31/07/06

O Verão

Quando saí da sala de cinema, pensei num sítio agradável para se estar com algum tempo, lendo o jornal ou um livro, fumando um cigarro, ignorando a urgência das horas. Não que o filme (A Lula e a Baleia) me tenha causado uma impressão duradoura. Rara é a vez em que saio para o dia um pouco diferente por dentro, mas não sei se o defeito é meu - excessivo rigor ou escolhas dúbias - ou se é apenas a normalidade a funcionar como sempre: em cada ano, talvez apenas cinco ou dez filmes se fixarão na memória, talvez menos. A mediania da obra - repetindo os clichés de um certo cinema americano recente, desde Wes Anderson até Todd Solondz - evita que se escreva muito mais sobre o assunto.
De qualquer modo, não era sobre isso que queria escrever. Queria antes falar da escassez de casas em Lisboa para se fazer uma coisa tão simples como beber um café e ler o jornal demoradamente, sem correr o risco de sermos apressados pelos novos clientes que chegam ou incomodados pelo volume de ruído ou a agressividade de uma sala cheia de fumadores. O meu fumo, prefiro que seja o mais solitário possível. O ideal seria eu poder fumar em salas para não-fumadores, quase vazias, duas ou três mesas ocupadas, um casal discutindo baixo, uma mulher solitária escondendo os olhos num livro que podia ser "A Espuma dos Dias" ou um volume dos contos escolhidos de Raymond Carver, as pernas cruzadas por baixo da mesa espreitando do joelho para baixo, saia suficientemente comprida para um espírito púdico, curta quanto baste para sugerir o desejo.
(Lia há uns tempos um historiador a falar dos passeios da Avenida de há cem anos atrás, por onde cirandavam homens tentando surpreender num palso em falso os tornozelos das mulheres que se tapavam - e se mostravam simultaneamente à sociedade. Cada tempo tem os fetiches que merece ter. E isto não pretende ser um aparte reaccionário.)
A abundância de espaços comerciais gigantescos é inversamente proporcional ao vigor da nossa economia terceiro-mundista e directamente relacionada com o atitude dos nossos empreendedores - provincianos megalómanos vivendo à custa de uma exploração intensiva das pequenas ideias que têm. Não tardará muito até que o país retribua esta pobreza de espírito. Enquanto isso, continuemos assistindo de balcão ao empobrecimento do estilo de vida dos portugueses - centros comerciais, créditos desnecessários, entorpecimento das ideias e do pensamento, iliteracia sem solução. Sobre o assunto, ler também o livro de José Machado Pais, Nos Rastos da Solidão.
Acabei por encontrar o tal lugar que procurava, a cafetaria Continental, quase vazia, dia de Julho sem estudantes - a minha FCSH ali a dois passos - os sofás gastos onde me posso recostar sem culpa, durante uma, duas horas, pegar no bloco de notas e escrever sobre o bloco de notas que acabei de retirar da mala. Deitei depois o texto fora, e não fumei um cigarro - estava na zona de não-fumadores. Meia-dúzia de pessoas olhando para o ecrã que passava vídeos musicais, dois ou três yuppies (ainda existem?) no intervalo para descanso, mais duas ou três raparigas e rapazes com aquele ar vago de estudante, semelhante ao que eu ostentava quando por ali também andava - pouca coisa muda, talvez as roupas, pouco mais.
À noite, vi um filme de Godard que nunca tinha visto, em casa - Pierrot Le Fou. Entre este e o filmezinho da tarde um abismo, um universo de distância. Engraçado, o facto de Jean-Paul Belmondo ser citado em A Lula e a Baleia. O Belmondo de O Acossado, passando o dedo pelos lábios à maneira de Bogart. Engraçado.

[SL]

Uma coisa a menos para adorar

Já vi matar um homem
é terrível a desolação que um corpo deixa
sobre a terra
uma coisa a menos para adorar
quando tudo se apaga
as paisagens descobrem-se perdidas
irreconciliáveis

entendes por isso o meu pânico
nessas noites em que volto sem razão nenhuma
a correr pelo pontão de madeira
onde um homem foi morto

arranco como os atletas ao som de um disparo seco
mas sou apenas alguém que de noite
grita pela casa

há quem diga
a vida é um pau de fósforo
escasso demais
para o milagre do fogo

hoje estive tão triste
que ardi centenas de fósforos
pela tarde fora
enquanto pensava no homem que vi matar
e de quem não soube nunca nada
nem o nome

José Tolentino Mendonça, incluído em A Noite Abre Meus Olhos, editado pela Assírio & Alvim

[SL]

30/07/06

O amigo israelita

No dia em que descubro por onde anda Alexandra Lucas Coelho - entrevistando exilados libaneses em Portugal, do modo a que ela me habituou, dando a conhecer uma realidade que os defensores cegos de Israel preferem não saber que existe - um massacre mais, um mais, repito. Os sessenta e tal mortos, crianças incluídas, mais não são do que a continuação do absurdo. Se lermos nas entrelinhas as palavras dos libaneses, hoje na Pública, percebemos a dimensão da incompreensão e da ira que vai crescendo no mundo árabe - árabe, sublinhe-se, não exclusivamente islâmico. Se este é mais um movimento no dominó democrático preconizado pelos burocratas das salas climatizadas de Washington, os meus sentidos parabéns pelo lindo serviço. Por cá, os cães-de-fila cibernéticos continuam a babar a sua sanha para cima dos teclados, a milhares de quilómetros do calor do massacre. Não me surpreende a fidelidade da direita. Já a de alguma esquerda deixa-me estarrecido. O benefício da dúvida caiu hoje por terra. Arrasado pelos mísseis cegos do amigo israelita.

[SL]

28/07/06

Take it or leave it

Ouvindo pela milionésima vez o álbum "Is This It", dos Strokes, confirmo que grande parte do concerto de Sábado passado apoiou-se no poder das músicas de um dos melhores álbuns de estreia dos últimos anos - apenas aproximado por "Funeral", dos Arcade Fire. Ouvindo pela milionésima vez este álbum, percebo que devo ter assistido a um concerto que vai ficar gravado na minha história pessoal como muito poucos - mais dois ou três, no máximo. E isto não se deve ao facto de achar que, desde o primeiro trabalho, os Strokes são a banda desta geração que mais fez para contrariar o relógio da História da música pop, o esquecimento. Os primeiros, os que desde o início conseguiram produzir um som próprio, partindo de influências que foram capazes de conciliar até chegar a um híbrido original e excitante: o som Strokes. Podiam ter letras mais conseguidas, podiam, podiam não se aproximar tanto de modelos pouco recomendáveis - Queen e Guns'n'Roses -, podiam, mas a trituradora do revivalismo punk e pós-punk também aceita outras sonoridades mais, digamos, heterodoxas. Se não tivesse já escrito tantas palavras antes, escreveria apenas: grande, grande concerto. Rock, como quase todos os grandes concertos são.

P.S.: Valeu a pena sair de casa, hein, Pedro?

[SL]

O que eu verdadeiramente penso (e nunca disse)

Isto.

[SL]

26/07/06

O Regresso

O modo russo de filmar a estepe contradiz de forma violenta as minhas ideias feitas sobre solidão e deserto. Há o caos desolador de Andrei Tarkovsky, ou a beleza rigorosa de Alexander Sokurov, e há também o meteorito que foi O Regresso, de Andrei Zvyagintsev. O mesmo cuidado em cada plano, em cada enquadramento, que os mestres que o precederam, mas um saber-fazer que não enjeita influências mais profanas na composição do filme. Há muito de Hitchcock na tensão que se vai acumulando, do mesmo modo que os céus de chumbo que ameaçam desabar a qualquer momento se vão adensando. E acontecem, várias vezes, movimentos em falso que redundam em nada e que, deste modo, acrescentam ainda mais nervo ao fio narrativo. O minimalismo trata cada cena como um todo, mas sem abusar da preguiça contemplativa que se podia esperar de um filme com apenas três personagens durante a maior parte do tempo. Os problemas que o argumento coloca - por um lado o desejo de filmar com um olhar certeiro as paisagens intensas da estepe russa, por outro a história do pai que regressa e leva os dois filhos (composições notáveis de ambos os actores) a uma viagem que desde o início prevemos trágica - são geridos eficazmente. Convivem sem problemas o macguffin hitchcockiano (a caixa desenterrada na ilha) e a perfeita composição das cenas, evocando pintores e a iconologia cristã - logo ao início, Andrea Mantegna e a descida de Cristo, a Última Ceia, mais para a frente a religiosidade profana do classicismo - Dante e a sua Divina Comédia, o transporte pelo barqueiro das duas crianças atravessando o rio do esquecimento. O fim da infância chega de modo brutal e sem remédio. A ausência do pai, que não permitiu a resolução do problema edipiano de forma simbólica e portanto inocente, vai redundar numa interpretação literal do tema da tragédia clássica de Sófocles. Os indícios estão lá, desde o início, premonições em forma de imagem imitando a tradição cristã, tão cara a Zvyagintsev, como aliás tinha sido em tempos a Tarkovski.

