é. A reacção da seita que ainda anda a matutar na volta que irá dar ao cerebrelo para explicar uma ou outra tomada de posição em termos de economia ou, digamos, política externa norte-americana (e isto é apenas um exemplo, diga-se) a gritar: aí está, eles saltam quando menos se espera! Saltam, saltam, em defesa das acções dos seus militantes e simpatizantes de base, os simpáticos idealistas do mau-cheiro corporal, carne para encher canhão de manifestação ideologicamente dirigida. O segundo texto de Miguel Portas no seu blogue era desnecessário. Se se defende um acto de puro vandalismo, tem de se ir até ao fim na defesa, justificada ou injustificadamente. Para gáudio dos Torquemadas do nosso país, ateando alegres fogachos fátuos pelo país fora.

[Sérgio Lavos]

O terrorismo dos outros

Não sei que piso do Inferno está reservado para ecoterroristas - o mais recente termo a entrar no vocabulário do taxista médio, que, entre o engenheiro recambiado para a escola profissional de onde saiu e insultos ao condutor da frente, ainda terá tempo para se indignar contra meia-dúzia de rafeiros habitualmente com casota posta na costa vicentina que decidiram ir mijar onde não deviam (a propriedade é um roubo, lá dizia o outro); sei sim que o lugarzinho para políticos oportunistas e demais ressabiados do atoleiro iraquiano (vulgo, os "liberais" da nossa praça) deve ser bem perto da suite imperial lá do sítio. Algures entre os advogados e os bem intencionados moralistas, a sua bela vista para a eternidade.

[Sérgio Lavos]

19/08/07

Tony Wilson

Dos mortos destes últimos tempos destaca-se, no meu álbum de favoritos, Tony Wilson. O génio por trás dos génios, como alguém lhe poderá ter chamado. Se não chamou, devia. Quem viu "24 Hour Party People" sabe do que falo. Wilson morreu sem lucrar com a mineração que levou a cabo nos 80. Talvez não precisasse. Não que a eternidade queira alguma coisa com ele. Ela costuma ser madrasta para os mecenas e visionários que são capazes de suportar uma vida em segundo plano, aturando humores e genialidades dos artistas que por eles são criados. E não há qualquer exagero no termo: quando Tony Wilson reconhece a centelha nuns Warsaw medianos, gatas borralheiras sob os céus cinzentos de Manchester, e transforma-os em sublimes princesas, Joy Division para todo o sempre (é preciso acreditar nesta última afirmação como quem acredita num milagre, a música pop a isso obriga), e como bónus ainda nos oferece os pais da electrónica New Order, não há outra palavra que se adeque. E depois encontrou o Messias dos party boozers, ou como lhe chamava, o Oscar Wilde dos tempos modernos, Shaun Ryder (Bez foi um feliz acaso).
Não sei que ala habita lá em cima; desconfio que o Céu, para ele, já passou. Uma Hacienda a abarrotar, de gente e de (pó de) Anjos, amigos e desconhecidos, música até o Sol nascer. Nem Deus poderá repetir tal conjugação de elementos.

(Tudo isto a tocar ali na barra ao lado durante os próximos tempos)

[Sérgio Lavos]

16/08/07

A Estrada

O que resta de humano na humanidade? A pergunta feita por Cormac McCarthy em "The Road" (publicado em português na Relógio d'Água) pretende ter uma resposta. É esse o maior fracasso do livro. Uma abstração sobre os limites num mundo que já não os pode ter - depois do apocalipse, pai e filho (como no filme homónimo de Sokurov, e isto não é apenas coincidência) percorrendo uma estrada que o pai assegura ter fim. O filho acredita. É isso que o anima, é isso que mantém pai e filho à tona. Compreende-se o sentimentalismo árido de McCarthy (o livro é dedicado ao filho mais novo) - e neste aspecto discordo desta recensão de Janet Maslin. Pensando de um modo frio, em termos de puro egoísmo genético, o pai pretende que o filho lhe sobreviva, num mundo em que a luta pela sobrevivência levou a um retrocesso civilizacional que conduziu os poucos Homens que restam à desumanização absoluta. Será possível manter a razão num mundo onde o instinto domina? McCarthy acha que sim. Já o li em condições mais calorosas e simultaneamente mais brutais (talvez aprecie contrastes a preto e branco, fraqueza minha), em "Belos Cavalos". Mas o domínio da língua é irrepreensível. É muito. O suficiente.

