31/05/11

O Tio Bonmee que se Lembra das Suas Vidas Anteriores

Uma das coisas que me divertem – provavelmente porque gasto demasiado do meu tempo em desnecessárias inutilidades (e claro que há inutilidades necessárias, mas isso é outra vindima) – é espreitar os comentários dos espectadores no Cinecartaz do Público. Depois de ver os filmes, por princípio; que nunca uma opinião me faça alterar o fundamento dos meus preconceitos. Há umas semanas, fui ver um filme que declaro, desde já, ser fabuloso: O Tio Bonmee Que Se Lembra Das Suas Vidas Anteriores. Não vale a pena queixarmo-nos da extensão do título em português; em tailandês é ainda mais extenso e certamente mais impronunciável, quase tanto como o nome do realizador desta obra: Apichatpong Weerasethakul (fiz copy/paste do IMDB, para que se saiba). Certamente que todos se lembrarão que este filme ganhou a Palma de Ouro do ano passado e que esta decisão foi um incómodo para muita gente. Em concreto, recordo uma polémica nas páginas da Sight & Sound. Que o filme era demasiado hermético, lento, inacessível. Ora bem, o filme é seguramente hermético, lento, pouco acessível. Mas esta análise revela de forma mais decisiva os preconceitos e as limitações de quem a faz do que esclarece exactamente que objecto é este. A verdade, subjectivamente falando, é que o filme é uma experiência sensorial do outro mundo, uma viagem psicadélica entre tempos e espaços, uma provocação aos limites da verosimilhança extraordinariamente arrebatadora. Vivemos – nós, que apenas vemos imagens, sombras no ecrã – entre fantasmas, os fantasmas que visitam o tio Bonmee enquanto ele vai morrendo. E a morte, aqui, não é um abismo, não é um corte violento nem um nó dramático, à maneira do cinema ocidental. Não conheço o suficiente da cultura tailandesa para poder especular sobre a filosofia zen que motiva Apichatpong. Sei que a morte – e a vida, sobretudo a vida, a dolorosa preparação para a morte – não é o mesmo vulto negro do filme de Bergman, por exemplo; é um acidente, uma aceitação, uma desolação serena. Os espíritos da natureza, a irmã morta, o filho desaparecido em busca da alma que as fotografias roubam, o quotidiano pacífico de uma plantação, o ritmo das colheitas, o sol e as sombras da floresta. Um mundo afastado do mundo, do ritmo da cidade que é incrivelmente condensado naquela cena final em que uma família (que inclui um jovem monge budista que foge do silêncio do mosteiro) olha concentrada para um televisor num quarto de hotel, a realidade fora da realidade que acabámos de viver durante duas horas. Tudo desapareceu, com o desaparecimento de Bonmee, a derradeira viagem de regresso ao útero materno, a gruta inicial.

E depois leio (e agora cito de cor, porque já não encontro o comentário): “filme chato, fotografia péssima, o pior filme que já vi”. Ou algo que se pareça. A minha opinião vale tanto como a deste espectador, eu sei, e assim desculpa a minha ingénua presunção*. Onde está a diferença? Deveria perder o meu tempo em utilidades mais transitórias (há algum filme com carros em velocidade furiosa em cartaz?)

*Sobre a diferença entre opinião e crítica, coisa clara que muitos leitores de jornais parecem ainda não ter percebido, há muito escrito por essa net fora. O Luís Miguel Oliveira, por exemplo, tem vários textos sobre o assunto. Dizem tudo, e é admirável a pachora que ele muita vezes tem para explicar o que deveria ser evidente.

- Texto publicado no Arrastão -

29/05/11

Lei e Ordem

O homem da Lei, Jimmy Stewart, enfrenta o fora-da-lei usando o avental de criado. Julga servir o país, e a Declaração de Independência que ele jurou proteger. Mas quem mata Liberty Valance é o duro, John Wayne, que apenas reconhece a lei da bala. O primeiro fica com o crédito e a mulher, o segundo com a culpa e uma casa vazia. Mas é ele quem ganha. Os factos não precisam da lenda para serem a coisa certa a fazer.

