24/06/11

Ondas

As ondas eram para se chamar mariposas. O que levou Virginia Woolf a mudar de ideias não terá sido uma questão estética, mas sim metafísica, o que torna o episódio ainda mais fascinante. A nocturnidade preferida por esse provisório animal não se adequava ao tom diurno e solar que a escritora queria dar ao seu romance. E a metáfora das ondas acabou por ser uma segunda escolha que se revelou perfeita. Os versos de Shakespeare na origem de tudo: Like as the waves make towards the pebbled shore/So do our minutes hasten to their end. As ondas avançando em direcção à praia de seixos, e os minutos que as imitam, devagar. A metáfora continua ao longo do soneto: as ondas que vão se substituindo umas às outras; o tempo, imparável, o salto breve de uma palavra que vai desde o nascimento à maturidade, a juventude consumida, a velhice. Os dois últimos versos redimem – ou querem redimir - a voracidade da entropia: And yet, to times, in hope, my verse shall stand/Praising thy worth, despite his cruel hand. O verso do poeta levantar-se-á contra a mão cruel do tempo, em forma de elegia amorosa. O amor não derrota o tempo, refira-se; a poesia, sim, talvez, e a amada a quem o verso se destina.
Virginia Woolf leva também longe a metáfora, e no romance dá voz a seis crianças –a que se juntará uma sétima, ausente da narração, essencial para se compreender a obra. O experimentalismo da escritora nunca terá ido tão longe: um fluxo contínuo de consciência, em que as crianças vão falando à vez, ao longo dos anos, toma conta de tudo. Não há hierarquia no avanço da história ou uma ideia romantizada da infância. Cada tempo tem a sua importância. Mas a acumulação dos minutos levará sempre à inevitável melancolia da passagem do tempo. O movimento perpétuo do mar a despenhar-se na praia é ilusório: haverá um fim. A imagem da mariposa aproximando-se da luz para morrer ou esta ilusão de eternidade, das ondas debatendo-se na areia, que ilusão deveremos abraçar?
Mas as mariposas vieram de outro lado. Irromperam do décimo capítulo do livro de W. G. Sebald, The Rings of Saturn. Para ser mais preciso, de três páginas deste capítulo, a 274, a 275 e a 276, na edição inglesa da Vintage. Não deveriam ter sido mariposas, mas sim bichos-da-seda. A descrição do ciclo de vida destes insectos ensaiada por Sebald é um daqueles momentos em que julgamos que a literatura é superior à vida: perfeita. Sabemos como os bichos-da-seda vivem: para se alimentar enquanto larvas, e depois de renascerem borboletas, para propagar a espécie. Morrem pouco depois desta certeza. E é tudo. Resumir desta maneira o mistério da vida – parece que não há qualquer mistério, não parece? – é um triste esforço. As palavras de Sebald, em duas páginas (mais duas linhas na página seguinte) contam uma história diferente deste seco resumo, são o sopro metafísico que atribui sentido à mecânica natural. A mesma vontade metafórica de Virginia Woolf ou de William Shakespeare. Muito mais do que capturar a beleza das borboletas (como fazia o sádico Nabokov – e apenas a sua genialidade o desculpa).
A tal metamorfose – das palavras. Descrevemos a Natureza com as palavras mais simples, as imagens mais práticas. Vem um poeta, um romancista – ou um ensaísta – e tira-nos o fôlego com uma facilidade que nos deixa ao mesmo tempo com uma terrível inveja – quase tão terrível como o ciúme de Iago – e sofrendo de um amor fulminante; pior, platónico. O nosso amor pelas palavras dos poetas é um conforto maldito: acreditamos num sentido que não existe. O ciclo do bicho-da-seda, resultado de milhões de anos de evolução, transforma-se pela mão do escritor, em outra coisa; que não queremos – nem devemos – nomear.