[Sérgio Lavos]

Conteúdo

A principal crítica que se tem ouvido a quem não gostou de "À Prova de Morte", é a de que, para além da perfeição formal, dos diálogos brilhantes, do ritmo infernal, da cena de perseguição de carros mais cool desde "Bullitt", do jogo de citações e de paródia pós-moderna, da desconstrução de um certo feminismo e de um certo machismo, da respiração livre de qualquer pressão comercial (falo do tempo langoroso que se perde com aparentes frivolidades femininas, ou da duração da cena de sedução manhosa com pizza e gordura nos lábios de Kurt Russell, cicatriz e tudo), e do ar blasé, de quem domina perfeitamente o que faz e que se dá ao luxo de fazer o que quer, sem dever nada a produtores ou às expectativas do público (houve alguém que sugeriu, imagine-se, que o que move Tarantino é o impulso comercial; logo ele, depois de três relativos flops seguidos - os "Kill Bill" e este), escrevia eu que, para além de tudo isto, há quem critique o filme por ser vazio de conteúdo. O que é um filme? Respondam-me, será mais do que um conjunto, quase perfeito, de imagens?

[Sérgio Lavos]

15/08/07

Videografias 14 (Erlend Oye)


As afinidades electivas no mundo da música podem dar excelentes resultados. É esse o caso do trabalho conjunto de duas personagens cujos imaginários e personalidades se tocam. Erlend Oye, uma das metades da dupla neo-folk Kings of Convenience, e Jarvis Cocker, o anti-crooner, que comungam neste vídeo o mesmo gosto pelo kitsh e pelas bizarrias juvenis nunca analisadas ou aplacadas pela psicanálise, tudo devidamente recauchutado e transformado em símbolos sexuais mais ou menos evidentes: a maneira esquisita de dançar dos velhos tempos das pistas de dança com bola de espelhos, os animais de porcelana, a substância de aspecto leitoso derramada sobre a galinha, ou galo (cock), a clara de ovo, a enfermeira perversa, a ginasta das tardes passadas em frente à televisão a ver os jogos olímpicos, a cavalgada no touro, os movimentos de natureza suspeita ensaiados em volta do pélvis, o controlo da velocidade da cavalgada, o casaco de peles sugestivamente vestido, os objectos que explodem, a colher com comida na boca, e o grand finale - o leite atirado sobre o pêlo num êxtase molhado. Um sonho erótico mais do que adolescente. A música de Erlend Oye é excelente. O vídeo de Jarvis Cocker uma pequena obra-prima edipiana.

[Sérgio Lavos]

11/08/07

Portugal para o português (2)