O azul que se apodera das imagens cria uma película entre a Natureza e o espectador, provocando um desconforto crescente que tem o seu auge quando a previsível tragédia finalmente acontece, não exactamente como esperávamos. Ritual de passagem simbólico e solitário, distante dos segredos do mundo dos adultos a que Ivan, o filho mais novo, não consegue aceder. Fôlego impressionante, fundamental.

[SL]

24/07/06

Uma opinião

No pingue-pongue da guerrilha verbal que se cultiva entre blogues, existe um excesso de duas coisas: sectarismo e ignorância. Da segunda nem vale a pena falar, porque é a de pior espécie: a de quem julga perceber mais de um assunto que nem os que o vivem há cinquenta anos conseguem entender na plenitude. Os blogues servem principalmente para o escriba achar que a opinião dele conta. É um impulso egoísta compreensível, e de resto muito próximo das jactâncias que a maior parte dos comentadores de televisão e de jornal produz em abundância diária. Saber em que pecado incorro não diminui a culpa, mas acaba por ser a culpa a motivar-me para a vida - é a minha (orgulhosa) herança judaica.

Discorramos então sobre o sectarismo, essa doença primária da democracia. Da esquerda à direita, é fácil cair na tentação do pensamento totalitarista que as ideologias promovem. Porque ainda não aprendemos a pensar, a utilizar de forma correcta os métodos que tornam a razão o único caminho possível para a sabedoria. Julgar cada situação primeiro isoladamente, compreendendo todas as nuances e rugosidades que a tornam distinta do resto, para depois entender como essa situação interage com as outras. Começar olhando de perto o objecto analisado e irmos afastando o olhar até que os outros objectos surjam como complemento e continuação do objecto inicialmente estudado. O todo não é uno, é composto de singularidades que, juntas, formam uma singularidade totalizante que, se quisermos enveredar pelo pretensiosismo, se pode chamar existência. Adiante. Regresso ao indivíduo, então.

Por exemplo, a questão do choque das civilizações (ainda não se tinha percebido que era disso que falava?). Pouco quero entender do assunto, porque sou apenas um blogger. Avalio porém o que me é mostrado diariamente pelos media, confiando na verdade que me contam. Não podia levar muito longe o meu cepticismo, de resto, porque qualquer relação ou troca com o exterior depende da mediação de algo em que tenho de acreditar. Acredito, então, na verdade que me mostram. Tomo uma decisão: elimino parte do passado. Interessa-me apenas o que sucedeu desde o acontecimento mais marcante da História mais recente: o ataque ao World Trade Center. A violência à escala global e, mais importante, uma violência que se alimenta da fome de notícias do público, uma violência que precisa da imagem para passar a sua mensagem. O choque do 11/09 não foram os quase três mil mortos soterrados sob os escombros; a onda propagou-se com uma velocidade estonteante porque todos puderam assistir no conforto dos seus lares ao colapso de um símbolo maior do poderio americano, falo duplo erecto em direcção a um Deus ausente. Por empatia, todo o Ocidente sentiu a castração. O Outro, de forma avassaladora, assinalava a sua presença e resgatava-nos do Éden alimentado pelo mais duradouro combustível da nossa sociedade: o consumo. Depois, aprendemos - ou vamos aprendendo - a conviver com o regresso do medo, aquilo que julgarámos enterrado nas cavernas que abandonámos há muitos milhares de anos atrás. Medo, não da morte surpreendente, vinda de um qualquer terrorista escondendo-se no nosso ninho, mas do fim do conforto de saber que iremos transmitir aos nossos descendentes um mundo melhor do que aquele onde crescemos.

Os E.U.A. responderam em nome desta ideia ameaçada. Atacaram o Afeganistão. Do ponto de vista ético, nada a opor. Era naquele país que escondiam os terroristas; e, no mesmo passo, aproveitava-se para tirar do poder um dos regimes mais retrógados do mundo. Mas não se podia ficar por ali. A América, com parte da Europa a reboque - primeiras divisões - decide atacar o Iraque. Razões, muitas, nem vale a pena enumerá-las, as verdadeiras e as especulações que se criaram. Gosto de pensar que a principal razão para a intervenção foi um complexo de Édipo muito mal resolvido por parte de Bush Jr. O filho tinha de acabar o serviço que o pai deixara a meio dez anos antes. Ponto. De erro em erro - quem acha ainda que o Iraque está melhor agora que estava antes da queda do ditador Saddam? - fomos alegremente descendo pela corrente abaixo até desaguarmos neste afluente principal da guerra global prometida pelos ideólogos neoconservadores. Claro que falo da invasão do Líbano. Permitida pela mítica América, não por acaso porto de abrigo para a diáspora judaica ao longo dos séculos. Este acontecimento, não sei se será mais ou menos importante que a intervenção no Iraque, por exemplo. Sei que tão cedo não iremos ter um presidente americano tão influenciado por correntes de opinião, tão dependente de outros, como este. E que, portanto, a insanidade da actual política externa americana não irá durar muito. Mas por enquanto, temos Israel destruindo completamente um país vizinho em busca de uma agulha no palheiro.

Certo e errado? Nem pensar. Os nossos e os dos outros. Os defensores da política externa americana - com a notável excepção de Fukuyama - irão sempre apoiar qualquer decisão desta administração. Não há sequer uma tentativa de pensar cada acontecimento individualmente, toda e qualquer argumentação encetada visa unicamente a justificação de decisões tomadas pelo governo norte-americano. A retórica que se tem usado nos últimos três anos dava um tratado. Todos ainda têm presente o absurdo do período pré-invasão do Iraque, as sucessivas "provas irrefutáveis" que foram apresentadas para provar a existência de armas de destruição maciça na quinta de Saddam. Ora, voltamos a passar pelo mesmo. O que se tem dito e escrito para justificar a quantidade de leis internacionais que Israel ignorou nas últimas duas semanas, apesar de estar condenado às páginas esquecidas da História - que elimina tudo o que é acessório, pensa sempre em grande - é de um absurdo retumbante.

O que restará? As ruínas de um país. Outra nação para reconstruir. Onde já vimos isto? Apenas lamento que muitos dos que estão contra este estado de coisas caiam facilmente naquilo de que são acusados: anti-americanismo primário, anti-semitismo secundário, burrice tout court. Se atiramos ao outro campo político a bola do sectarismo, estejamos preparados para que a acusação faça boomerang.

No diálogo de surdos que se (des)estabelece entre os dois sectarismos, perde-se, quase sempre, uma de duas coisas: o bom senso e a razão. Tudo se torna opinião sem importância, dislate disparatado ou puro non-sense argumentativo. Eu, orgulhosamente, junto-me à matilha. Longe, e sem querer cair num sentimentalismo pacóvio, continuam a morrer pessoas que não sabem muito bem que deus as castiga: se Alá, se Jeová, se o rasteiro deus da mesquinhez assassina, dilecto filho da vontade de poder humana. Quem, do lado de cá, para além da retórica de taberna, verdadeiramente se interessa?

[SL]

22/07/06

The Strokes

A caminho do concerto de logo à noite, fica a banda-sonora deste blogue durante os próximos dias. Um encontro de gerações, entre os The Strokes, Eddie Vedder e Josh Homme, numa cover de uma música do grande Marvin Gaye. Uma cover como deve de ser: transformando o som original numa coisa diferente, sem colagens óbvias nem adulterações sem sentido - penso nos assassinos por encomenda Nouvelle Vague, mas enfim, o problema deve ser meu.
A banda mais interessante da geração neo-pós-punk, ou qualquer coisa de intermédio, como se queira chamar. O que os torna os melhores da sua geração são duas coisas: a sua precedência sobre os outros, quase todos meros imitadores do som strokeano, e a excelência de todos os elementos da banda. No rock mais pesado, é quase sempre a superlatividade de cada instrumento que faz a diferença, mais do que as letras ou o carisma do frontman.
A guitarra de Josh Homme é também fundamental na escolha desta canção. Os Queens of The Stone Age têm sido, nos últimos tempos, a banda mais ouvida cá em casa. Rock vintage, a meio caminho entre ZZ Top e Alice in Chains, estimulante para os ouvidos e para a anca.
Mas isso é outra história. Para já, fiquemo-nos pelo aquecimento para logo à noite. Basta clicar.

[SL]

Descubra as diferenças*

Evito sempre escrever uma linha que seja sobre Israel. Em primeiro lugar, é um assunto armadilhado por fanatismos vários e quase me convenço, por isso, que a pacificação da zona é impossível. Em segundo lugar, porque é muito difícil eu não ser, instintivamente, pró-Israel. Admiro Israel e a sua fatídica História, muitos dos escritores que aprecio são (ou foram) judeus, e o mundo em que, apesar de tudo, mais me revejo tem uma origem judaico-cristã (a velha conversa sobre a importância do hífen). Depois, desde 1948 que Israel está em guerra com a vizinhança. A vizinhança não se recomenda e nunca se recomendou. Não esqueço que Israel é uma democracia cercada por ditaduras paranóicas - excluindo, porém, o Líbano, onde os terroristas do Hezbollah se escondem. E antes da Europa ou dos Estados Unidos conheceram o que é o terrorismo moderno, já Israel tinha sofrido na pele o fenómeno. Não é brincadeira.