Até ao final do capítulo, Sebald continua a falar do comércio de seda na Europa, desde as primeiras trocas comerciais com a China – antes de Marco Polo, antes da rota da seda que Alessandro Baricco recorda na sua belíssima novela Seda – até ao século XX, quando a Alemanha nazi decidiu incentivar a produção do país. Terá sido, aliás, graças a este incentivo, que criar bichos-da-seda se tornou um hábito entre as crianças – e não deixa de ser tragicamente irónico que um passatempo de crianças, tão pueril como as brincadeiras que as personagens de Virginia Woolf têm na praia, tenha aparecido em tais condições.
Nunca criei bichos-da-seda, porque nasci no campo. O contacto com os ciclos da Natureza aconteceu porque tinha de acontecer. Quando vinha a Primavera, as borboletas despiam-se dos casulos amarelos que tinha estado todo o Inverno presos aos muros da casa e começavam a voar. Pensando bem, talvez não soubesse na altura como era curta, a vida delas. Nunca tive ninguém que me ensinasse o realismo da existência – e ainda bem. Sabia que as mariposas, castanhas, desprovidas, na aparência, de beleza, eram sinal de morte, como as corujas ou os corvos. No dorso de algumas mariposas, pode-se ver o desenho de uma caveira, o que ajudava à superstição. A beleza do voo suicida procurada por Virginia Woolf era um momento distante no futuro. O peso de toda a leveza do voo das borboletas (Kundera certamente perdoará o uso desta antítese) – gostaria tanto, por vezes, de não o sentir.
Procuro então as palavras que anestesiem. Ou que imunizem. As palavras de Sebald, no final, ao evocar um episódio contado por Sir Thomas Browne no seu livro, Pseudodoxia Epidemica – e Browne é a glosa que conduz todo o capítulo. Quando vivia na Holanda, Browne tinha assistido a um costume que entretanto deixara de ter lugar: quando alguém morria, panos de seda eram colocados a tapar espelhos e quadros que retratassem paisagens ou pessoas ou aquilo que a Natureza dá, para que a alma, na sua última viagem, não se distraísse com o seu próprio reflexo ou com as delícias que deixava para trás.
Os livros de Sebald são catálogos de ruínas. Materiais: os lugares por onde o narrador se passeia, procurando vestígios de um passado derrotado; espirituais: tradições perdidas, ideias nunca mais pensadas; e imaginárias: as ruínas de uma Europa esquecida, antigo centro da razão, foco do mundo, uma Europa que se derrotou a si própria com duas guerras mundiais e com o progressivo esquecimento de uma antiga cultura. As paisagens do escritor são o espelho desta ruína espiritual; moral. Da imagem da passagem do tempo enquanto movimento contínuo – as ondas de Virginia Woolf – ao terror da imagem fixa da ruína, uma imagem na qual o passado sobrevive como resto, escolho sem vida. Nas pedras de uma cidade engolida pelas águas na costa de Inglaterra repousam as vidas de quem lá habitou; as ondas foram derrotando a pedra, com labor e paciência, persistência. Quando o narrador de Sebald lá chegar, sabemos da história apenas por alguns fantasmas visíveis: um farol numa encosta, pedras mergulhadas na água. A cidade que na época medieval tinha sido um dos principais portos ingleses, centro de produção de arenque, eixo de um vaivém comercial importantíssimo. Tudo memória, sepultada pelas ondas que imitam o tempo.
Mas as palavras; as palavras que trazem instantes, como peixes numa rede, e os emaranham. A literatura contraria esse cruel avanço do tempo, a ladainha das ondas na praia, a inevitabilidade do voo das mariposas contra a luz. Em Sebald, o tempo contrai-se e distende-se ao ritmo da memória, e acontecimentos de diferentes anos sucedem-se, cruzam-se, confundem-se, referem-se, apontam, coexistem. O tempo sai “fora dos seus eixos” (Shakespeare), mas mantém uma coerência interna, uma estrutura suportada pela memória. Não há antes e depois nos livros – mesmo, e sobretudo, quando parece haver. Uma vitória? Uma ilusão, como o amor de que fala o verso de Shakespeare, que nasce quando o verso do poeta o manda nascer. Frágil ilusão: à verdadeira ilusão, sem memória, é impossível regressar; as crianças de Virginia Woolf perderam-se no avanço do mar.

