30/03/08

McRúcula

Damo-nos conta de que o mundo caminha mesmo para o abismo quando queremos almoçar rápido, entre um compromisso e um filme, e não encontramos um restaurante decente de fast-food nas redondezas.
É como entrar numa nave espacial, o renovado Monumental; os imaculados brancos escondem cortinas e segredos, autópsias e vivisecções de gente à antiga. Agora, se quero comer um hambúrguer (ou uma hambúrguer, como se dizia antes) tenho de ir ao McDonald's, que, a dois passos, está às moscas, apesar do lifting das saladinhas e dos menus light. Ou então opto por um belo e gorduroso hambúrguer de soja, humm, que bom, não bastava ser soja, ainda é em forma de hambúrguer, ou então apenas resta uma loja Go Natural, outra Become Light, outra ainda de pizzas feitas à base de trigo não transgénico, tudo acompanhado dos habituais sumos de frutos tropicais ou de batidos de feno, ou essa maravilhosa invenção bastante apreciada por clones de vacas, os shots de relva (é a pura verdade, juro); não sei quantas (poucas) calorias apenas e o health-club fica mais barato e evita-se uma ida à Corporacion Dermoestética.
Este é o reino da salada de rúcula temperada com vinagre balsâmico, e temo pelo futuro das nossas crianças quando vejo um suposto dread como Kalaf Angelo a discorrer na sua crónica do Público sobre os horrores que sofre de cada vez que percorre as lojas gourmet em busca de vinagre balsâmico (mas final, o que é isso de vinagre balsâmico? algum néctar produzido no Olimpo, ou será uma espécie de líquido curativo que substitui a água oxigenada na limpeza das feridas?).
Enquanto ainda tento digerir um cozido bem regado a vinho da casa, imagino esta gente que julga que viver significa prolongar o sofrimento e a fome e chegar aos 120 anos, presa nos lares para onde os filhos os enviaram, a recordar o passado com lágrimas nos olhos, aquele prato de beterraba cozida naquele restaurante new age onde iam aos trinta, o sabor da água mineral Evian, apuradíssimo, encorpado, a saladinha de couve roxa, rúcula e tomate cherry a acompanhar e o belo remate, digo, sobremesa; um pedacinho de doce de abóbora lado a lado com raspas de casca de laranja (já dizia a minha mãe: "não queres? come raspas!).
Eu sei que sofrerei por todas as vezes que, em vez de comedidamente passar fome, ter escolhido comer de entrada presunto em vez de salmão, emborcar uma feijoada com tinto e ainda ousar comer um doce de ovos no final. Mas até lá, pelo menos alimento-me, não finjo.
E acabei, claro, por sair do Centro Comercial e ir ao McDonald's. Se há alguma mensagem nisto, é esta: este foi um dos textos em que usei mais termos em língua inglesa; a globalização do gosto, surpreendentemente, não vai lá pelo fast-food. O que nos espera é o império da comida light. Ou será que pensavam que a ASAE era só um acidente de percurso?

[Sérgio Lavos]

28/03/08

Duas ou três penadas

Não me lembro de algum texto me ter convencido de forma tão decisiva a não comprar um livro. A não ler, nem sequer espreitar. O livro estava na minha lista há uns largos meses, vai não vai, no seguimento da leitura de Deus não é Grande, de Christopher Hitchens. Esperava a ilusão depois da desilusão de Hitchens.
(Descontada a retórica, que de resto é facilmente contestável, fica nada. Absolutamente nenhum ponto se acrescenta ao que já se sabe sobre religião; devo dizer que a retórica descabelada de Hitchens, por muito ácida que seja (fogo-de-artifício estilístico), convenceu-me a seriamente voltar a reconsiderar a questão da minha crença. Por outras palavras: se antes navegava alegremente nas águas turvas do ateísmo, agora o meu barco aproxima-se perigosamente de uma costa estranha, quase agnóstica. Temo pela minha felicidade futura. Obrigado, Sr. Hitchens.)
Tudo isto para dizer que não irei ler A Desilusão de Deus, de Richard Dawkins, graças a um texto perfeito de Pedro Picoito no último número da revista Atlântico (não disponível on-line). Ou como duas ou três páginas construídas sobre um raciocínio claro e bem-humorado, certeiro e simples, de tão óbvio, desconstroem algumas centenas de páginas escritas por um dos mais brilhantes cientistas da actualidade (e se Dawkins é bom - bastaria ler O Relojoeiro Cego para se perceber isso).
Portanto, devo 20 euros a Pedro Picoito. E agradeço-lhe por isso.

[Sérgio Lavos]

27/03/08

Actualidades

Tiro à sorte; e bem, o assunto deu: a visita de Sua Excelência, o Presidente da República, a Moçambique. Para ser mais preciso, a cobertura que o Público está a fazer a tão importante viagem - esqueçam, não vale a pena referir o Tibete, e sim, eu preferia não ter Jogos Olímpicos (que acompanho desde 1980, Moscovo, tinha uns singelos 5 anos), e ter o mundo a comportar-se de forma digna perante a ditadura chinesa. Mas esta viagem é importante, sim, e que bonito foi ver o deslumbre do jornalista Ricardo Dias Felner perante a popularidade da nossa primeira-dama em terras africanas. Juro que pisquei os olhos e abanei a cabeça, descrente; é que, por momentos, pensei estar a ler a Caras em vez do único jornal diário decente deste país. O mesmo jornal que anda há meses a descobrir picuinhices nas vidas passadas do primeiro-ministro. