29/07/08

Viver (2)

No texto anterior, devo ter cometido, em pensamento e em palavras, vários lapsos que Freud não desdenharia usar contra mim, caso algum dia fosse psicanalisado por ele (é assim: vivemos de probabilidades, e como eu nunca pus os pés no consultório de um psiquiatra, psicólogo ou qualquer outra criatura da família psi, posso imaginar esse encontro); primeiro escrevi (e publiquei) "armas perdidas" em vez de "almas perdidas"; não me ocorreria conscientemente a associação entre alma e arma, mas parece-me que o tom do texto, até aquele ponto, seria de um belicismo que justificava semelhante deslize. Repeti também a palavra "absurdo", em duas linhas seguidas, o que por si só é incompreensível.
Um pouco de análise então, que eu também consumi o meu Freud, sob a influência de uma amiga que em alturas de aflição recorre à capelinha da psicanálise, e passei muitos anos a ver repetições de filmes de Woody Allen no canal Hollywood: está feita; a explicação que dei para o meu erro não permite outros avanços. Tudo é uma questão de linguagem; os milhares de páginas escritos pelo psicólogo vienense são uma efabulação de génio. Efabulação não no sentido de ficção, que pode ser entendida como uma tentativa de criar uma realidade alternativa à realidade, digamos, "real", mas no sentido de desenvolvimento de um campo teórico de possibilidades para fenómenos que não entendemos; e o espírito humano sofre do mesmo problema que os nossos oceanos: tão próximo e ao mesmo tempo tão desconhecido. Freud foi um Ahab tão falhado como o herói de Melville, uma obra inteira perseguindo uma baleia branca que nunca conseguiu verdadeiramente entender - e falo, é claro, da mente feminina (e isto não é só uma piada).

[Sérgio Lavos]

Viver

A maior vantagem da escrita é permitir falar das coisas sem nos referirmos directamente a elas. Um código para usar, um labirinto sem centro, onde se esconde a verdade, ou então uma linha da qual não se vislumbra o início nem se imagina o fim. Qualquer linguagem, enfim, é simbólica.
O mais falacioso sistema da época moderna é a psicanálise; Freud conjecturou sobre imagens, criando um código que cristalizava essas imagens, sem se preocupar em relacioná-las com a realidade representada. A sua pseudociência rapidamente (o que são vinte ou trinta anos, na idade do mundo?) se tornou religião, percorrendo um caminho curiosamente inverso a outras disciplinas do passado (a alquimia, a astrologia, etc.). Do racionalismo puro do século XVIII, passámos em cem anos a um relativismo subjectivo que transbordou do meio em que nasceu e tomou conta do mundo. Com o avanço do século passado, a psicanálise ganhou um poderoso aliado, os antidepressivos. Religião e droga; duvido que haja mistura mais perigosa e eficaz para a humanidade pós-moderna.
A vantagem da psicanálise é permitir a quem se deita no divã uma hora de sossego e engano (que são no fundo a mesma coisa); a descodificação do inconsciente é um ofício de sombras, controlo de almas perdidas. Se o psicanalista quisesse mesmo resolver o problema do paciente, dizia-lhe a verdade: a vida é lixada, e não tem solução nem sentido. Levanta-te e anda, levanta-te do divã e enfrenta a vida, não há outra possibilidade de existência.
O cliché da escrita como psicanálise é um absurdo: não se pode confundir um acto criativo, força da imaginação, com o esvaziar da gravidade da existência. Se a escrita é potência libertadora, a psicanálise é prisão voluntária, a entrega da alma a um desconhecido. Desistência.
Qualquer linguagem é simbólica; mas na relação paciente/psicanalista, quem cria é o psicanalista. Sufocado por uma vaga de símbolos, pouca esperança resta ao paciente; antes a loucura. A loucura.

[Sérgio Lavos]

28/07/08

Batman and Joker

O que escrevi há três anos no antigo blogue sobre o primeiro Batman realizado por Christopher Nolan parece-me, de algum modo, inapropriado; das duas, uma: ou eu mudei, ou este segundo The Dark Knight é menos interessante que o primeiro. Tudo bem; excelentes ideias, um argumento bem construído, Heath Ledger num impecável overacting (e isso é bom? e a personagem será só dele, ou a importância de Nolan é assinalável? oscar? hummm... pena é a pior coisa que se pode sentir), cenários OK, tensão pós-milénio servida com seriedade q.b. Mas, e o resto? Cenas limpas de qualquer visceralidade, intensidade - não há sangue; há cortes na altura em que os golpes são aplicados; quando Batman espanca o Joker, a raiva é controlada, cirúrgica, e oh, se naquele momento havia mesmo vontade de dar largas ao fascista que todos temos em nós (até Jack Bauer, na TV, consegue ser mais credível).
Um filme para adolescentes que ainda não viram Saw e Hostel, como se isso fosse possível. Gravitas? Quase nada, e vejo-me obrigado a quase concordar com a classificação do Luís Miguel Oliveira - mas como gosto de alguns aspectos do filme herdados do Batman de Frank Miller, e do de Neil Gaiman e Dave McKean (Asilo Arkham), sou mais benevolente com o filme. Terei de repetir a experiência para desfazer as dúvidas.