- Texto publicado inicialmente na revista Alice -

22/06/11

alguns versos de cummings para ti

se eu acredito
                      na morte, podes ter
                      a certeza disto
                      é porque

                      me amaste        

21/06/11

Underwood 315


A Underwood 315 foi a minha primeira máquina de escrita. Foi a única mecânica que me pertenceu - usei outras máquinas que não eram minhas. O meu pai levou-me a uma loja de electrodomésticos e eu escolhi-a . Gostei do azul suave, das linhas elegantes. Ou talvez não*. Talvez tenha gostado apenas da expectativa; chegar a casa, abrir a caixa (havia uma?), pousar a máquina em cima da mesa do meu quarto, pegar numa folha em branco e começar bater com os dedos nas teclas. O tique-taque irregular das letras a bater no papel, o polegar e o indicador puxando atrás o rolo, os xxxxxxxx sobre as palavras que se querem apagar. Olhar para a máquina azul e branca, exposta ao lado de outras máquinas que acabei por recusar: um momento de felicidade. De que me esqueci**, e nem escrevendo sobre esse momento - agora num teclado que imprime as letras num ecrã que faz doer os olhos - o consigo focar. 

Há alguns anos, numa visita a casa dos meus pais, reencontrei a máquina coberta de pó, sujidade e ferrugem, no meio de um monte de lixo na antiga adega. Ao lado, uma caixa cheia de papéis antigos, jornais amarrotados, alguns livros sem préstimo, meus e não só. E a máquina, repetindo desde aquele dia em que foi comprada, o som das teclas a bater no papel. No silêncio ouvia-se o que tinha escrito: e tive mais certeza daquilo que senti na compra, da sensação de espera, do que daquilo que veio depois, tudo o que nasceu dela. Transformei a máquina numa imagem. Como gostaria de ter a imagem do momento em que a máquina veio parar às minhas mãos.

*Para dizer a verdade, é difícil, quanto recordo acontecimento passado, lembrar-me exactamente do que pensei, do que senti. Ou, dito de outro modo, não consigo ter a certeza se aquilo que no presente julgo ter sentido corresponde à realidade do que aconteceu. Imagino, romanticamente. Espero, para determinada situação, ter pensado a coisa certa. Mas não consigo escapar ao vórtice egoísta que anima o ser humano, e quase de certeza que aquilo que julgo ter pensado é apenas uma intenção, um esforço da imaginação.

**E foram tantos. De que restam apenas vagas recordações, alusões, sonhos que codificam a memória, a enovelam num emaranhado de símbolos e segundas leituras, remissões com destinatário desconhecido. Sei que tive esses momentos mas não consigo precisar a emoção sentida. O esquecimento é uma porta aberta para um tempo que pode não ter existido.

- As máquinas de escrever já não são fabricadas, a última fábrica fechou há uns meses na Índia. São agora objecto de museu, destituídas da sua função inicial. Esquecimento. - 

13/06/11

Metaficção

Falta uma hora para o jogo - menos alguns minutos.

Se soubesse como é difícil entrar na casa - deixar à porta
o sentido,
a oportunidade de silenciar o andamento das palavras,
o deserto.

Cortejo de despojamento, ternura;
mas não me enganam. Os olhos dos que me observam,
do fundo da sua gramática textual, são o alvo
que procuro quando a minha mão toca no espelho da entrada.
Rosto ao alto, triste e debruçado no abismo entre os dedos, uma sombra
na moldura que enquadra os vestígios da família,
retratos onde ainda vivo.

Regressar aos quartos desabitados, encher de malas por abrir
o vazio que me estende um anel de fogo desde a infância,
ouvir o clique dos interruptores esperando mais do que uma resposta surda -
a luz.

Os que me observam, perdido nas trevas de um poema em ruínas -
Eliot sentado no sofá, Pessoa rodeado de fantasmas,
Al Berto debruçado sobre néons, fiapos de asas - um filme
ardendo no fim da noite.

Quarenta e cinco minutos para o jogo - o poema, morto ou vivo,
retira-se de casa. E eu fico.

12/06/11

Efeito especial

Uma nota de rodapé adicional

Quero eu dizer com isto que Franzen tem alguma coisa a ver com Stephen King? Não. O romance caleidoscópico de Franzen - em que cada capítulo se encaixa no seguinte fazendo avançar a narrativa é resultado de uma técnica que, à superfície, é demasiado previsível, mas que acaba por ser bastante eficaz e quase inventiva. A história da família Berglund contada em Liberdade é a história de um arquétipo; Franzen consegue partir do particular para o universal (se não para o universal, pelo menos para uma tentativa de compreensão do que é o espírito americano, a América dos últimos 50 anos), sem pretensão nem desnecessária pompa. E tem outra qualidade: o mau-gosto é raro, apesar das variadas descrições do acto sexual ensaiadas. Um escritor que não meta os pés pelas mãos em cenas de sexo - e há tantos exemplos de grandes que o fazem - coisa rara que deverá ser evidenciada. Pensando bem, Stephen King não deveria ter sido para aqui chamado, a não ser como exemplo de uma espécie de talento que o canône literarário e o tempo tendem a esquecer: a capacidade de capturar a atenção do leitor desde a primeira página.