28/05/11

La Coca

Um livro classificado como romance que parece uma reportagem jornalística; ou um relato autobiográfico; ou um ensaio sobre a memória e a sua falibilidade; um livro de viagens que conta histórias reais e inventadas, no qual as personagens existem na realidade mas com outro nome. Sobretudo, o prazer da leitura, frase a frase, a fluidez da escrita, a capacidade de cruzar diferentes tempos e criar um objecto que tem tanto de modernidade como o travo de uma língua portuguesa clássica cultivada por muito poucos na literatura portuguesa contemporânea.

Nada de pós-modernismo, uso de minúsculas, diálogos que não se distinguem do resto do texto, personagens que parecem todas ter a mesma voz, a voz do narrador, do autor, o tal do silêncio entre as palavras tornado piada literária, caricatura involuntária. La Coca, de J. Rentes de Carvalho, é mais do que isto. O narrador regressado a Portugal, anos 90, e uma viagem pelo Minho e pela Galiza que tem como intenção inicial investigar o tráfico na região, intenção que o avanço da narrativa acaba por sabotar. O narrador – convirá esquecer que o autor Rentes de Carvalho nasceu ali perto, em Gaia (filho de pais transmontanos), o Porto à espreita, e durante a adolescência foi viver com o pai para a fronteira norte entre Portugal e Espanha, o rio Minho pelo meio – reencontra amigos de infância, névoas de um passado em tudo diferente da memória que ele tem deste, filhos de conhecidos, estradas de infância e paisagens que se tornaram desconhecidas ou desapareceram. Encontra-se também com os homens do tráfico. Antigos contrabandistas de tabaco e bebida convertidos ao novo deus do haxixe, da cocaína e da heroína, os heróis de outra era, portugueses que negam ter alguma coisa a ver com essa actividade fronteiriça, galegos que fogem ao contacto do jornalista que vem da Holanda. A viagem é uma sabotagem da ideia inicial. Começa no presente mas acaba num passado irrecuperável. À crueza do contrabando de droga, da violência, as mortes e a prisão, é contraposto o romantismo dos antigos barqueiros que de noite atravessavam o Minho trazendo pacotes de maços de cigarros americanos. O episódio delicioso do pacto entre a guarda fiscal e os contrabandistas que existia no passado foi substituído por histórias de traições entre traficantes, acordos obscuros entre a polícia e os maiores chefes, delações de rivais, relatos exultantes da ascensão e queda de criminosos sem escrúpulos que acabam traídos por companheiros no crime.

A descoberta de um mundo novo que a memória tem dificuldade em aceitar, leva a que o passado seja tratado à luz distorcida de um ideal que, provavelmente, nunca terá existido; ou, mais provável, um ideal de vida imaginado. A memória é imaginação, sempre: recriamos o passado como um conjunto de imagens cuja substância é impossível de tocar. Teremos sempre de acreditar no que recordamos: a nostalgia é isto mesmo. E o narrador de La Coca ou, ouso dizer, Rentes de Carvalho – saí da leitura do livro convencido que pouco ou nada distingue os dois, e a prova desta convicção é assumir que, no limite, ficção e memória podem ser as duas faces da mesma moeda – não foge às suas armadilhas. Enredados na mesma teia em que ele caiu, chegamos ao fim igualmente perdidos. E isso é bom; muito, muito bom.

(La Coca, de J. Rentes de Carvalho, ed. Quetzal).

- Texto publicado no Arrastão -

21/05/11

Ceder

Quando nascemos, alguma divindade marca com uma cruz preta o nosso nome e a partir daí a vida não nos dará tréguas, não encontraremos senão obstáculos, chacota, ciladas, e teremos de suar a mais pequena alegria, remando, lutando contra a corrente, vendo os afortunados a deslizar na margem, de trunfo na mão, e sem nos permitirem a menor distracção, pois é isso que se espera de nós, que cedamos um instante ao desânimo para que a arma penetre até ao cabo.

Julio Ramón Ribeyro, Prosas Apátridas, ed. Ahab.

Por outro lado

Também há a versão de Wittgenstein: se nada tens a dizer, cala-te.

Words of advice for young people

Um conselho de quem não tem muito a aconselhar: se não compreendem alguma coisa - um livro, um filme, um quadro, a vida - escrevam sobre ela. Tudo parecerá muito mais claro.