Sucede que há outras razões. Sempre que o assunto é Israel, acabamos por ter de relembrar algumas evidências. Em guerra em curso de Israel no Sul do Líbano pode ser uma resposta à desordem dos tempos e, muito em especial, ao caos em que se transformou o Médio Oriente - agravado para além de qualquer conserto depois da intervenção americana no Iraque. Mas não é em absoluto uma guerra nova. Na essência, Israel perpetua uma guerra contra os países árabes porque os países árabes - com as excepções do Egipto e, é claro, o Líbano -, continuam a recusar que Israel exista.

Em 2000, Israel saiu do Sul Do Líbano que, depois disso, passou a ser controlado pelo Hezbollah; em 2005 deixou Gaza. O Sul do Líbano e a Faixa de Gaza têm sido usados pelos movimentos terroristas para sucessivos ataques de rockets contra Israel. O Hezbollah tem ligações ao Hamas. O Hamas tem ligações à Síria. E tanto o Hamas como o Hezbollah gozam da sádica (?) protecção do Irão, agora em fase nuclear.

Com um governo - eleito democraticamente - inepto do Hamas na Palestina, um Hezbollah descontrolado no Líbano, a cumplicidade da Síria e o lunático presidente do Irão, não se pode esperar dos isralitas brandura e benevolência. Não se pode esperar que sacrifiquem a sua segurança, que se abstenham, não se pode esperar outra coisa que não seja a invasão do seu vizinho Líbano, com a consequente perda de vidas civis e a destruição de infraestruturas básicas, em busca de terroristas do Hezbollah que, entretanto, poderão ter escapado já para a vizinha Síria. É uma guerra de um contra muitos. Como sempre foi.

*Texto que é, em cerca de 95%, uma cópia deste outro, escrito por Pedro Lomba no DN. Alterei uma ou outra coisa, incluindo algumas falhas de sintaxe. A diferença, como sempre, decide-se nos pormenores.

[SL]

21/07/06

Perguntas sem resposta

Qual o passe de mágica que consegue transformar a vítima em prevaricador (ver nota 4)?
A partir de que assimetria na contagem dos mortos se pode considerar que, vá lá, existe um ligeiro exagero na reacção de uma democracia a uma provocação de uma organização terrorista?
Quantas leis internacionais é que precisarão de ser transgredidas até que a organização que as produz e supervisiona decida, vejamos, criticar um pouco o transgressor?
A partir de que ponto é que se pode falar de termos tão claros como "catástrofe humanitária", "massacre de populações civis" ou, enfim, "genocídio"? Mil, dez mil, um milhão? De mortos, de feridos, de refugiados?
Quando é que finalmente estará saldada a dívida de cinquenta anos que mantém o Ocidente cativo de um Estado - Israel - que, por acaso, imita as acções de outro - Iraque - na mesma região, há quinze anos atrás, e que por tal atrevimento mereceu o devido castigo, desde a primeira guerra em 1991 até ao momento presente, caótico e sem futuro?
Desde quando é que a auto-proclamada superior cultura ocidental permite que se distinga entre "nós" e os "outros" de forma tão clara e assassina?
Até quando o medo?

[SL]

Revisionismo

Recomendo, no blogue verde-republicano de Alexandre Andrade, Um blogue sobre Kleist, as últimas entradas sobre o passatempo preferido de uma certa direita: o revisionismo histórico. Todas as revoluções ou guerras civis que se transformaram em ditaduras reaccionárias merecem a análise destes ideólogos de pacotilha. O perigo não reside nos inflamados revolucionários de extrema-direita - os pobres de espírito que ainda não perceberam que a democracia já soube criar os anticorpos suficientes para lhes dar o tratamento que merecem, o mesmo a que um parasita invasor tem direito; os moderados de extrema-direita são a verdadeira ameaça, os conservadores clamando ao vento um liberalismo oportunista e postiço. E mediático, para mal dos nossos pecados. Suponho que será isto o tal combate cultural de que Paulo Portas falava há uns tempos - depois do bronze artificial e imediatamente antes de se tornar comentador de futebol encartado.

[SL]

Desejo

África é o destino preferido das personagens de filme irremediavelmente românticas. Penso em Rimbaud e na sua desistência fulgurante, os longos anos passados como comerciante, tentando esquecer a sua vocação de artista maldito. Mas Rimbaud não é personagem de filme. Vou saltar também Rudolfo Valentino e os filmes do deserto, e Humphrey Bogart e Ingrid Bergman perdidos de amor em Casablanca. O rosto duro e luminoso de Peter O'Toole como Lawrence já me diz mais, serve de contributo para a minha geneologia pessoal do ocaso. Vou desembocar fatalmente em Um Chá no Deserto, em Debra Winger raptada por berberes e tomada pelo calor das areias, John Malkovich uma sombra projectando-se contra o céu de zinco que se abate sobre as infinitas dunas.
Eles viajam para se perderem de si próprios. O cliché imagético e literário recorda-nos o fatalismo de África. Se não contarmos com (alguns) filmes de Atom Egoyan ou Sharunas Bartas, ninguém foge do mundo procurando refúgio nas paisagens geladas do Ártico. Não há qualquer mistério no facto. O frio e o gelo tornam a solidão humana menos significativa. A paisagem nórdica é desoladora, mas no mau sentido, inspira apenas quem nela habita ao recolhimento e à mísera depressão sazonal, vazia e passageira. A existência vacila quando a temperatura sobe, terá a ver com a nossa condição de animais de sangue quente. Esqueçamos Kierkegaard. Esqueçamos Stig Dagerman - essa vergonhosa paixão de adolescência. Voltemos a Paul Bowles e a Al Berto, a Luís Miguel Nava e a Malcolm Lowry (o calor mexicano é o espelho do calor sahariano), a Camus, regressemos a David Lean, Ondaatje e Bertollucci. O paradoxo do deserto: como, em tal vastidão libertadora, pode o Homem sentir o apelo da morte? Camus é um exemplo desta irreparável falha. Se compreendemos em Kafka o sortilégio da representação do medo humano, porque sabemos como a Praga daquele tempo poderia ser inspiradora, mais admirável se torna a obra do escritor francês. Conseguir transpôr para o deserto norte-africano a angústia experimentada por Kafka - e, por extensão, pelo ser humano - não é apenas um feito, é inevitável. A incompreensão perante os actos de Mersault torna-se avassaladora. Se o labirinto kafkiano não tem solução pela própria mecânica da encenação, as obras de Camus encerram em si um sentido trágico que imita o teatro grego. Em Kafka, o destino não intervém na acção das personagens; tudo é aleatório e imprevisível. Camus, por outro lado, dá a entender que desde o início tudo está previsto, a queda é inevitável. O deserto conduz os homens à perdição - e sem pathos.
Por associação, recordo Caché, o filme de Haneke que, vou descobrindo, me deixou uma impressão profunda. A morte do amigo da infância, violenta vaga regressando do passado da personagem que Daniel Auteuil encarna, é marcante. Não por acaso, a personagem é argelina. A violência pode ser o resultado de milénios de convívio com as paisagens desérticas. A areia (tempo); o calor (corpo); e a extensão de luz até onde a vista abarca (eternidade). Faz sentido.

[SL]

Ténis e genes

No blogue Manchas, diálogo em tom casmurriano inspirado por essa bela figura que o próprio Machado de Assis não desdenharia como personagem, João Carlos Espada. A ler.

[SL]

20/07/06

Sol

Não vale a pena. Descansar, olhar a paisagem, ouvir as bombas lá fora e o rumor do mar à nossa frente. Quando ele existe apenas como um desejo escapista. As palavras excedem sempre o que descrevem. Deixemo-nos estar, o sol cegando (sangrando) a vista.