- O parágrafo que faltava ao texto sobre o romance de Franzen, acrescentado à versão publicada no Arrastão -

11/06/11

Engano e preconceito

Cheguei a este questionário Naipaul através do Luís M. Jorge e, partindo do pressuposto de que a credibilidade do teste está acima de qualquer suspeita, posso afirmar que tenho algum olho para distinguir as linhas escritas por mulheres das que são escritas por homens. Acertei 8 em 10, e posso dizer que o fiz com método. Achei que a pessoa que decidiu fazer o teste - uma mulher, provavelmente* - escolheu frases de romances que conduzissem à sabotagem dos preconceitos de quem lê, assim se provando que a tese de Naipaul está, para além de qualquer dúvida, errada. Descrições físicas de homens, por exemplo, atenção ao pormenor ou preocupações comezinhas das personagens são, quase sempre, itens bastante reveladores. Por exemplo: é raro o romance escrito por mulheres com referências à política ou ao desporto. Seria de esperar, portanto, que um teste cujo objectivo seja defraudar as expectativas de quem o faz aproveite este tipo de ideia feita para ser bem sucedido. Há, claro, armadilhas deste tipo. E há um escritor lá pelo meio que tem um modo bastante feminino - minucioso, atento, delicado - de descrever cenários e lugares. Mas, felizmente para mim e infelizmente para o autor do teste, eu reconheci de imediato a obra citada**. 
Há género, na literatura? Não é esta a pergunta que queria fazer, e os milhares de páginas escritas sobre o assunto poderão ser facilmente consultadas ou adquiridas via Internet. Bem podem os críticos oriundos dos gender studies falar em construção de género; sendo o género uma construção social, e não biologicamente determinado, é natural que se consiga, na maior parte dos casos, perceber quando o texto foi escrito por uma mulher***. Parece-se esta afirmação incontestável e assim sendo passo a concluir que o teste Naipaul tem tanto de inútil e idiota como a afirmação do escritor que está na origem da brincadeira. E, de resto, não me posso pronunciar sobre muito mais porque não conheço o escritor. Mas o questionário é giro. E chega.

*Reafirmo o preconceito.

**Da lista de dez livros, li mais dois, mas não os identifiquei a partir dos excertos publicados. Não será por acaso que o único detectado seja um dos livros que eu mais gostei de ler nos últimos dez anos.

***Optar por escrever "mulher" em vez de "homem", nesta frase, revela a importância do auto-controle quando se escreve sobre temas sensíveis com este. Tudo passa por aquela ideia do leitor ideal; que, no meu caso, é uma mulher vagamente feminista e inteligente o suficiente para não apreciar por aí além o que escrevo. A beleza física não cabe neste ideal, é a segunda parte da história.

07/06/11

Liberdade

Há nos dois livros (Correcções e Liberdade) do "grande romancista americano" uma competência burocrática que mimetiza a perfeição de um bom escriturário. Esta frase só seria um elogio se falássemos de um verdadeiro escriturário que se dedicasse à escrita, como Kafka ou Pessoa. Agora, um escritor a tempo inteiro que faz trabalho de escriturário desperdiça o talento em coisas menores, como por exemplo chegar a uma "vasta audiência". E os heróis de Franzen (como os de James Wood) nunca chegaram a essa "vasta audiência"; Henry James, Flaubert, Tolstoy eram conhecidos, no seu tempo. Mas terão chegado a uma "vasta audiência", tendo em conta as taxas de literacia da época? É esse o engodo de Franzen, é isso que o afasta demasiado do génio de DeLillo ou Salinger para o aproximar da mestria previsível de Stephen King. E isso é uma lástima, o escritor em potência derrotado por uma ideia de romance realista* que ele em tempos defendeu num célebre ensaio-manifesto, Perchance to Dream. As intenções defraudando uma obra. Tipicamente americano. A cicatriz do crítico torna-se demasiado visível. Ainda assim, há tanta, tanta página memorável em Liberdade. Talvez o próximo seja de facto o "grande romance americano".

*Romance realista desdenhado pelo seu grande amigo David Foster Wallace, de quem vou digerindo os ensaios antes da investida na ficção, tarefa hercúlea. Inventividade e ironia, claro, como Franzen, mas não em versão condensada, para donas-de-casa espectadoras da Oprah. O que leva a outra curiosidade relevante: a Patty de Liberdade corresponderá ao estereótipo da leitora média de Franzen, as conquistadas pelo elogio fácil de Oprah. Franze é demasiado inteligente para não ter criado a personagem de forma deliberada; e é também suficientemente perspicaz para esboçar um Walter próximo de si, um alter-ego alternativo, uma sombra num universo falhado, o idealista literato e pretensioso em que Franzen se poderia ter tornado. Mas a "leitora média" não precisa de saber isto: a saga de uma geração falhada é único espelho necessário. Eficaz e extraordinariamente cínico. Qualidades nunca desprezíveis.
E Foster Wallace não tem amor pelos seres que inventa. Um ponto a favor. Vamos ver o resto.

01/06/11

Ou ou

A rotina é o refúgio dos cobardes. E quase todos desistem, mais cedo ou mais tarde. Ou: a rotina é a solução para a incerteza, o truque necessário para enganar a terrível verdade. Escolher que derrota queremos abraçar, é a única questão filosófica.