Em Barcelona, não é fácil encontrar o escritor catalão mais conhecido em Portugal, Enrique Vila-Matas. Percorri várias livrarias e apenas encontrei cinco títulos na Fnac. Talvez pelo facto de ele escrever em castelhano - nestas coisas do nacionalismo, é difícil para um escritor que traia a língua obter o reconhecimento devido. Ou então por cá temos uma ideia distorcida do valor de Vila-Matas. Para isto muito contribui o marketing que a Teorema fez quando adquiriu os direitos de Vila-Matas para os últimos três livros ("Paris Nunca se Acaba", "O Mal de Montano" e "Doutor Pasavento"), principalmente junto dos suplementos literários dos jornais. A verdade é que, não sendo um autor fácil, Vila-Matas vende mais do que muitos com mais notoriedade em Espanha, como Juan José Millas ou Espido Freire, dois exemplos apenas.
Trouxe então de volta dois que ainda não li dele, "El Viaje Vertical" e "Extraña Forma de Vida", e acabei por fazer um bom negócio: o primeiro custou 14.25 euros e o segundo 9.13. A literatura não se pode medir pelo que custa, é verdade, mas também é verdade que as editoras portuguesas gostam de se fazer pagar caro. Os mesmos livros, editados pela Assírio & Alvim, custam 15.50 e 11.50, respectivamente. E, além disso, apenas se podem encontrar neste momento à venda em pack, junto com outros dois livros do autor. Se formos por este caminho, percebemos o exagero que é vender um romance de 300 páginas por 25.20 euros, como é o caso de "Doutor Pasavento", que no original custa 19.00 euros. A Teorema, de resto, tem vindo a especializar-se em fazer livros com caracteres tipográficos de tamanho garrafal, papel de fraca qualidade e preço pouco condizente com a qualidade final do produto oferecido, defeitos que menorizam o quase intocável critério editorial. Recordo, para confirmar esta ideia, a péssima edição que está a ser feita da obra de W. G. Sebald, com traduções sofríveis e uma pobre qualidade de impressão das imagens que acompanham o texto. Tudo excelentes razões para ter comprado as edições inglesas (de resto, revistas pelo autor alemão) e ter deixado de parte ao fim de 15 páginas o "Austerlitz" editado pela Teorema. E muitos potenciais leitores também o terão feito. Será assim tão difícil perceber as consequências destas autênticas fraudes editoriais?
Este hábito de encarecer os livros não se explica apenas pela reduzida dimensão do mercado português, em que a maior parte dos títulos não chega a vender o suficiente para pagar a edição. Padecer de vistas curtas é o mínimo de que se pode acusar muitos editores portugueses. Porque editar, como o fez a Europa-América há uns anos, um livro como "A Companhia", de Robert Littel, em capa mole, por 35 euros, o preço de um álbum, é um convite ao desastre, a que se vendam 100 ou 200 exemplares apenas e que o resto da edição fique para sempre a ganhar pó nos armazéns. E falamos de um livro de espionagem, sobre a CIA, que deveria ter um potencial de vendas razoável. Exemplos como este abundam - não se percebe, por exemplo, como ainda temos de pagar 26 euros por uma recente edição de bolso em 2 volumes do D. Quixote ou 14 euros por uma tradução da Odisseia, também de bolso, quando em espanhol e em inglês estes clássicos e todos os outros (aos quais, recorde-se, não são devidos direitos de autor) se encontram disponíveis em excelentes edições, a todos os níveis, e a um preço muito mais acessível.
Há poucos editores portugueses que sejam excepção a este estado de coisas. E depois vem o costumeiro discurso do coitadinho - mesmo quando a Feira do Livro é um sucesso, como aconteceu este ano. Haverá maneira de alguma coisa mudar, com estas novas tendências concentracionárias do mercado?

[Sérgio Lavos]

10/08/07

Harry Potter

Scabbers turns out to mutate into something a bit worse than a rat, and the ancient charm of metamorphosis is one that J. K. Rowling has exploited to the uttermost. Another well-tested appeal, that of the orphan hero, has also been given an intensive workout with the Copperfield-like privations of the eponymous hero. For Orwell, the English school story from Tom Brown to Kipling’s Stalky and Co. was intimately bound up with dreams of wealth and class and snobbery, yet Rowling has succeeded in unmooring it from these considerations and giving us a world of youthful democracy and diversity, in which the humble leading figure has a name that — though it was given to a Shakespearean martial hero and king — could as well belong to an English labor union official. Perhaps Anglophilia continues to play its part, but if I were one of the few surviving teachers of Anglo-Saxon I would rejoice at the way in which such terms as muggle and Wizengamot, and such names as Godric, Wulfric and Dumbledore, had become common currency. At this rate, the teaching of “Beowulf” could be revived. The many Latin incantations and imprecations could also help rekindle interest in the study of a “dead” language. (...)

A importância de ser Harry Potter. O resto pode-se ler aqui.

[Sérgio Lavos]