20/05/11

Um caso de estudo

O Pedro Mexia, em duas entrevistas recentes (no Ipsilon e na revista Alice), admite a falsidade da sua escrita confessional, intimista. Ou a meia verdade, que é menos do que uma mentira inteira. É claro que sabemos que um entrevistado mente e simula, no registo mais confessional a que um escritor se pode dedicar. Uma entrevista é, formalmente, uma confissão. O bom entrevistador consegue arrancar do entrevistado coisas que este nunca esperou dizer em público. Mas é também verdade que a mentira poderá fazer parte desta dinâmica: e a pose do escritor - penso em concreto, apenas em escritores - facilita a dissimulação e a fuga. Mexia, o escritor que admite dever pouco à imaginação, criou uma personagem que os leitores acreditam ser real, e confunde ainda mais os dois planos quando se confessa. Por isso, podemos relativizar a importância da sua poesia, admirar a independência do seu trabalho crítico, gostar das suas crónicas, mas a verdade da literatura, essa, resiste estoicamente, admiravelmente, no seu blogue. E há muito poucos assim, em pleno aproveitamento das potencialidades que o meio oferece.

15/05/11

O Estranho Caso de Angélica

A pose encenada de Angélica, um portento de beleza e mistério, será uma chave para se compreender o cinema de Manoel de Oliveira. A distância entre os códigos do cinema moderno, que supostamente será mais realista, longínquo do teatro filmado que, nas palavras do cineasta, o cinema nunca deixou de ser, e os que sustentam a obra de Oliveira, terá sido o que criou o mito sobre o cinema de Oliveira e, por metonímia, o cinema português. Maravilha, ainda bem que assim é. O realizador de 103 anos é o cinema português, e ter conseguido criar uma obra como O Estranho Caso de Angélica é um milagre. A idade não é um problema: há mais modernidade neste filme - apesar dos efeitos especiais evocando o cinema clássico de Meliés ou o expressionismo alemão - do que na esmagadora maioria das estreias com pipocas dos últimos dez anos. Uma modernidade que recorre, com uma inteligência fulgurante, a citações, à metaficção, à ironia, ao jogo intertextual com a anterior obra e com a obra de outros autores. E há, ainda, o prazer da descoberta. Nunca me terei apercebido do modo perfeitamente distanciado, auto-irónico, como Oliveira encara a utilização de actores amadores e a artificialidade pomposa do seu desempenho - um dos horrores que lhe apontam, como se um filme como Avatar fosse menos artificioso do que qualquer um de Oliveira. Mas sim, espantoso, Oliveira sabe, e brinca subtilmente com isso, demonstrando através das imagens o que já afirmara em entrevistas. 
Voltando a Avatar - e apetece falar deste filme que diziam ir revolucionar o cinema -, nem o mais perfeito 3D poderia provocar em nós o efeito que a sequência final de O Estranho Caso de Angélica provoca: um plano comovente, por tudo o que sabemos do que existe fora da sala de cinema, mas um plano também que nos engole e, num prodígio de magia, nos coloca dentro do filme, mergulhados na mesma escuridão do fotógrafo que se perdeu de amores por uma morta. 
E, por entre deliciosos anacronismos, a beleza da paisagem do Douro fotografada de forma brilhante, uma montagem perfeita complementada por uma montagem de som que cria fantasmas sonoros em cada cena, homenagens nada veladas ao cinema soviético (e juro que vi John Ford em alguns contra-picados), somos derrotados pelo vigor de um artista que merece muito mais do país onde calhou nascer. É um cliché, mas é também verdade. Um pecado não ver esta obra-prima.

14/05/11

Certo e errado

A raridade não está naquele momento em que julgamos encontrar a pessoa certa; é sim, passado tanto tempo, aquela ainda ser a pessoa certa. Até que o tempo desista de si próprio.

13/05/11

Nada se perde

O blogger esteve em baixo durante algum tempo, e a avaria acabou por apagar posts por todo o lado. Sem danos, parece-me. Nada ter-se-á perdido. No caso do auto-retrato, estava aqui um texto de Julio Ramón Ribeyro, citado do blogue em papel, um diário não datado, que leva o título de Prosas Apátridas. Textos curtos, certeiros, melancólicos, pequenos apontamentos do quotidiano, para se ler enquanto não se dorme - hábitos antigos que tinham sido interrompidos. Não vou republicar, é só espreitar em qualquer boa livraria, como se diz - e pode-se consultar à socapa, sem comprar o livro, dada a brevidade dos textos - a, mais uma vez irrepreensível, edição da Ahab. A emissão volta à sua irregularidade dentro de momentos.