[SL]

19/07/06

Philip Roth

"Nem todos tiveram a sorte de nascer judeus, não é? Portanto vamos lá, um bocadinho de rachmones para com os menso afortunados, está bem? Porque eu estou farto e mais que farto dos goyische isto e dos goyische aquilo! Se é mau, foram os goyim, se é bom foram os judeus! Não vêem, meus queridos pais, que me geraram não sei bem como, que essa maneira de pensar é um tanto ou quanto bárbara? Que assim estão simplesmente a exprimir o vosso medo? A primeira distinção que aprendi convosco, tenho a certeza, não foi a distinção entre a noite e o dia, ou entre o calor e o frio, mas entre goyische e judeu! Mas agora descubro, meus queridos pais, parentes e amigos que aqui se reuniram para comemorar o evento do meu bar mitzvah, descubro, sim, meus palermas, meus palermas de espírito tacanho! - oh, como eu vos detesto pela tacanhez do vosso espírito judeu! e a si também, Rabi Sílaba, que pela última vez na vida acaba de me mandar ao café da esquina comprar outro maço de cigarros Pall Mall, com que você empesta os lugares por onde passa, não sei se já alguém lhe disse - descubro que a vida afinal não se resume ao conteúdo dessas duas categorias inúteis e repugnantes! E em vez de se lamentarem por aquele que virou as costas à saga do seu povo, porque é que não choram antes pelas vossas tristes pessoas, sempre a sorver essa uva azeda da religião! Judeu, judeu, judeu, judeu, judeu, judeu! Já não posso mais com a saga dos judeus martirizados! Por isso faz-me um favor, meu povo martirizado: vai à merda mais a tua herança de martírio! - é que eu por acaso também sou um ser humano!"

in O Complexo de Portnoy, de Philip Roth - judeu, para o contentamento de todos.


[SL]

18/07/06

Tomar partido (2)

Rui, ainda bem que reparaste na diferença entre o Público de hoje e o de ontem, podemos falar disso. É que eu, repara, não disse que o diário, em geral, pratique mau jornalismo - nem eu sei distinguir o bom do mau, para todos os efeitos; apenas notei que havia demasiados espinhos no tratamento noticioso dado ao tema ontem. Não poderás discordar neste ponto. E não preciso de afirmar que simplesmente não é verdade que haja um favoritismo da imprensa em relação ao lado islâmico nesta questão do Médio Oriente. Se pensarmos bem, nem um dos que denunciam os abusos da democracia israelita se declaram abertamente pró-terrorismo. Falo dos comentadores portugueses, é claro, a realidade que melhor conhecemos. O que há é gente que defende a causa palestiniana e os palestinianos, o seu direito a viver num Estado que não seja definido arbitrariamente pelo poder que os sufoca a dois passos de casa. É que, repara, se é verdade que desde a fundação do estado de Israel que os palestinianos lutam ou para expulsar o povo israelita - os radicais -, ou para terem direito ao território atribuido aos islâmicos após a Segunda Guerra Mundial, aquele que Israel nunca conseguiu respeitar - os moderados -, também é verdade que desde essa data que Israel vem negando as pretensões dos palestinianos. Parece-me portanto, uma questão clara de luta territorial, ainda por cima provocada pela irresponsabilidade do mundo ocidental ao criar um estado artificial em terras que já estavam ocupadas por outro povo há séculos. A má-consciência ocidental, a culpa judaico-cristã que tão fervorosamente cultivamos desde sempre, é a origem de tudo - sobre este assunto, basta ler Kafka ou Philip Roth. E nem vale a pena discutir quem tem direito à terra; seria bom se pudessem todos usufruir dela em conjunto, mas infelizmente neste tipo de questões quem escolhe a via mais violenta - ainda que seja a minoria - acaba por levar a melhor sobre os que escolhem o caminho da paz e da reconciliação.
Ainda bem que falas de Ghandi, que melhor exemplo há da tragédia da Natureza Humana? Lutou uma vida inteira pelo direito à auto-determinação de um povo, sem recorrer à violência nem a acções radicais. A moderação, sempre a moderação. Conseguiu, mas acabou morto às mãos de um fanático hindu que não desejava a paz com os seus compatriotas muçulmanos. Cinquenta anos depois, a Índia continua desunida pela religião, ainda e sempre porque a margem violenta de cada religião empurra o centro para o confronto e a guerra.
Haverá solução para a a questão do Médio Oriente? Não tenho pretensões a responder a esta questão. Pode durar séculos até que o conflito se extinga, ou pode levar apenas alguns anos até que tudo acalme. Para sempre ou temporariamente, até porque a História mostra à saciedade que a paz é apenas um acidente, um acaso na interminável sede de guerra que move o Homem. Não sei responder a perguntas sem resposta, mas posso dizer que preferia não ver tantos morrerem em consequência da irresponsabilidade de tão poucos - os líderes políticos e religiosos de cada lado. E parece-me que nem os bombistas suicidas, nem os mísseis do Hezzbolah, nem as bombas caindo sobre alvos civis dos israelitas contribuam para o fim do conflito. A paz à bomba é apenas um bom argumento de filme de guerra de Hollywood. A realidade é outra coisa completamente diferente.

P.S.: Reli um texto anterior teu. Sabias que apenas uma mínima parte dos israelitas nasceram ou são descendentes de judeus que viviam em 1945 no actual território de Israel? Que a maioria dos que para lá foram depois do Holocausto eram eslavos da Rússia que fugiam de Estaline ou sobreviventes dos campos de concentração que conseguiram escapar de Leste? Quem tem mais direito ao território, estes imigrantes ou quem já lá estava em 1948, muçulmanos e judeus incluídos? A minha resposta? Ambos, desde o momento em que foi decidido pela ONU, em acordo com os líderes palestinianos, que Israel tinha direito a existir. Qual é a tua resposta?

[SL]

17/07/06

Tomar partido

Concedo que a neutralidade seja difícil. Aceito que a objectividade não passe de uma quimera, permito que a equidistância apenas possa ser um objectivo. Seja. O Público, o melhor jornal português - mesmo depois da última reformulação do DN - não deve nada a ninguém, o seu livro de estilo fala por ele. Muitas vezes acabei por dar razão aos críticos dos críticos de José Manuel Fernandes, e pela mais irónica das razões; todos sabemos o seu posicionamento ideológico, a verdadeira cruzada que tem vindo a travar em nome de uma ideia de progresso e de liberdade; comovemo-nos com ele quando ele se emocionou ao ver a estátua de Saddam derrubada pelos soldados americanos, aceitámos a sua indignação contra os hipócritas de esquerda que se manifestaram aos milhões contra a invasão do Iraque, sorrimos por dentro - de ternura - olhando para ele a pregar no deserto de ideias o bondoso neo-liberalismo que irá trazer o bem-estar económico e a felicidade ao mundo inteiro. Até caímos num enlevo de admiração, bastas vezes, perante o estoicismo com que ele defende os "erros" norte-americanos, desde Guantanamo ("é claro que a situação de Guantanamo não pode continuar, etc.") até Abu Ghraib ("um abuso de uma minoria de insubordinados que ocupam lugares inferiores na hierarquia militar, etc."), passando pelos "desvios" das bombas no seu tortuoso caminho em direcção aos alvos militares que se escondem no meio dos civis indefesos. O homem tem coragem, virtude louvável, não menos que a teimosia - há quem lhe chame coerência - na sua defesa da política norte-americana na construção de uma nova era. O último dos moicanos, apesar das armas de destruição maciça que se volatizaram, do dominó da democracia que se transformou em avalanche do terrorismo, da diferença de tratamento em relação ao Irão e à Coreia da Norte que, convenhamos, estão mesmo a pedir a bota imperial para entrarem nos eixos. A razão porque concordei muitas vezes com José Manuel Fernandes? Pela paródia involuntária, pelo espectáculo que é ver num dia ele a escrever uma crónica louvando as virtudes da guerra e no dia seguinte um dos seus sub-directores demolindo - sem nunca o nomear directamente - o texto escrito pelo chefe. Sou português, e por isso dá-me gozo a insubordinaçãozinha pontual.
A que propósito falo aqui de José Manuel Fernandes? Queria antes escrever sobre o verão, o tempo de férias, as viagens que tanto me motivam nesta altura. Para ser mais exacto, queria escrever sobre as férias do director do Público. Escolheu o sítio mais in do momento, o mais quente do ano. Desde há três dias que nos escreve de um lugar, algures em Israel. Lemos a crónica, escorreita e prazeirenta, e percebemos que estas férias veraneantes foram pagas pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros de Israel. Ainda bem, o homem merece, por serviços prestados com honra e distinção. Se falamos de férias, que goze à grande os frutos do esforço titânico a que se vem submetendo nos últimos anos. Mas esperem. Leio com mais atenção e começo a desconfiar. Não é que as crónicas de viagem não estão onde deviam estar, naquele suplemento da silly season, no qual a socialite discorre sobre tudo e nada de papo para o ar? Não, para dizer a verdade, descobri agora, não começou sequer ainda a ser publicado o supramencionado suplemento, só lá para Agosto, parece-me. Folheio o jornal freneticamente e descubro que as notícias que emolduram as crónicas de viagem de José Manuel Fernandes falam de mortos, feridos, mísseis, bombardeamentos, sofrimento, sangue e lágrimas. Deve ser uma náusea passageira, o que me invade. Releio com mais atenção, desta vez tentando ignorar que a viagem foi paga pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros de Israel, e continuo, de boca aberta. Regresso à primeira página: "Mísseis do Hezbollah matam civis na cidade mais tolerante de Israel" em letras grandes, destacado. Logo por baixo, em corpo mínimo: "Raides israelitas no Líbano provocam 45 mortos e mais de 100 feridos". A fotografia que acompanha a chamada, trabalhadores israelitas recolhendo restos mortais de vítimas do ataque do grupo libanês. Avanço para a segunda página. Título em letras garrafais (maiores que na capa): "Hezbollah lança o ataque «mais profundo» contra Israel." Busco, já desesperado, os pormenores. Por baixo, confirmo a suspeita: oito mortos israelitas, e repito, 45 civis libaneses também falecidos. Não se especifica se os mortos israelitas são militares ou civis. Pouco importante, de resto. Nesta altura, já nada interessam essas especificidades, tão longe se chegou na demanda.
Será necessário acrescentar mais à descrição feita, ou é suficiente? Pouso o jornal, e descanso com as palavras sábias do douto José Manuel Fernandes. Uma altura decisiva, escreve ele. Para todos nós, penso eu. Agora que finalmente já mandámos às malvas toda a decência e qualidades da democracia - que inclui, imagine-se, um jornalismo essencialmente neutro e objectivo, sem tomar partido, na prática um jornalismo que não seja propaganda pura - podemos finalmente dizer que já possuímos as mesmas armas que os fundamentalistas e terroristas há muito manejam (e deixem-me ser catastrófico e exagerado): a manipulação dos factos, a recusa da moderação, um belicismo feroz e agressor contra quem está do outro lado da barricada. José Manuel Fernandes pode ser acusado de muita coisa. Agora, de ser bom jornalista, ele já se conseguiu livrar. Boas férias.