Portugal para o português

Uma das coisas que funcionam melhor em Espanha é o mercado editorial. Desde a disponiblidade de traduções em todas áreas - as incríveis lacunas que existem em Portugal ao nível da edição, principalmente na área das ciências sociais, são de Terceiro Mundo e têm tendência para se agravar, com editoras como a D. Quixote ou a Asa a deixarem de reeditar livros por razões apenas comerciais (achar que qualquer best-seller americano desconhecido, muitas vezes comprado a peso de ouro, é mais facilmente vendável que um long-seller para um público esclarecido é pura e simplesmente burrice) - até à aposta séria nas edições de bolso, o leitor espanhol está sempre bem servido na sua língua. Talvez por esta razão a Fnac de Barcelona tenha uma oferta limitada de livros na língua original (francês ou inglês), em comparação com as suas congéneres portuguesas.
Não adianta especular sobre o dislate de José Saramago acerca do iberismo - o homem tem todas as razões para querer ser espanhol. Dá para ver que do outro lado da fronteira Saramago é quase um autor espanhol. Em todos os escaparates das livrarias espanholas se encontra pelo menos o último livro dele, "As Pequenas Memórias", que já saiu quase há um ano; e o resto da obra também se encontra facilmente. Mais facilmente do que em muitas livrarias portuguesas, de resto. O prémio Nobel, deve-se, em grande parte, à projecção que ele começou a ter nos países de língua espanhola - e falamos de um mercado de algumas centenas de milhão. Além disso, tem de agradecer a Espanha a maior das oferendas - encontrar o amor no último terço de vida; para um escritor, não é, de modo algum, facto de menor importância. Agora que a Caminho foi comprada pelo Rupert Murdoch dos pequeninos, Paes do Amaral, como se sentirá o anti-capitalista Saramago?
Estaremos condenados à concentração editorial, com o consequente empobrecimento da oferta? É o que parece estar a acontecer, e quando vemos o assalto que os grandes grupos estão a fazer a editoras que se destacam pela sua independência e diversidade, como é o caso da Teorema ou Relógio d'Água, é caso para recear o que aí vem. Sabemos que a dimensão do mercado espanhol permite que este funcione de modo bastante mais dinâmico que o mercado português, mas há sempre espaço para uma edição guiada por critérios que não sejam puramente economicistas. O esforço de manter a língua portuguesa viva pode passar muito por aqui (e basta ver a aposta que continua a existir, em Espanha, nas edições em catalão e nas outras línguas das regiões autónomas, por exemplo). Traduzir tudo o que está por traduzir, apostar em autores de língua portuguesa, o caminho possível contra as tendências globalizantes do mercado e a pressão mais ou menos intensa dos iberistas. A língua pode ser uma trincheira.

[Sérgio Lavos]

09/08/07

Lugares

Será sempre necessário voltar a terra para se perceber a verdadeira alma dos lugares. Andar a pé. Apanhar um comboio e sair para fora da cidade. Sentado, e em movimento, a paisagem corre em direcção a sítio nenhum. A milhares de quilómetros de distância dos nossos dias comuns, visitamos as mesmas casas, desfilando, os mesmos ermos entre prédios, vazios, rios esquecidos da sua função inicial, pontes de cimento ligando os homens, fios eléctricos acompanhando a correria das cidades suburbanas, das aldeias perdidas, de tanto em tanto tempo unindo-se a postes, os eléctrodos tremeluzindo no fim de tarde, manchas difusas contra o reflexo na janela, guindastes sobrevoando as ruínas, alicerces de casas por construir, confusão de homens abrigando-se da chuva, alpendres improvisados, a água caindo molemente no zinco, fumo entre cansaço, o ruído de um camião sobrepondo-se ao matraquear surdo do comboio, a paragem, pessoas descem, pessoas sobem, a carruagem pára no lugar, o tempo continua a correr, o movimento impele a carruagem , o tempo desfaz-se lá fora. Lugares por dentro de lugares, a familiaridade, a repetição da mesma vida noutro espaço.

[Sérgio Lavos]

Cidades

As cidades, nenhuma é igual; associamos a paisagem urbana a estados de espírito e depois estes estados de espírito a estações do ano ou a sensações físicas. Dizemos: a alegria das ruas, como se fosse sempre verão; ou a taciturnidade de certa marginal ao fim da tarde, entre o regresso a casa e a preparação para a noite. Quando visitamos uma cidade pela primeira vez, deixamos que o estranhamento se prolongue durante toda a viagem: queremos ficar deslumbrados pela diferença. Por isso se diz que quem viaja foge apenas de si próprio. Duvido que o turista moderno medite nisto ao folhear panfletos de agências turísticas ou ao marcar, com a urgência dos dias entre feriados e fins-de-semana, o resort apropriado para umas férias descansadas. É difícil escapar a isto, impossível fugir à globalização do lazer e do turismo. O estado de espírito é tão raro ser atingido, exige tal esforço de vontade, que arriscamo-nos a passar os dias deslumbrados pelo olhar dos outros.
O objectivo: encontrar nas cidades uma originalidade que seja, algo que julguemos apenas nosso. A ilusão do carácter único do olhar.

[Sérgio Lavos]

02/08/07

Ping

Até já.

