29/12/07

O prazer do esquecimento

Leia o seguinte texto:
Sentado no meu cadeirão, lendo (finalmente) Doutor Pasavento, de Enrique Vila-Matas, vejo o céu ir ganhando as cores do fim do dia, e o tempo a ir atrás, desaparecendo para lá dos telhados cinzentos e das chaminés de Inverno, fumegando. A verdade é que não leio, escrevo. E escrevo achando que é cada vez mais reduzido o tempo que temos para deixar o tempo passar, fluir sentindo cada minuto desaparecer. A leitura é um bom cronómetro do tempo interior. Se deixarmos os sentidos levantar voo, melhor ainda; dá para pensar em tudo o que guardamos para pensar depois, dá para que o corpo se vá infiltrando no pensamento, sentir o cheiro da pele, a pulsação, o movimento interno a construir a imobilidade externa: tudo é imóvel, fora do corpo, o tempo é uma larga extensão que a memória percorre.
Li o livro? Acompanhei a história desse médico inverosímil, o seu percurso para o desaparecimento? Se o li, já desapareceu, confirmo a intuição de Blanchot. A história desapareceu do lugar onde estava: aquela hora em que eu, sentado no cadeirão ao fim da tarde, percorri as páginas em sossego.
Uma acumulação inútil sobrepõe-se a tudo. Não sou um pessimista, mas convivo muito bem com o realismo do desaparecimento. Brinco com isso, escrevo ludicamente sobre o assunto, leio autores que desapareceram ou autores que dedicam as suas histórias ao tema. As estantes enchem-se de livros em que eu nunca irei pegar, nem sequer para ler as primeiras linhas. Se o que leio irá desaparecer, salvo milhares de livros do esquecimento - tudo o que não leio continuará a existir.
Alguém me sopra ao ouvido: as histórias que os livros contam nunca desaparecerão; sobreviverão aos escritores, aos homens. Recuso esta ideia antiga. Um mundo sem homens, onde as histórias insistem em viver, guardadas em bibliotecas borgeanas que ninguém poderá visitar. Imagino o ar de uma biblioteca vazia - o pó rarefeito cobrindo os livros, lentamente, até que se deixe de ver as palavras que estão escritas nas capas; até que desapareça o nome dos autores. A biblioteca, contudo, não está lá. No meu cadeirão metafísico, apenas existo eu e o livro que leio - a biblioteca é um esforço da imaginação, portanto mais material do que algo que tenha uma existência real e eu nunca tenha imaginado.
Anualmente, fazem-se balanços do que já se leu. Arruma-se os livros nas tristes prateleiras da memória. Transforma-se o livro em coisa inanimada, sem vida, um breve lapso de tempo preso num irrecuperável fim de tarde, a que nunca poderemos voltar. Classifica-se, cataloga-se, destrói-se a alma do livro.
Leu o texto precedente? Durará o tempo em que eu o escrevo, recuso que algum papel o condene ao esquecimento.

[Sérgio Lavos]

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