27/11/09

O som das árvores

Penso em árvores.
Por que, do lugar onde vivemos,
Preferimos ouvir
O som que elas fazem a
Qualquer outro?
Constantes, suportamo-las
Até perdermos o sentido de ritmo
E nos distraímos dos nossos prazeres imutáveis,
E lhes damos atenção.
Elas são como alguém que fala
Em partir mas nunca o faz.
E continua a falar, mesmo
Envelhecendo, ficando mais sábio,
Agora é que vai mesmo ficar.
Por vezes, os pés batem no chão,
E a cabeça balouça quando,
Da janela ou encostado à porta,
Vejo as árvores balouçar.
Partirei para longe,
Tomarei a ousada decisão,
Um dia, enquanto elas levantam a voz
E se agitam, alarmando as brancas nuvens
Por cima.
Falo menos,
Mas partirei.

Robert Frost, incluído em A Poet's Guide to Britain, ed. Penguin

traduzido por

3.16

Augusto Alves da Silva

24/11/09

Terceiro Mundo

Não quero saber se Portugal é um país do primeiro ou do terceiro mundo - se não somos mais do que somos, será por não termos qualidades para isso, e a culpa é de todos, dos que fazem e dos que deixam fazer, dos que erram e dos que deixam errar. Mas irrita-me o complexo de superioridade bacoco sempre que nos comparamos com países que têm mais do que dois índices de desenvolvimento inferiores ao nosso. E o desporto é um terreno propício a estas exibições patéticas que comprovam parte do que os pessimistas afirmam. Aconteceu no recente Portugal-Bósnia um desses fenómenos absurdos - durante a semana que antecedeu o jogo da segunda mão, não houve tablóide ou telejornal que não acicatasse os ânimos da nação, numa espécie de simulacro do entusiasmo que naturalmente aparecia no tempo em que Scolari era treinador da selecção. Carlos Queirós não tem carisma nem está preocupado em tê-lo, se ter carisma significar um apelo a sentimentos nacionalistas ligados a uma competição desportiva - se isto é bom, não interessa, uma vez mais temos o seleccionador que merecemos. Durante essa semana, os jornalistas despiram o seu facto de macaco e tornaram-se adeptos da selecção, hábito antigo, e a conversão teve o seu cúmulo durante a transmissão do jogo na TVI, com o chorrilho de insultos lançado contra a FIFA por ter permitido o jogo num campo em mau estado; contra a Bósnia, por ter marcado o jogo para aquele campo; contra os adeptos, porque estavam a torcer pela sua selecção com um fervor fora do habitual. Nada que não tivéssemos visto antes, em outros jogos, mas com uma nuance decisiva: o tom de superioridade que estes "adeptos" exibiram - no fundo, Portugal é um dos países da União Europeia, e apesar de tudo é mais desenvolvido do que a Bósnia. O contraste entre este discurso pacóvio e o outro, o que é mostrado quando a selecção joga contra equipas de países mais ricos, é acentuado: aí, fala mais alto o nosso complexo de inferioridade, que não passa de um espelho do de superioridade - ainda me lembro da mão de Abel Xavier na meia-final do Europeu de 2000 e do coro indignado que se levantou a propósito da decisão, justa, do árbitro: "se fosse a França, não teria sido marcado". O problema é que a realidade se encarrega sempre de desmentir a imagem que temos de nós próprios. Hoje, uma pequena notícia na secção desportiva do Público confirma esta ideia: dois dirigentes da Federação Bósnia de futebol foram condenados por fraude fiscal e desvio de fundos, e sentenciados a 5 anos de prisão. Ora, pensemos no que aconteceu por cá quando foram empreendidas investigações ligadas ao mundo do futebol: absolvições, sentenças suspensas, penas irrisórias. O F. C. Porto perdeu alguns pontos quando o campeonato já estava ganho, os dirigentes não foram afastados dos cargos; Valentim Loureiro continua a ser reeleito para cargos públicos; Vale e Azevedo desviou milhões e continua a salvo da justiça. E falamos só de futebol. Porque se falarmos do resto, o panorama ainda fede mais: suspeitas de favorecimento, desvio de fundos, corrupção, manipulação de meios de comunicação, etc., etc., etc., aquilo que está na ordem do dia, serve apenas para vender jornais e alimentar a cloaca das notícias. Sentenças definitivas, revelações conclusivas, qualquer coisa que não passe da suspeita, nada, nada se passa.
Afinal, qual é o país do terceiro mundo?