A verdade

Muito daquilo que escrevo tem muito daquilo que sou, mas a verdade é que ninguém poderá saber ao certo quem sou eu a partir daquilo que escrevo.
Reencontro em alguns textos ficcionais restos do meu passado - episódios de infância, imagens que chegaram até ao presente desligadas do contexto geral, sensações difíceis de traduzir, que no papel se transformam em metáforas, aproximações à realidade, esboços linguísticos distantes do acontecimento que descrevem. A matéria para a escrita é a realidade? Nem por isso, é a realidade distorcida pelos olhos de quem vê. Por isso, a liberdade que dou ao texto, deixando que ele use como quer os fragmentos que a minha memória lhe oferece, tem plena justificação.
O que julgo ser mais interessante, neste exercício pouco imaginativo (não crio novas imagens, reciclo as antigas) de reconstrução da memória, é o reconhecimento dos pormenores que escondo no meio do texto ficcional. Sei que aquele vermelho de que falo, o vermelho de uma sala onde eram projectados filmes, numa aldeia sem salas de cinema, provavelmente nunca existiu. Esforço-me por ter a certeza de que existiu. Não consigo. No entanto, o instinto acende esse vermelho na tela da memória. Talvez fosse a cor de algum filme que tenha visto, talvez. Talvez tenha sido alguma visita à mesma sala numa altura em que era ultilizada para outro propósito que não a de sala de cinema - discoteca, com bola de espelhos a rigor e tudo. A verdade é que o edifício onde isto se passava é apenas um espaço vazio entre casas. E ninguém, de resto, confirma a minha história. Talvez nunca tenha sido projectado qualquer filme nessa casa que imagino ter existido. Não tenho a certeza. De qualquer modo, nenhuma palavra, destas que eu acabo agora de escrever, faz juz à imagem, verdadeira ou falsa, que tenho presente. E a imagem que crio em quem lê, como é diferente desta em que acredito. A distância que se alarga entre realidades; a verdade uma ideia que se conta em histórias.

[Sérgio Lavos]

Pano cru

Já a lia há algum tempo, mas fui adiando a inclusão na barra dos links. Apreciava-lhe o estilo, entre o confessional e o desencantado, despretensioso, conseguindo falar de coisas simples sem descomplicar o pensamento; falar do quotidiano sem cair na banalidade. Uma certa qualidade que apenas se encontra na maior parte dos escritores anglo-saxónicos. Ao mesmo tempo, havia qualquer coisa de familiar nos textos que lia, talvez o tom, talvez os temas. No outro dia, descobri porquê. A Ana de Amsterdam revelou o nome dos seus anteriores blogues e reconheci um, dos tempos do Arquivo Fantasma, que, quando terminou, deixou saudades - o Pano Cru. Dois anos depois, apanhei-lhe o rasto. Ainda bem.

[Sérgio Lavos]

01/08/07

Palavras

Quando alguém morre, alguém que tenha direito a mais do que um parágrafo na secção respectiva, os apaixonados são convidados a escrever de forma pessoal, é-lhes dada a liberdade de serem eles próprios e não o veículo de uma notícia ou de uma opinião (também se pode ser, pode; exemplos abundam). São textos de desassombro, de ajuste de contas com a angústia derrotada provocada pela inevitabilidade do tempo. São textos, quando bem escritos, tocantes. Mesmo quando a figura que morreu diz pouco a quem lê, de algum modo o que os apaixonados dizem da sua obra ou da personalidade redime o desconhecimento.
Por regra, são estas as edições que se guardam dos jornais; os nossos ídolos morrem sempre provocando um sobressalto - quando não um pequeno terramoto. Sabemos que daqui a uns anos iremos folhear as páginas amarelecidas meditando no sentido que fará ainda guardar aquilo - ou talvez nem voltemos a mergulhar no rio que nos deixou para trás. Se o fizermos, contudo, estarão lá as mesmas vozes, de jornalistas a quem entretanto perdemos o rasto, recordando o tempo que passaram com tal ou tal poeta, pintor, cineasta - livros, pintura, filmes.
Provavelmente, apenas isto, a vida de cada um, a sua relação com quem morre, interessa a quem lê.
Ontem, Mário Jorge Torres e as suas idas ao cinema a conselho de Vergílio Ferreira, Luís Miguel Oliveira e as mulheres, Bénard da Costa oral e ainda assim lúcido e sentimental, lembraram a vida deles com Ingmar Bergman. Hoje, eles ou outros recordarão Antonioni. Guardaremos o jornal, as palavras. Cada morte é uma oportunidade de recriar uma vida. Relembrar o vazio que nos espera.

[Sérgio Lavos]