P.S.: Onde foi escondida a ostracizada Alexandra Lucas Coelho, quase sempre enviada para o Médio Oriente e recém premiada pelas suas reportagens no Público? Ou será que ela própria se escondeu com vergonha?

[SL]

16/07/06

Nascido Para Matar

Michael Moore, que inventou um género - o documentário sensacionalista com consciência social - filmou, em Fahrenheit 9/11, os soldados americanos no deserto iraquiano com uma precisão de elefante, a necessária, de resto, de modo a captar o espírito de uma aventura muito bélica e nada gloriosa. A determinada altura, alguns soldados dizem para a câmara que, ao passear-se nos seus confortáveis tanques em missão de ataque, ouvem música agressiva como motivação para a carnificina. A música pode ter também essa tarefa: anestesiar o espírito, aplacar a consciência racional do Homem. Um soldado é uma mistura de duas coisas: a máquina programada para matar e um animal dando escape aos seus intintos primitivos e egoístas (no sentido da sobrevivência dos genes preconizada por Richard Dawkins).
O filme de Kubrick, Nascido para Matar, mostra como o processo se desenrola. Na primeira parte, a recruta, existe um esvaziamento progressivo do pensamento e da individualidade, até que aconteçam duas coisas: a mecanização total da atitude e do corpo, e a selecção natural dos mais aptos para o combate. Os recrutas aprendem a viver em benefício de uma entidade abstracta, os Fuzileiros, que serve outra mais distante mas sempre presente: a Pátria. A segunda, na obra de Kubrick, está apenas subentendida. Durante o tempo de aprendizagem, os homens, que antes da chegarem ao quartel são apenas indivíduos entregues a um desejo difuso e sem objectivos, aprendem dolorosamente a pertencer a um grupo, a uma irmandade em que cada membro tem de se dispôr a sacrificar a sua vontade em prol do seu companheiro, primeiro, e da missão que lhes é imposta, em última medida, pelo Estado, depois. Neste estágio da sua aprendizagem, os recrutas aprendem a esquecer o caos que o desejo individual produz. Deste caos, nasce a ordem, uma perfeita geometria da obediência a um poder que emana de um lugar distante dos soldados. A câmara manobrada por Kubrick, na primeira parte, filma com um rigor maníaco esta regularização do indivíduo. Tudo é limpo, tudo é regulado, tudo se torna mecanizado. A parada, a apresentação das armas, a limpeza das botas, a arrumação das camaratas. O recruta Pyle (excelente Vincent D'Onofrio) é o único que resiste à aprendizagem do colectivismo. Um dos pecados capitais, a gula, é o símbolo desta resistência. Quando finalmente Pyle cede percebemos que é tarde demais. E que a submissão é demasiado verdadeira. Ele entrega-se de alma ao mecanismo repressor, e nesse passo coloca-se além de qualquer razão. É que a entrega não pode ser total. O cínico Joker (Mathew Modine) explica como se faz. Fingindo a obediência, consegue ainda salvar a réstea necessária de sanidade que lhe permite sobreviver à experiência da recruta e depois à guerra.
Este cinismo de Joker é depois transportado para a segunda parte do filme, onde a ordem programada se transforma em caos absoluto. Nada pode preparar os soldados para o que sucede numa situação de guerra, espelho distorcido da simulação recriada em casa. A destreza dos soldados nada significa quando o inimigo joga na imprevisibilidade e na improvisação de situações. Kubrick coloca-se atrás dos soldados em patrulha e consegue filmar a perfeita aleatoriedade de uma situação de combate. As regras a que os soldados se submeteram durante a recruta deixam de fazer sentido e eles têm de se socorrer novamente dos seus instintos primitivos. Depois de programados, esses instintos podem ser redirecionados e usados da maneira correcta, concorrendo para o bem comum: dos companheiros, do oficial superior, em última análise da Pátria.
Haverá diferenças entre o soldado que cumpre ordens e o bombista suicida que se sacrifica?

[SL]

15/07/06

Alguns destaques

- Primeiro, agradeço ao André o esclarecimento. E a sugestão. Vou manter a grafia original escudando-me na influência anglo-saxónica. A reflexão sobre a biografia e a obra irá continuar, garanto. Haja tempo.

- Novos blogues que entram, alguns saem. Solvstag, Quatro Caminhos, O Amigo do Povo, Um Chá no Deserto, The Sound Of The Streets, Esse Cavalheiro passam a estar disponíveis na barra das ligações. Outras actualizações a seu tempo.

[SL]

Homens e ratos

Será Zinedine Zidane um jogador de futebol ou um homem? Será Zinedine Zidane um homem ou um muçulmano? Será Zinedine Zidane apenas um homem ou alguém que, por ter sido um dos melhores na sua área, merece um regime de excepção no julgamento da sua conduta?
A justiça do futebol avalia o caso e prepara uma sentença que já não o poderá atingir - porque ele já não pertence a esse mundo. Mas, pelo andar do caso, provavelmente também Materazzi irá ser condenado. Por que razão? Por ter insultado Zidane. Facto que acontece dezenas de vezes durante os jogos, note-se. Coisa habitual, lugar-comum. Mas, extraordinária coincidência, assiste-se a uma inversão na ordem natural da lei humana. Há quem considere mais grave o insulto de Matterazi do que a cabeçada de Zidane. Sendo que o primeiro ninguém ouviu, a não ser o ofendido e o ofensor, e o segundo foi visível para toda a gente.
Retórica subtraída ao raciocínio, resta apenas outro factor na equação: o facto de Zidane ser muçulmano. É que a ofensa de Materazzi foi primeiro denunciada por organizações anti-racistas, e a onda de perdão a Zidane iniciou-se aí. Os franceses desculparam o gesto irreflectido, e Zidane foi à televisão lamentar o sucedido apenas porque crianças assistiram a tudo. Será que sou apenas eu a achar a justificação de Zidane hipócrita? O que ele lamenta não é a agressão, mas sim o facto de esta ter sido mediatizada. Em privado, nem seria necessário o acto de contrição - que não o chega a ser. Será este o exemplo que os ídolos devem dar a quem os segue? Será normal esta atitude de achar que o pecado é menos grave se for praticado às escondidas?
Materazzi é tudo menos um jogador correcto em campo - tantas as vezes que ele já foi castigado por conduta anti-desportiva. E acredito que ele tenha sido especialmente insultuoso com Zidane. De resto, não gosto da arrogância italiana nem dos modos ínvios que eles têm de agir no futebol - isto é uma generalização, eu sei, mas agora fala a minha costela de adepto. Preferia que a França tivesse ganho, e que Zidane, que muito contribuiu para o engradecimento de um desporto que caminha a passos largos para uma vulgarização mecanicista - e economicista - sem emoção nem beleza, acabasse a carreira em glória; aqueles pés que pareciam falar baixinho com a bola, aquela mente que inventava espaços e criava passes impossíveis, mereciam um final noutro estilo. Não aconteceu desse modo; mas, assim como um gesto irreflectido não apaga uma carreira, também essa carreira não deve servir de atenuante no castigo da violência. E a religião é apenas uma daquelas coisas que me provocam urticária, um nó no estômago. Deus merecia mais do que estes novos cruzados; mas merecia também que ningém falasse abusivamente por Ele. Mas - já sei - a Religião nada tem de Divino - é um assunto de Homens. Lamentável.

[SL]

Nova lei do talião

A uma agressão verbal pode-se responder com uma agressão física. A um "filho da puta" pode-se responder com um directo nas trombas. A dois ou três soldados mortos e alguns mais raptados pode-se responder com dezenas de bombas e centenas de mortos e feridos. Nós, por que estamos do lado de cá - neste caso, "cá" significa o contrário de "lá", é bom de ver - socorremo-nos de comparações estapafúrdias comentando o que, definitivamente, não está ao nosso alcance perceber. Desproporção na reacção? Escalada de violência? Apenas quando está em causa um simples desporto. Se falamos de guerra e choque das civilizações, nenhuma resposta deve ser exagerada na defesa do que imaginamos ser a nossa civilização superior. Uma provocação - terá resposta à altura. Dez vezes mais intensa, cem vezes mais forte, Golias esmagando David. Ele há coisas que preferia não ler.

[SL]

13/07/06

Syd Barrett (1946-197...)

Quando um morto morre, há qualquer coisa que se quebra em nós. Syd Barrett, que eu já tinha arrumado há uns anos na gaveta dos desaparecidos - isto não é uma metáfora, note-se, pensava eu que ele já tinha morrido mesmo - morreu mesmo. De mundana diabetes, imagine-se. A queda foi maior do que ele esperava, e refreio o impulso de continuar com este reles jogo de palavras. Não posso ficar triste com a notícia. Não se chora alguém que já morreu há trinta anos. A tempo de deixar-nos um pouco do mundo por onde andou a viajar durante aqueles anos perdidos do psicadelismo britânico. Apenas tenho um álbum dos Pink Floyd - Piper at the Gates of Dawn. O que veio a seguir ao abandono de Barrett nunca me interessou. Ao fim de trinta segundos dos Pink Floyd pós-Barrett começo a bocejar. É verdade, lamento. O princípio do "I Wish You Were Here" consegue definir uma banda. Os acordes sonolentos de Dave Gilmour, a voz que antes de começar a cantar já está cansada, a arrastada melancolia de quem vive num tédio imenso e quer transmitir o facto a uma audiência o mais vasta possível. Não quero, lamento. Se preciso de ouvir uma sinfonia, ponho um CD de Mahler a tocar. O culpado disto tudo: não foi Roger Waters, não, nem Dave Gilmour. Foi Syd Barrett. Se o LSD tivesse batido menos forte, se algum comedimento houvesse na sua atitude, teria poupado o mundo - ou a mim, pelo menos - do martelo aborrecido dos Floyd pós-psicadelismo. Será suficiente para definir um génio? Admito que sim. A alucinação não é apenas um estilo de vida; é um atalho para a verdadeira essência da existência. E conseguir colocar em música e/ou palavras os estados alterados a que LSD conduz é qualidade de poucos: Burroughs e Hunter S. Thompson. E Syd Barrett. Uma amostra a tocar ali ao lado, durante os próximos tempos: "Arnold Layne".

[SL]

12/07/06

Dão-se alvíssaras

O mundo pode dividir-se entre aqueles que grafam o nome deste blogue como Auto-retrato e os que o fazem como Auto-Retrato. Aos primeiros agradeço os links e as dúvidas suscitadas. Aos segundos obsequio as ligações, assim como o respeito pela minha escolha, ainda que esta possa revelar-se errada. Dão-se alvíssaras a quem desfizer por completo as minhas perplexidades sobre a forma correcta de escrever. É que isto da identidade é assunto que deve ser claro e límpido. Desde já, agradecido.

[SL]

Muros e sombras

Razões haverá para que a igreja Católica se continue a preocupar com a sexualidade do seu rebanho, mas não me interessam quais. Por outro lado, talvez me interessem, principalmente as de ordem psicanalítica ou mental. Mas com certeza haverá milhares de páginas escritas em torno do assunto, milhares de artigos, milhões de opiniões. O que me interessa realmente é tentar conhecer a raiz do martírio auto-imposto de Kierkegaard após a recusa do casamento com a prometida de longa data. O que me interessa é a culpa de Kafka e a sublime expiação falhada que foi tentando ao longo de uma vida de permanente sobressalto metafísico. A religião, em ambos, será um pormenor. Será assim: existem categorias, enquadremos o que conhecemos nelas. Kafka e Kierkegaard e Graham Greene e Chesterton deixaram uma obra que é, sobretudo o resultado dos conflitos interiores relacionados com a religião com que cresceram. É claro que a solução de Chesterton foi a mais fácil: abraçou calorosamente o catolicismo e tornou-se um moralista. Salvava-se o cinismo refinado da sua doutrina; a ironia consegue sempre arrefecer os ódios alimentados. Greene aproveitou bem a matéria-prima das suas dúvidas para criar dois ou três grandes livros. Já Kafka e Kierkegaard eram outra história. O que motiva a perplexidade e o permanente questionamento de ambos não são os dogmas da religião em que foram educados, mas sim os fundamentos da própria fé e o modo como a vida humana pode ser afectada por eles. As personagens de Kafka estão presas a um mecanismo infalível de onde não se conseguem libertar, a uma máquina de culpa que reprime duramente qualquer desejo que possa despontar. Máquina contra o humano, ou, se quisermos, consciente contra inconsciente. O desassossego é interior, a tensão é interna, como acontece também em Kierkegaard. O espinho que não consegue arrancar, a dúvida que o atormenta. Mas que continua a não desfazer nunca. A Natureza humana.
O que tem isto a ver com Bento XVI e as pequenas obsessões fetichistas da igreja Católica? Igreja rasa, rasteira, muito pobre, a que esquece a transcendência da Fé e se preocupa com as mundanas partes baixas dos seus crentes.

[SL]

11/07/06

Rui, concordo com o que dizes. De facto, “ser leitor não é fácil” o que não significa conhecer todos os pormenores que fizeram uma vida. Basta conhecer alguns. Para mim, Kafka, ou Nietzsche, ou Kierkegaard são disso exemplo. Tiveram vidas marcadamente literárias com banais profissões ou com uma vida sentimental triste (todos eles tiveram noivados conturbados, interrompidos, impossíveis…) e, por diversos motivos pessoais, foram conduzidos a uma expressão artística maior do que a própria vida. O noivado ou o celibato, por exemplo, são fundamentais nesta relação entre vida, religião, intimidade e literatura: Kierkegaard e o espinho na carne, Kafka e a culpa, Nietzsche e o celibato ou a loucura formam pares vivenciais que se revelam na escrita. E porque escrevem bem, mostram bem a vida que tiveram. Por isto, concordo que “na actividade de leitor, a biografia não só ajuda, é um desafio, e é infinitamente gratificante encontrar os pontos em comum.” Temos uma compreensão completa de Kierkegaard quando sabemos que o autor de O banquete, O diário de um sedutor e Ou...Ou... viveu realmente dividido entre o casamento e o celibato, detalhes que lhe dão credibilidade e justeza de reflexão.

[SV]

Um ponto

Ainda assim, continua a ser verdade que nada do que poderá ser escrito se aproxima sequer da sensação que a experiência provoca. A literatura cria outra realidade. Mas não consegue captar a perfeição das imagens criadas. Extrapolando, o trabalho do crítico é, portanto, inútil.

[SL]

Sete Palmos de Terra

Adeus a todos.
Aqui há umas semanas, inadvertidamente, fui desembocar num sítio onde pude vislumbrar uma nesga do futuro - o final da série Sete Palmos de Terra. Vi alguns stills, li as sinopses de cada episódio até ao fim, soube tudo antes do tempo. Claro que não foi o mesmo que assistir às imagens em movimento; ler um guião não tem o mesmo encanto que olhar para a vida em imagens movendo-se. A derradeira sequência da série mostra-nos Claire a caminho do futuro, impossibilitada de fixar o passado numa fotografia de grupo. Há mais a dizer do que a previsível interpretação no diálogo trocado com Nate. A imagem capturada (o termo que eu quero aqui é mesmo este) pela máquina não pode abranger um passado que é constituído por memória e desejo de futuro. Um conjunto de corpos e rostos apenas faz sentido se for somado à totalidade dos segundos passados desde o nascimento, e isto a câmera não pode capturar. A de Claire e a de Allan Ball, que espreita por cima do ombro de Claire, apesar do ponto de vista ser frontal, focado no rosto de Claire e em Nate, duplo de Ball e a principal personagem da série - o realizador como fantasma pairando sobre o mundo criado. O truque da dupla imanência. Depois, Claire parte em direcção ao tempo que virá. Uma música evoca o tempo que acabou de passar e convoca o futuro que está apenas a um esforço imaginativo de distância. Tudo acontece em poucos minutos - três ou quatro, e o poder da música pop pode ser condensado nesta fórmula encontrada por Allan Ball. Os ponteiros do relógio imaginário avançam vertiginosos e indiferentes aos percalços da vida material paralela ao tempo que marcam. Todos morrem no fim. Claire recorda o tempo que acabou de passar e lembra-se de si própria inventando um futuro possível. Numa imagem, passado, presente e futuro coexistem, fundindo-se. Essa imagem é a imagem da memória; não que alguma vez os três tempos - como no conto de Charles Dickens - se tenham confundido; apenas a memória os pode tornar simultâneos. E, neste caso, apenas o cinema - porque falamos de moving pictures - se consegue aproximar da imagem mental, tem o poder de tornar mais claro o que antes era apenas sugestão e intuição pura.
Se a arte ajuda a repensar uma série de coisas na vida? Pergunta desnecessária; a arte pertence à vida, a resposta está incluída na oferta a que temos direito.
Até à próxima.