Manuel António Pina


Como escreve o Miguel Serras Pereira, o Prémio Camões está de parabéns por ter escolhido Manuel António Pina. Cronista lúcido, inteligente e elegante, escritor de livros para adultos que as crianças também gostam de ler, excelente poeta. A escolha foi um desvio à monotonia habitual deste tipo de prémios de carreira, e ainda bem.

Arte Poética 

Vai pois, poema, procura
a voz literal
que desocultamente fala
sob tanta literatura.

Se a escutares, porém, tapa os ouvidos,
porque pela primeira vez estás sozinho.
Regressa então, se puderes, pelo caminho
das interpretações e dos sentidos.

Mas não olhes para trás, não olhes para trás,
ou jamais te perderás;
e teu canto, insensato, será feito
só de melancolia e de despeito.

E de discórdia. E todavia
sob tanto passado insepulto
o que encontraste senão tumulto,
senão de novo ressentimento e ironia?

Poema incluído em Os Livros, ed. Assírio & Alvim, 2003

- Publicado também no Arrastão -

11/05/11

Signos

Enquanto o meu filho brinca no seu quarto e eu escrevo no meu, pergunto-me se o acto de escrever não será o prolongamento das brincadeiras da infância. Tanto ele como eu estamos concentrados naquilo que fazemos e encaramos a nossa actividade, como sucede amiúde com as brincadeiras, de forma mais séria. Não admitimos interferências e corremos imediatamente com o intruso. O meu filho brinca com soldados, automóveis e torres, e eu brinco com as palavras. Com os meios de que dispomos, ambos ocupamos o tempo e vivemos num mundo imaginário, embora construído com utensílios ou fragmentos do mundo real. A única diferença é que o mundo de diversões da criança desaparece quando deixa de brincar, ao passo que o mundo literário do adulto, para o bem e para o mal, permanece. Porquê? Porque os materiais do nosso jogo são diferentes. A criança usa objectos enquanto nós utilizamos signos. E para o caso, o signo é mais duradouro do que o objecto que representa. Deixar a infância para trás é justamente substituir os objectos pelos seus signos.

Julio Ramón Ribeyro, Prosas Apátridas, ed. Ahab

10/05/11

A feira dos novos horrores

Talvez a Feira do Livro mereça nova visita, menos apressada e sem ter a agenda preenchida, mas o que vi foi o suficiente para confirmar receios e opiniões alheias: está pior, cada vez pior. Arrisco: a Feira já não é a feira que conheci e de que aprendi a gostar quando era um estudante com pouco dinheiro nos bolsos e muito por ler. Vamos lá ceder um pouco ao saudosismo, como quase toda a gente que fala ou escreve sobre a Feira: ainda temos farturas e subidas e descidas, é certo, mas já não temos a igualdade democrática dos stands a cair da tripeça. Havia grupos, sim, mas cada barraca valia por si só; as ilhas dos grandes grupos presumivelmente trouxeram mais visitantes - carece de confirmação isto, e as informações de gente do meio indiciam o contrário - mas transformaram a celebração anual do livro num colorido carnaval aproveitado pelos diferentes entre iguais para "escoar" os seus "produtos". Os mastodontes editoriais que pespegam barras anti-furto à entrada do condomínio de luxo e espalham seguranças de maus modos pelo "espaço" limitaram-se a abrutalhadamente tomar conta de mais um "canal de venda", igual a qualquer hipermercado ou cadeia de livrarias. Os gestores de produto que começaram a dirigir as editoras, alegres substitutos dos editores à antiga, pensam apenas no que estão formatados para pensar: o máximo lucro com o menor custo. Por isso, que se espalhe pelo mundo a mensagem colorida, folclórica, jovial desta gente. Os livros são um pormenor, a literatura qualquer coisa de que eles ouviram falar na televisão. E o cúmulo deste admirável mundo novo é a lombriga gigante plantada no meio do recinto, a brilhante invenção do arquitecto pós-moderno contratado pelo antigo administrador de um banco, bibliófilo cujos méritos muita gente se apressou a reconhecer, o túnel do hiperespaço babélico que suga tudo em redor para um vórtice fantasmagórico que faz lembrar vagamente um lugar onde vivem livros. Que o responsável pelo aborto arquitectónico seja presidente da associação que organiza o acontecimento, um detalhe um pouco mais do que interessante. A rédea soltou-se há alguns anos, e por isso aqui chegámos.
Quando me tornei livreiro e deixei de frequentar com o mesmo amor a Feira - é verdade que a profissão esvazia um pouco o romantismo sacralizado que rodeia o universo dos livros - este período era sempre o mais temido, pela previsível quebra nas vendas. Mas nunca deixei de o frequentar, nunca deixei de passear por ali, na esperança de encontrar um livro que ainda não conhecesse. De ano para ano, a vontade esmorece. E este, apesar das surpresas e dos encontros inesperados que irei recordar com o amor de outros tempos - vá lá, ainda se pode ter prazer em conhecermos um escritor que admiramos, pedir um autógrafo, dizer a coisa errada no momento certo - confirma o pior dos meus receios. Por mim, pense-se a sério na proposta do Pedro Piedade Marques: duas feiras, uma para os três grandes grupos (claro que o terceiro grande grupo é uma fraude, a quota de mercado que preenche nem de perto nem de longe é tão alta como foi afirmado, mas enfim, não vale a pena contradizer o que foi soprado para os meios de comunicação social)  e outra para os editores que querem apenas vender livros, maus ou bons, novos ou raridades. Livros, livros, não "produtos". É assim tão difícil perceber a diferença?