21/11/09

Smells Like Teen Spirit/Nirvana

Voltei a ouvir Nevermind, alguns anos depois - dois, três - e vou gostando cada vez mais da bateria de David Grohl, e portanto cada vez gosto menos de Bleach, que tem mais raiva mas menos atitude do que os álbuns posteriores dos Nirvana, em parte - grande, grande parte - porque Grohl ainda não fazia parte da banda. Devo dizer que o texto de Vítor Belanciano para o Ípsilon de sexta é dos melhores que eu já li sobre Kurt Cobain, o único lido num jornal - com limite de caracteres incluído - que consegue aproximar-se do que terá sido o fenómeno.
Os Nirvana, são, sobretudo, Nevermind, e Nevermind é, sobretudo, Smells Like Teen Spirit, que é, para além da música, o video, dirigido por Samuel Bayer. Numa altura em que parece que a maior parte dos adolescentes focou os seus interesses em produtos plásticos de terceira categoria, histórias de vampiros e bandas nu-metal requentadas, filmes gore com sangue e violência filmados como se fossem um piquenique de domingo à tarde - estamos tão longe dos filmes de terror com mensagem de Wes Craven ou dos zombies de Romero - é bom lembrar, lágrima saudosista ao canto do olho - a falsa verdade - 4 real, como desenhou a lâmina no braço de Richey "Manic Street Preachers" Edwards - dos Nirvana, os milhões de adolescentes que, durante alguns anos, acreditaram num tipo que não fingia o sofrimento e a rebeldia; o contrário de uma estrela rock, como escreveu Vítor Belanciano, um mártir. Em vão.

15/11/09

When the Deal Goes Down/Bob Dylan

Mencionar Bob Dylan e Mad Men no mesmo texto inevitavelmente leva a que pensemos em When the Deal Goes Down, a música do álbum Modern Times e o video com Scarlett Johansson. Realizada por Bennett Miller (que dirigiu também o filme Capote), a curta é uma homenagem à mesma época em que se passa Mad Men (para além de ser um hino a Scarlett, mas isso é outra história) e a perfeita ilustração da história de amor cantada por Dylan. O recurso ao formato Super 8 - e a ajuda de alguns efeitos que pretendem simular a passagem do tempo no filme - recria o espírito de uma década perdida, uma era de optimismo e beleza eterna, um tempo que agora não passa de uma memória vaga. O video de Miller e a série, apesar de retratarem o mesmo período, são distintos: o primeiro apela à nostalgia, situa-se num presente que procura resgatar um passado irrecuperável; a série é linear, alusiva, pretende ser fiel ao que se passou - vive no passado, cria uma realidade autónoma, que não depende da memória. Há uma representação obsessiva dos pequenos pormenores, hábitos, objectos, situações, marcas culturais que foram deixando de fazer sentido: fumar em público, bater em crianças, ir de comboio da cidade ao subúrbio, etc. Mad Men é o retrato de uma época de homens a quem era permitido mais do que agora e de mulheres que sonhavam ter mais do que o conforto de uma vida burguesa: a vida suburbana que também conhecemos dos livros de Richard Yates, John Cheever, Dorothy Parker, dos quadros de Edward Hopper, do cinema de Douglas Sirk (All That Heaven Allows) ou Todd Haynes (Far From Heaven).
O video para a música de Dylan é um sonho de uma época; Mad Men é a possível realidade, o fim de algo - a revolução hippie estava a chegar.

13/11/09

If You See Her

Via um episódio da primeira temporada de Californication que nunca tinha apanhado, e que termina com uma bela sequência ao som de Bob Dylan, Hank Moody cantando para a filha uma canção de dor de corno, If You See Her Say Hello, de Blood on the Tracks, atenuando a dor de um desgosto amoroso. Havia uma linha de diálogo: "Pai, esta dor no coração vai passar?" "Se tudo correr bem, não." E por aí fora. A qualidade cinematográfica de algumas séries de agora é evidente. Mas o que mais se destaca são os argumentos, tanto as linhas narrativas como os diálogos. Do sarcasmo socrático de House ao humor negro irónico de Dexter, passando pela qualidade beat de Californication - Los Angeles, a cidade de todos os pecados -, é verdade que as séries de televisão conseguem neste momento oferecer aquilo que o cinema de Hollywood deixou de ter. Vale mais meia hora de um qualquer episódio de Mad Men do que os últimos cinquenta filmes estreados em Portugal saídos da linha de montagem americana. Contrariando a ideia de série enquanto produto semanal consumido e rapidamente descartado, muitos episódios destas séries perduram na memória de modo tão nítido como alguns filmes marcantes dos últimos anos. Lembro-me por exemplo do episódio em que House é baleado - a excelente trip narrativa que é montada -, ou de alguns dilemas morais de Dexter ao cumprir a sua função no mundo, eliminar criminosos.
Voltando a Dylan, pode-se dizer que outra característica desta idade de ouro da ficção televisiva é o modo como as referências culturais definem as personagens - o achado da música dos Rolling Stones como hino de House é o melhor exemplo, mas não faltam outros em todas as séries que refiro. Talvez a minha visão tenha sido deformada por todas as influências que recebi ao longo da vida - quase toda a produção audiovisual veio da América. Poderia afirmar que conheço esse país tão bem como muitos americanos, mas a verdade é que não sei que América é essa que o cinema e televisão me mostram, o que tem ela em comum com a América real, independente das imagens que a recriam. Afirmar que as duas são verdadeiras é uma presunção arriscada, mas dizer que a verdade é apenas o que existe fora da arte produzida é recusar grande parte das fontes de que os historiadores se servem - no futuro, se quisermos saber como se vivia a partir do século XIX, bastará consultar toda a informação audiovisual que se vem acumulando desde a invenção da fotografia. E será menos real, a realidade assim representada?