[SL]

10/07/06

Arrufo de swingers

- Estás chateada?
- Estou, um bocado...
- Não sei como é que não percebes o meu ponto de vista.
- E tu percebes o meu?
- Percebo, mas nós combinámos uma coisa, sabes bem.
- Mas eu disse-te que era com a (...) que queria estar, não me ouviste?
- Mas eu não gosto dela, tem um cheiro muito forte.
- Não tem nada, é bom, o cheiro dela.
- Não é nada, ela nem se arranja. Não se pinta, não faz o buço. Não gostei.
- Eu é que me devia queixar, ela abraçou-te...
- E?
- Sabes bem que eu não gosto disso, devia dar atenção a mim...
- Ah, não venhas com isso, ela depois foi ter contigo.
- Mas eu sou a tua namorada, não é? Ela não me respeitou.
- Oh...
- A sério, não abanes a cabeça, essas coisas são para mim!
- Não me venhas cá com tretas.
- Não são tretas, eu acho que ela se está a fazer a ti.
- A fazer a mim? O quê?! Não percebo...
- A fazer a ti, percebes? E acho que ela gosta de ti e está usar-me para se aproximar de ti.
- Não é nada!
- É! Fingiu-se interessada em mim só para estar contigo. Sabes que eu não gosto disso, és o meu namorado. Sabes que mais, estou farta!
- Farta? Farta de quê?
- Desta vida, de andar por aí... destas coisas.
- Que coisas?
- Quero estar só contigo.
- Sabes que eu não penso assim. A nossa relação precisava de um passo em frente. Como estávamos dava em nada.
- Não é isso. Não gosto que tenhas dado esse passo.
- Eu dei?! Foste tu que andaste atrás da (...)
- Bem, sei disso, mas agora...
- Ah, nem penses nisso que está a pensar. E pára de fazer beicinho. Não gosto de te ver assim.
(...)
- Olha, é a nossa estação, vamos sair.

[SL]

08/07/06

A memória (essa puta)

Há seis anos atrás, também em Junho ou Julho - do dia certo não me quero recordar - a selecção portuguesa foi eliminada pela França nas meias-finais do Campeonato da Europa. Todos conhecem a história; o golaço de Nuno Gomes, a pressão da França, o golo de Thierry Henry e o penalti desnecessário de Abel Xavier. Eu encontrava-me no sítio certo para este tipo de actividades: numa tasca, mesas de fórmica cobertas de uma camada fina de sebo, um cheiro a fritos e a cerveja pairando no ar, empregados de avental sujo e palito nos dentes olhando para o televisor de pequenas dimensões ao fundo da sala. Desde o início da manhã que a tensão dos grandes jogos vinha crescendo, um nervoso miudinho que se tem por hábito comparar ao estado de espírito dos jogadores quando entram em campo; é sempre pior para quem está de fora. No relvado, tudo se diluí na intensidade do esforço. A camada acumulada de nervos adensou-se durante o jogo e culiminou de forma irracional quando o improvável futebolista Avô Cantigas tocou na bola com a mão. Quando dei por mim - e nunca esta expressão fez tanto sentido - estava aos saltos no meio da sala, gritando em direcção a um ecrã que mostrava acontecimentos a milhares de quilómetros de distância. Depois, lembro-me de achar que, se pudesse entrar em campo, saltaria em direcção ao fiscal-de-linha que assinalou a falta e deixaria à solta os demónios que tão discretamente tinham crescido dentro de mim, homúnculos alimentados pelos últimos vestígios deixados pelo cérebro reptilíneo que fomos esquecendo ao longo de milhões de anos de evolução. Esbracejava, sei-o bem, em direcção a sombras reflectidas no ecrã que simulava uma realidade simbólica, um exorcismo virtual dos demónios que me perseguiam. Racionalizei depois este instinto básico. Tão débil era a racionalização como o sentimento em si. Depois, tudo passou e, maravilha das maravilhas, achei que o árbitro-assistente acertara.
Seis anos depois, o jogo contra a mesma equipa, um abismo separando os dois acontecimentos. Calmamente assisti ao anunciado descalabro. Ou nem isso. Nem descalabro foi. Apenas uma derrota no futebol. Enquanto olhava para o televisor, cada jogada se tornava apenas uma soma de movimentos, desmarcações, linhas que surgiam e desapareciam acompanhando o percurso da bola de pé para pé, o total dos noventa e quatro minutos um diagrama polvilhado de pontos e vestígios de trajectórias, uma radiografia imaginária - que incluía presente e passado em simultâneo - de uma batalha ritualizada. Toque de génio? Quero pensar que a criatividade que não permite adivinhar o próximo movimento da bola ou do jogador seja apenas uma diferença num jogo de repetição e expectativa. A estatística reproduz os resultados possíveis mas não prevê o sucedido no final. Mas se nos afastarmos e visualizarmos o quadro geral, apercebemo-nos de que tudo estava escrito à partida. O que mudou, então? A minha percepção desta fatalidade. Há seis anos atrás, acreditava na possibilidade do caos. A aleatoriedade não era apenas um pressentimento. Era uma certeza trazida pelo génio de jogadores como Zidane ou Figo, ou Henry. Por outras palavras, achava que havia uma razão para me entusiasmar com a incerteza dos resultados. Um crença cega na imprevisibilidade das jogadas, sem que uma geometria traçada a régua e esquadro pudesse influenciar o desenrolar das partidas.
O que me leva à pergunta que se coloca, inevitavelmente: quem mudou, eu ou o jogo, a minha memória dele? A retórica nem chega a ser irónica, mas permito-me descansar sobre uma certeza: desde o nascimento até à morte, existe apenas um acumular de expectativas frustradas. Um descanso, porque sei com que contar daqui para a frente. Quem diz que o futebol é apenas um jogo não conhece o rosto da vida; mas os gregos sabiam muito o que faziam quando criaram o teatro e a sua face dupla. Nada mudou ao longo destes milénios de aprendizagem. Em seis anos, tudo se transformou.

[SL]

Flaubertiana

Não é uma distância, há muito perdemos a ilusão de podermos transpô-la. Não é um lugar, assim que tentamos fixar a sua extensão espacial, foge-nos, dilui-se. Não é um sentimento, não existe suficiente comoção na sua passagem pela consciência. Nem sequer é uma consciência de algo, talvez uma percepção breve de um objecto de passagem, estático e dinâmico, impossível de fixar na matéria em que julgamos acreditar. Recuso a definição em consequência de um puro defeito no entendimento do fenómeno. Mas desconfio da sua importância definidora. Vergo-me ao seu poder vital, intenso. A memória, essa puta que tantas vezes me trai.

[SL]

07/07/06

O Ajudante

Gonçalo M.Tavares, numa entrevista em Por Outro Lado (2:), dizia não se interessar pela biografia de um autor, alegando que os textos valem por si. É verdade, mas há excepções.
Robert Walser, por exemplo, pretendia fazer um romance contínuo da vida, um Eu-livro, e é sabido como os dados autobiográficos são importantes neste projecto mas, também é sabido que Jakob von Gunten (do romance homónimo) e Joseph Marti (O Ajudante) não são Robert Walser, ainda que este seja um pouco dos dois.
Quando começamos a ler O Ajudante reconhecemos que se trata de um livro inspirado e dedicado ao ajudante de escritório e, parece-nos, que nenhum aposentado desta profissão poderá ficar indiferente a esta narrativa. Como ler, por exemplo na pág.116, “tinham chegado da tipografia umas quantas centenas de circulares. Joseph começou a dobrá-las no tamanho exacto dos envelopes, para que pudessem ser enviadas para o mundo inteiro” ou “o ajudante ficou a dobrar circulares até à hora de almoço, um trabalho que lhe parecia alegre e intelectualmente estimulante”sem haver identificação?
Joseph Marti inicia-se nesta actividade cheio de esperança, de brio profissional, de vontade em ser útil, de redigir correctamente as cartas, liquidar a tempo as facturas, mas, aos poucos, vamos acompanhando o seu declínio.
Como seria aborrecido se a inspiração de uma vida não se tornasse criação artística, como seria aborrecido ler o diário das experiências de Walser enquanto estudante na escola de mordomos, inspirando Jakob von Gunten, e enquanto contabilista de um engenheiro, inspirando O Ajudante. Marti não é apenas um ajudante de escritório, assim como von Gunten não é apenas um aluno no instituto Benjamenta. Aqui, onde os dados autobiográficos se encontram com a ficção, compreendemos que, se Walser se inspira na vida, ele também a reinventa. O que fascina nestes livros são as mudanças que Joseph e Jakob não conseguem conter, quando a dúvida abala o voluntarismo e o interesse pelas tarefas diárias, levando-os a questionar a preparação para a vida. O voluntarismo desvanece e só fica a dúvida, o sentimento de não merecer sequer o pagamento semanal ou a estadia oferecida.