09/05/11

Bonmee

Filme com fantasmas e outros espíritos da natureza. Uma experiência de regresso a um tempo em que o cinema era mais sensorial do que intelectual. Não precisamos da razão para sentir uma imagem.

(Agora que revejo alguns fotogramas, percebo que gostei mais do filme do que tinha imaginado. Revisão urgente da matéria.)

Tempo

Reduzir os grandes acontecimentos à sua verdadeira importância é a única forma de compreendermos como são importantes os pequenos, os do dia-a-dia, as coisas banais de que se vai fazendo o tempo.

04/05/11

Barcelona

Enquanto José Mourinho luta, perto dos cinquenta anos, com o seu passado, eu recordo uma crónica de Enrique Vila-Matas em que ele fala da sua amizade com jogadores do Barcelona e do interesse destes pelos livros. Nos anos 90, Guardiola mostrava elegância dentro e fora do campo, discutindo literatura com o escritor catalão. Nadal, o tio de Rafael, era também um leitor regular, e o amor pelo Barcelona de Vila-Matas vivia também destas histórias paralelas, prolongamentos dos títulos conquistados com Bobby Robson e Louis van Gaal, da classe pura de jogadores como Stoichckov, Romário, mais tarde Rivaldo e Figo, Ivan de la Peña. O Barcelona, entre meados dos anos 90 e 2009, era a minha equipa espanhola, e para essa afeição não era certamente pouco importante a política. O clube autonomista, tradicionalmente ligado à esquerda, o clube dos românticos e de quem gostava de ver jogar sem pensar em coisas comezinhas como resultados ou títulos. O Barcelona de Rijkard era algo diferente, mas era um prazer, à velha maneira holandesa de jogar à bola. Uma máquina de circulação de bola, e o génio de Ronaldinho Gaúcho a servir a Henry e Eto'o. Um prazer recompensado com um título europeu e o melhor futebol do mundo. Depois, veio o gentleman Guardiola, o intelectual, cordato, correcto, um homem da casa. E Messi cresceu, e tornou-se o olho do furacão morno em que se transformou o futebol do Barcelona. Jogos com mais de 70% de posse de bola, toques curtos desde a defesa, progressão andebolística, o último passe de génio de Iniesta ou Xavi a libertar um qualquer para marcar. Resumindo, um tédio perfeccionista, um aborrecimento descomunal que apenas conquista a admiração sincera de quem estudou demasiado as minudências do jogo (pense-se em Luís Freitas Lobo, e sabe-se do que eu estou a falar) e se esqueceu daquilo que leva os adeptos ao estádio:a emoção, a incerteza, a imprevisibilidade. A equipa barcelonesca é um robô repetitivo, um deep blue imbatível que, com a anuência simpática do mundo e o gesto cortês dos árbitros que vai apanhando, derrota os outros adversários, humanos e imperfeitos. Mesmo o melhor de todos eles, Mourinho. Sempre a mesma táctica, o mesmo plano de jogo, a narrativa perfeita. O mito nasceu - a equipa com o melhor jogador de sempre, quem sabe se a melhor equipa de sempre. Como é possível ter acontecido o desastre da época passada, quando o Inter foi capaz de derrubar o mito? Nunca, e por isso não poderá voltar a acontecer. Os ídolos têm pés de barro, e Mourinho mais do que provou isto, no Chelsea, no Inter, no Real Madrid. A cagança dos heróis do futebol convenceu toda a gente a olhar para o lado perante o espectáculo miserável de jogadores a atirarem-se para o chão ao mínimo toque. Busquets é o bebé chorão que toda a mãe sonha ter, Daniel Alves passou do segundo melhor lateral direito do mundo, um jogador excepcional, a fiteiro incorrigível, provocador e briguento, e sempre perdoado pelos árbitros. Salvam-se alguns: Iniesta, Xavi. E depois, Messi, o extraterrestre, o monstro alimentado pela equipa e pelo resto do mundo. Os consecutivos falhanços do jogador argentino na selecção, nos antípodas do deus Maradona, são um indício claro da importância do sistema de jogo e da qualidade dos restantes companheiros no Barcelona. Maradona carregou às costas uma equipa, um país, uma nação ferida por uma guerra perdida contra um país europeu. E em Itália, voltou a fazer mesmo, contrariando possibilidades estatísticas e a influência dos poderes da FIFA que não queriam ver repetir-se uma vitória da Argentina. Messi, para já, habita outro reino, um Olimpo inferior ao deus maior.