[Sérgio Lavos]

23/07/08

A casa e o mundo

A ruralidade, para um mundo cada vez mais urbano, é normalmente associada a atraso ou a nostalgia; lugares para esquecer ou lugares para lembrar um tempo que passou, lugares de retiro para a burguesia citadina; entre o escárnio de programas como o degradante Tele Rural, e as reportagens de fim de Telejornal produzidas em aldeias esquecidas pela globalização, a vida moderna vai fazendo por esquecer um mundo que, a julgar pelas notícias da iminente catástrofe ambiental, irá fazer parte, mais cedo do que pensávamos, do quotidiano das próximas gerações.

A corrente de informação apaga os registos desse tempo. Aldeias que se tornam vilas, cidades, ou inexoravelmente desaparecem; hábitos que apenas os velhos mantêm, tradições que não serão recuperadas. É assim o progresso. O que fica guardado na Internet e nos arquivos dos meios de comunicação nunca será a realidade que existiu ou mesmo o real que é contado pelos velhos, o real reflectido no espelho distorcido da ficção - a literatura oral que, mais cedo ou mais tarde, iremos dispensar.

Prefiro pensar em coisas velhas, cheiros antigos, quando penso no campo; onde cresci. Lembrar os dias sem fim, ouvindo os animais de verão; ou simplesmente repelir a racionalização de um sentimento e não lembrar nada disto; recordar apenas a imaterialidade de tudo, a liberdade de não saber minimamente o que iria perder quando crescesse.

Encontrar em alguns poemas de João Miguel Fernandes Jorge parcelas da minha infância (o Oeste) ou partilhar com Al Berto a sensação de um espaço e de um tempo perdidos. Recuso portanto a dialéctica do atraso e da nostalgia, e repudio a visão patusca, paternalista, que os burgueses com casas no campo parecem preferir. Apenas a cidade me permitiu amar o campo; devo-lhe isso - não é fácil reencontrar o caminho de uma raiz que se estende em direcção ao passado.

E entre a árvore e a raiz que a prende à terra, o mundo.

[Sérgio Lavos]

Um sonho (a infância)


[Sérgio Lavos]

Cálderon de la Barca

A determinada altura de Paris Nunca Acaba, Enrique Vila-Matas refere uma história contada por Jorge Luis Borges, na qual este fala de uma conversa que manteve com o pai. Ele acredita que, de cada vez que recorda algo, não tem como referente a realidade em si, o acontecimento vivido, mas sim a última vez que recordou esse acontecimento. Tudo é recordação de uma recordação. Agora, dou por mim a pensar em algo que pouco tem a ver com ficção, e isto é apenas uma maneira de duvidar da credibilidade da história contada por Borges e recontada por Vila-Matas; o que me acontece por vezes é recordar sonhos. Lembro-me de coisas que há muito esquecera depois de sonhar com elas. De outro modo, vivo em sonho acontecimentos que são passado, recordações que eu julgara já perdidas (ou não julgara, se não estão lá, não tenho consciência delas). Quando recordo depois esses acontecimentos, recordo-os enquanto sonho ou enquanto realidade? O que será mais terrível, recordar uma recordação ou recordar um simples sonho, ou um sonho de um sonho?

(Texto reescrito, inicialmente publicado no Arquivo Fantasma)

[Sérgio Lavos]

21/07/08

As belas coisas

Não é apenas caricata aquela imagem do ministro Rui Pereira a perseguir uma bola de futebol num acimentado da Cova da Moura, vigiado pelo olhar de três adolescentes sorridentes (excelente oportunidade); levar-me-ia a dissertar, se tivesse para aí virado, ou se não tivesse necessidades mais prementes em mãos - as actualidades são interessantes, mas há coisas que me interessam mais. Esperamos pelo regresso dos ciganos a casa, e neste caso não falo de um filme de Emir Kusturica; eles não voltarão, esperam um gueto fresco e bem cuidado, em primeira mão, e quem não o faria? Moralizar, atenuar a culpa, é no fundo o que Rui Pereira persegue, espelho do governo de esquerda que não chega a saber bem o que a esquerda é. Toque de bola, excelente, as câmaras a flashar, um belo dia de sol junto dos pretinhos.