12/11/09

A Luz Fraterna

Não sabia de quem é o quadro que aparece na capa de A Luz Fraterna, o recente livro publicado pela Assírio & Alvim que reúne a obra poética de António Osório. Quando tive a oportunidade de o folhear, espreitar a ficha técnica, li um nome que deveria ter algum significado, Miguel Ângelo Lupi; mas não tinha. Procurei no Google aquele nome e apareceram algumas imagens, retratos, cenas de grupo, um ou dois que eu eu já vira - no Museu do Chiado. O quadro em questão, Contraluz, é um óleo pintado em 1875, e é extraordinário. Falo de uma reprodução, uma imagem sobre a qual repousam letras, imagino que distante do que será aquele quadro ao vivo. Não encontrei nenhuma versão na Internet e na ficha técnica não é referido se ele está exposto em algum museu. Uma mulher descansa na ombreira de uma janela, entre a penumbra da casa e a luz que a invade. O vento parece levantar as cortinas, pintadas de um diáfano dourado, permitindo que se projecte uma sombra laranja que desenha no chão a forma da janela. A mulher, loura, melancólica e bela, olha para um ponto entre o chão e nós, que a vemos, ou não olha, sonha enquanto o pintor a captura. Mas o que torna a pintura soberba são os tons de vermelho - o reposteiro cobrindo as cortinas, mais escuro e denso, e a cor sanguínea da faixa que cinge a cintura.
O que parecia ser um quadro marcado por um classicismo tardio, revela-se algo mais do que isso: o pintor conseguiu representar aquela mulher no momento em que ela se transforma num mistério, do mesmo modo que Hopper o faz, por exemplo; o momento em que sua natureza se revela, ocultando-se. A margem onde não acedemos.

Lua

Uma boa ideia, não totalmente concretizada, mas que vale pelo ar rétro dos cenários e pela elegante direcção de Duncan Jones (filho de peixe sabe nadar, ainda que noutro mar). O filme precisava de risco no argumento, desenvolvimento, novidade. Fica-se pela ameaça de sobressalto.

11/11/09

Uma greguería

O escritor vê as palavras na folha em branco.

A namorada de Wittgenstein (visitem-na).

LXII. O tempo não voa

Desacerto, o tempo
não voa - trespassa,
acomete, traça,
rapina.

Nem esvoaça
ou plana,
volta e revolta
encadeado, omni-
parente.

António Osório, em A Luz Fraterna, ed. Assírio & Alvim

03/11/09

We Are Your Friends/Justice vs Simian



Um video cool para uma banda que tem tudo para ser cool: são franceses, da área da electrónica, e o seu grande êxito é uma remistura, neste caso do projecto inglês Simian. As batidas são retro qb, sintetizadores analógicos dançantes Daft Punk style e o respectivo refrão a martelar obsessivamente, ou não se produzisse assim um fenómeno das pistas de dança - e foi, em 2006. Mas o que interessa é esta curta, realizada pela dupla Rozan & Schmeltz - a definição de um videoclipe: a montagem acompanha o ritmo da música, arrastado e lento, e ilustra o que se vai cantando. No fundo, a eficácia resulta da coreografia dos actores e da sintonia entre os seus movimentos e o dos objectos que tendem para o caos. Nada a que qualquer grupo de amigos solteiros não esteja habituado, de resto. Um encanto sem grande teoria, como a boa música electrónica deve ser.