Por isso, meu caro Vila-Matas, lamento ter deixado de gostar do Barcelona. Pesaroso, lembro a minha primeira visita à cidade catalã e a romaria ao Camp Nou. Aquela grandiosidade, a popular mística, era verdadeira. Barcelona vivia o clube e eu vivia com a cidade quando via os jogos do campeonado espanhol, e sentia um gozo enorme sabendo que Guardiola era leitor de Borges e de Kafka, e que um dos meus escritores preferidos se sentava com os jogadores naquele café da Praça Catalunha de que agora não quero recordar o nome a falar de futebol e livros. Uma narrativa belíssima, uma história inatacável. Sei que voltarei a gostar do clube, mas entretanto chegou Mourinho, o engenhoso construtor de narrativas, o treinador pós-moderno, o espelho de uma vaidade que lhe vai roubando a juventude. O Real joga à defesa, é certo, mas jogará o Barcelona ao ataque? Talvez não interesse, mas sei que o plano de Mourinho para estas meias-finais perdidas foi boicotado pelos dois árbitros. A defesa era apenas a primeira parte da história. Mas Daniel Alves decidiu voar e cair deitado no chão a queixar-se de umas dores que nunca existiram. Imperdoável. Vergonhoso. E tudo se desmoronou. Esqueço a finta maravilhosa de Afelay e o monumento de Messi no segundo? Nunca. Mas a beleza desses dois momentos já tinha sido obliterada pelo erro anterior. A emoção foi-se. Ficou a aborrecida perfeição da máquina futebolística barcelonesca. A inevitabilidade da vitória. E isso não é poesia. Eu sei que compreendes. Falamos daqui a uns tempos.

- Publicado também no Arrastão

02/05/11

Amis e Hitchens

Belíssimo texto, o que hoje foi publicado no P2, escrito por Martin Amis para o seu amigo Christopher Hitchens. Do primeiro gostaria de gostar mais, mas provavelmente o que li dele não foi suficiente. Em relação a Hitchens, o que lhe sobra em prosápia, na sua vontade constante de provocar, faltar-lhe-à em discernimento e decoro, a palavra várias vezes repetida por Amis ao longo do artigo. Um dos livros que mais me desagradou nos últimos anos foi o seu panfleto anti-religioso "Deus não é Grande". Não porque não concorde com as suas motivações, mas porque o texto é um longo manifesto que tem tanto de provocador e de elegância na escrita como de argumentário básico e tão fácil de desmontar como um lego erguido pelas mãos de uma criança. O livro é a prova de que um ateu pode ser tão fervorosamente crente como o pior fundamentalista. Péssimo serviço à causa. Tirando este pormenor, Hitchens é grande. E Amis, depois do texto de hoje, merece uma segunda oportunidade.