A política é uma coisa bela, belíssima - uma entrega religiosa, um sacrifício; e a glória é curta. Como não admirar um político?

[Sérgio Lavos]

Fugir ao verão (3)

[Salvador Lavos]

20/07/08

A vida (2)

A noção de proletariado, se a entendermos num sentido mais filosófico, enquanto subjectividade privada das suas condições substanciais, é novamente actual. Esta noção mais abstracta de proletário já não encarna num específico agente colectivo, já não é a classe dos trabalhadores.

Ter sempre um texto de Slavoj Zizek à mão de semear, neste caso em entrevista a António Guerreiro para o Actual do Expresso.

[Sérgio Lavos]

18/07/08

A vida

A modernidade criou uma nova raça, resistentes que regressam a casa tarde, em comboios e autocarros suburbanos, caídos entre o sono e o cansaço de um dia de trabalho nos centros comerciais. O progresso material exige os sacrifícios necessários: pão na mesa e fins-de-semana a fio de trabalho a alimentar o consumo dos privilegiados que não precisam de se preocupar com o PIB e a competitividade das empresas, com a concorrência dos chineses ou com as metas de convergência da União Europeia. Acordar a meio do dia e acabar o dia a meio da noite, sombras a caminho de casa e do sono das mulheres e dos filhos - tudo talvez seja relativo; que a riqueza das nações é mais importante que o sacrifício de uns quantos. No fim de contas, dispensámos a criadagem e os operários da metalurgia; o que temos em troca - licenciados subaproveitados a curtir o ressentimento nas caixas dos supermercados - compensa largamente a perda. Solitários forçados, meio loucos, fantasmas esquecidos da globalização. Afinal, vale a pena. A vida, essa, avança.

[Sérgio Lavos]

16/07/08

Americana

Desde que li Pela Estrada Fora que tenho decidida a viagem de uma vida. Assumir o cliché não é uma coisa fácil; contudo, não lhe consigo escapar. América fora, de costa a costa, procurando perder-me do mundo. Falar de uma viagem que não sei se irei algum dia concretizar pode parecer um gesto de pedantismo inútil ou de imaturidade temporã. Mas cada viagem começa antes de verdadeiramente começar. A antecipação, como no sexo, é quase tudo. O que vai alimentando a vontade é a literatura, o cinema, a fotografia, a arte. O lugar-comum da Americana, nos livros da geração beat, de Don deLillo, de Sam Shepard; nos filmes de Hal Hartley ou Wim Wenders (fabuloso o último, sobre o qual não cheguei a escrever, Don't Come Knocking, também com Shepard como actor e argumentista), de Terence Malick (novamente Shepard em Days of Heaven); nas fotografias de Ansel Adams ou Dorothea Lange, nos quadros de Hopper e dos seus mestres da Ashcan School. Uma viagem alimenta-se das imagens que a antecedem, é simultaneamente um acto primordial, eco de um nomadismo perdido, e um rito eminentemente cultural, de partilha e de conhecimento. Conhecer a América antes de a conhecer, neste momento acompanhando a deambulação de Pedro Duarte Bento no Vontade Indómita; e as fotografias, excelentes.
Chego a pensar que a realidade me irá desiludir; uma imagem é um corte no mundo, que deixa de fora tudo o que não lhe interessa. Não importa. A América, na verdade, não existe; ou não sabemos nós que tudo é ilusão, engano dos sentidos?

[Sérgio Lavos]

13/07/08

A senhora de branco

E claro, Margarida Rebelo Pinto, que eu não conheço pessoalmente e contra a qual nada tenho contra, foi capa do terceiro número pós-remodelação da revista Ler. Belo tom de branco no branco, eis a literatura no seu esplendor. Uma provocação, claro, uma provocação depois de Saramago e Lobo Antunes: um livro é um livro é um livro. Será? Pois é que é. Um livro tem capa, folhas de papel, letras impressas; uma revista de livros serve, antes de mais, para divulgar o que se vai publicando. E que Carmo e que Trindade caíram, com a bela senhora de branco na capa? A do bom gosto, arriscamos? Não se duvide. Mas o bom gosto, lá está, não se deve circunscrever ao círculo habitual da academia e da crítica amanuense dos jornais; o bom gosto dos leitores - os queixos batem de pasmo ao verem exposta nas mesas das livrarias a senhora e a capa respectiva. É claro que se ouviram comentários em surdina: veja-se lá, bastaram dois números para a pouca vergonha vir ao de cima. No fundo, o moralismo não é um privilégio do burguês; existe por aí muito proletário que se tinge de vergonha quando uma ponta do lixo editorial é destapada, nem que seja brevemente. Convenhamos: a provocação, ainda que quanto ao caso cada um saiba de si e melhor é que falem mal do que não falem, etc. e tal, a provocação vale o que vale: semanas, um mês, críticas no Expresso e no Público, a galhofa momentânea do intelectual, alguma pena à mistura (a senhora teve um problema de saúde) e a decadência progressiva no gráfico das vendas (não há marketing editorial que a salve).
A literatura, alva e leve como uma manhã no campo; nem o Tide pode lavar tal mancha.