[SV]

06/07/06

Help the aged

É justo que Zidane acabe assim a sua carreira. Ontem, os mergulhadores mereceram perder. Mas também merecem os parabéns por terem conseguido transcender as previsões mais optimistas. Até daqui a dois anos - o jogo de Sábado é um rebuçado fora do prazo.

[SL]

05/07/06

O líder

No jornal leio que Deus está do nosso lado. Passo ao lado do habitual desfile carnavalesco e ao fim do dia leio alguns blogues ao acaso. Não censuro a falta de patriotismo, nem os cucos armados do sentido de humor escabroso e forçado, os evidentes exageros de quem ainda procura um estilo justo para afirmar a escrita. Do mesmo modo não me surpreendo com as garras retrácteis esperando o jogo de mais logo, prontas a saltar ao pescoço da vítima mais fácil. Mas existe, pensando bem, uma espécie de insanidade mansa nas palavras de quem continua a censurar de dedo em riste o percurso da Selecção até à meia-final. Nunca ganhámos nada, mas há quem se atreva a exigir que o façamos com estilo. Com estilo, depois de Scolari ter escolhido um grupo de jogadores que inclui alguns elementos que nem do Brasil C fariam parte. Um grupo que inclui três ou quatro jogadores que se destacam e meia-dúzia que se têm esforçado em campo como nunca. Um grupo de jogadores que é o espelho da mentalidade nacional, fechada e aventurosa, mas incapaz de encontrar o seu próprio rumo e por isso necessitada de uma figura paternal que proteja, acarinhe e transmita motivação e confiança. Orgulhosamente sós, é como os jogadores se devem estar a sentir em Marienfeld. Os que andam há quatro anos a censurar as opções do seleccionador nem se dão conta do bem que lhe fazem ao persistir na perseguição canina em que entretanto se viciaram. Como se não fosse suficiente a ignorância futebolística, mostram também um desconhecimento da História de Portugal mais recente. O modelo Salazar continua bem vivo no espírito de todos. Scolari cavalga a onda.

[SL]

Auto-ajuda para amadores (3)

Um amigo recém-apaixonado diz-me que nem sentiu as onze horas seguidas de conversa com o seu novo eixo de vida. Era como se se conhecessem desde sempre. Descontada a irreprimível tendência para a banalidade amorosa - nunca resistimos a ela, nos primeiros tempos - eu replico, sem piedade: se se conhecessem desde sempre, não teriam conversado onze horas seguidas.

[SL]

Auto-ajuda para amadores (Adília Lopes)

Gosto muito de falar com o meu ego. Por vezes olho para ele com atenção, faço-lhe festas. Como a um gato. Os gatos gostam de se passear pela casa e ao fim do dia aconchegam-se ao calor dos corpos. O meu ego ouve o ronronar dos gatos e diminui a sua importância por momentos. Sente demasiado a reduzida dimensão da sua extensão física. Um indivíduo não é apenas o conjunto corpo/mente. É isso que eu digo baixinho ao meu ego. Ele não entende. E continua a ignorar os meus conselhos.

[SL]

Auto-ajuda para amadores (1)

Chegar a casa. Cansaço. Distrair nervosamente a falta de imaginação. Esquecer o dia que nos perseguiu até à porta, dedos suspensos sobre as palavras. Corpo cansado, acomodar a postura à cama, deixar a televisão no sítio certo. Ouvir. Falar. Ouvir falar. Escrever como uma série contínua de movimentos, enquanto estamos parados. Acção estática, dinâmica cristalizada. Julgo que foi disto que ouvi falar enquanto ao meu lado Susana dormia.

[SL]

03/07/06

A Futebolândia

Pois eu cá acho, caro Pacheco Pereira, que o futebol é, neste momento, mais importante que a saída de um ministro do governo, ainda que esse ministro fosse o mais criticado até agora, e por esta razão, peça fulcral, em termos simbólicos, do plano - se ele existir - montado por Sócrates. Pois é, sei que isso me define enquanto cidadão. Porque prefiro aos males do país e às coisas verdadeiramente importantes a libertinagem que apenas um prazer censurado pelo moralismo de alguns - helás, são a minoria - pode sustentar. Defino-me então como mais um dos que se prestam ao desinteresse e ao tédio quando se fala de política. Acho por isso normal que os jornais tenham destacado o jogo da Selecção em desfavor da mudança governamental, mas eu não sou um estudioso dos media nem me concedo o privilégio de perceber mais de actualidade que o médio comentador televisivo. É verdade que partilho algo consigo; gosto de xadrez. Ora, entre uma boa partida de xadrez e uma conferência de imprensa em prime-time, nem hesito. Do mesmo modo que prefiro a primitiva emoção de assistir a um jogo de futebol à leitura exaustiva da imprensa em busca do próximo ponto de vista sobre as razões ou desrazões de Freitas para sair do governo. Sócrates jogou bem a cartada, parece-me evidente. O país anda anestesiado e esquecido e pumba, lá esta a substituição do homem. Mas será que, se o campeonato não estivesse a decorrer, os portugueses ligavam mais ao acontecimento político? Sejamos sinceros: que importância política pode ter a saída de Freitas? Eu respondo: aquela que o batalhão de detractores da figura lhe quer atribuir. Há muito que eu não via político mais mal-amado e mal-tratado pela elite bem-pensante deste país. Da direita à esquerda, não houve jornalista ou comentador que não tivesse metido a colher na actuação do ex-ministro, fosse para criticar ou fazer piadas fáceis, escrutinar exaustivamente ou demolir completamente, num limite que por vezes roçou o ataque pessoal. Bem, houve outra figura política que mereceu um tratamento semelhante por parte dos que se divertiram com Freitas: Santana Lopes. Razões e estatutos diferentes, ainda assim. Outras histórias.
É que, sabe, parece-me que o circo que se ergue em torno de certos acontecimento políticos é muito parecido com aquele montado em volta da "futebolândia". O político moderno reflecte este estado de coisas, é um animal que a Natureza seleccionou de modo perfeito. Vive do vazio da imagem, do próximo sound-byte, da abertura dos telejornais, do comentário em programas de debate político semanais. Votaria com gosto no primeiro político que recusasse este circo mediático, que se limitasse a ter um programa, ser eleito, cumprir as políticas discretamente, sem dar entrevistas ou fazer promessas ou gritar aos microfones slogans vazios. Mas, oh, raciocinemos. Um político assim nunca chegaria ao poder. A selecção natural que produz o político moderno deixa de fora os incapazes, os fracos, os que recusam os favores da fama e que, desconfio, seriam os mais aptos a cumprir a função de governação. Neste país, os que poderiam retomar o rumo certo estão inapelavelmente condenados à recusa e à reclusão, por vontade própria ou, lamento, por imposição do sistema mediático.
E, imagine, caro Pacheco Pereira, o senhor pertence ao sistema que tanto critica. Pode até ser dos mais esclarecidos e lúcidos da plateia, mas nem por isso pode ser ilibado de culpas neste affair lamentável. Queria que Sócrates e os jornais gritassem mais alto que o mundo irracional do futebol? O Governo de um povo não é isso. Usando uma comparação pedida de empréstimo à "futebolândia", um bom político deve ser como um bom árbitro: discreto, eficaz, impondo o respeito aos jogadores naturalmente, sabendo de cor as regras e aplicando-as o melhor possível ao jogo que comanda. Haverá algum político que se aproxime, por exemplo, de um Pierluigi Colina? O bom político devia simplesmente desdenhar as aberturas de telejornais, as primeiras páginas de jornais, recusar viver e morrer pela imagem, como diz o cliché do comentário político. Mas ninguém se atreve a tanto. Perderia.

[SL]

02/07/06

Under control

Mais paciência, menos espectáculo, quase como se os jogadores estivessem à espera dos penalties para que Ricardo repetisse o truque do Europeu. O que deixa qualquer um confiante, nos dois jogos que faltam, é a certeza com que os jogadores encaram os jogos, a certeza de que, qualquer que seja o guião do jogo, a selecção acabará por sair vitoriosa. Tal demonstração de segurança apenas tem paralelo recente nas equipas treinadas por Mourinho. Podemos não ter os melhores jogadores, o jogo mais bonito, mas actuamos com uma frieza apenas comparável à selecção italiana ou à alemã. Com sofrimento, claro, mas com um controlo rigoroso do esforço e dos nervos. Tenho medo do que poderá acontecer no próximo Domingo.

[SL]