[Sérgio Lavos]

12/07/08

Sendo assim

Sou interpelado de forma indirecta na altura errada; o Verão não está para silly seasons, e eu até gosto do Alexandre (já o nome nada me diz - histórias antigas, a trilogia da Mary Renault sobre c o outro Alexandre comprada e arrumada em dois curtos tempos).
A verdade é que o calor amolece - não sei se já deram conta; a rotina transforma os dias em lã molhada, e até as figuras de estilo são repetitivas e absurdas (talvez por isto esta não tenha sido a estação certa para o grande Rogério Casanova escrever uma recensão ao último da Margarida Rebelo Pinto - pouco eficaz, parece-me; partindo do princípio de que ela se dá ao trabalho de ler o que escrevem sobre as suas coisitas, duvido que tenha entendido um grama que fosse do sarcasmo derreado do Casanova; mas enfim, para comprovar, basta ler o Cartaz do Expresso de esta semana).
E é um calor - continuemos na conversa do tempo - digamos, em falso. Como um passo a tropeçar no degrau, um calor que não chega a ser de incêndio. E estamos por casa, sem o ruído das cigarras, o cheiro das estevas, o sabor da melancia fresca. Por casa, na cidade, entricheirados, amarrados à obrigação da vida adulta - Cristo chegou até aqui, mas depois entregou-se sem luta.
Resta-me deste modo ir jantar, que a noite ofereceu-me uma trégua.

[Sérgio Lavos]

11/07/08

Regresso

Seis dias depois, regresso do lençol de água típico de Inglaterra, a densa nuvem que parece cobrir eternamente o país - um castigo para o cultivado isolacionismo do povo que lá habita. Volto ao Sol, e a este fantástico país que a partir das 9.30 da noite apenas mantém em aberto uma via de saída do aeroporto da Portela, e essa é controlada por essa associação de criminosos na reforma que é a Antram, o que significa a) que me arrisco a ver a viagem até à Gare do Oriente rudemente recusada, ou b) cobrarem-me uma taxa de excepção pela curta jornada. Nem o Metro chegou lá, quarenta anos depois da inauguração, nem a Carris se atreve a contradizer a lei do velho Oeste imposta pelos taxistas; e ninguém reclama - nem os pobres turistas indrominados, que ficam logo à chegada com uma bela imagem do país, nem os portugueses que aprenderam a comer e a calar, a nossa segunda pele.

O hábito vai atenuando este choque inicial do regresso, e a retoma de uma rotina é o remédio para a doença dos dias. Pormenores, pequenas coisas sem importância, de que nem nos lembramos quando estamos fora, a bica familiar e o pastel de nata para confortar a amargura, a compra diária do jornal para descobrir aquilo que já sabemos.

Vale que a chuva continue ternamente a fustigar a longínqua ilha enquanto aqui nos aguardam mais de 300 de dias de sol e azedume; e nem o sol consegue adoçar o azedume.

[Sérgio Lavos]

02/07/08

Até já

Houve um tempo em que dizia preferir os escritores que mudavam de lugar, os viajantes, os que precisavam da vida para escrever sobre ela. Continuo a ler alguns desses, mas nunca li uma linha sequer de Ernest Hemingway, por exemplo. Entretanto, descobri que na realidade leio com mais prazer os que se limitam a ficar, esperando que a vida os encontre no lugar onde se fixam. Os que procuram o sentido no interior das palavras, ou os que sabem que nenhum sentido é possível no exterior delas - o que, no fundo, vai dar ao mesmo. Agora que me movo, viajo, e acumulo parcelas de tempo fora de mim - exteriorizo-me - reencontro coisas conhecidas quando regresso aos escritores que nunca partiram.
Sei que Walser morreu enquanto caminhava na neve - movimento sobre o breve instante - e sei que Sebald viajou incansavelmente à procura dos vestígios de uma outra forma de viagem - a memória. Mas também sei que Walser, ao desaparecer, recusou o mundo e o nomadismo que a ele está associado; e por vezes reconheceu assim a escrita. Como Sebald terá encontrado uma explicação para as imagens quando mergulhou na abstração das palavras. Viajar e parar, reconhecer o que esquecemos, deixar assentar a poeira sobre a memória transitória do movimento; nada é tão simples como parece. Viajar é tentar de novo, recordar. O neo-platonismo vacilante.

[Sérgio Lavos]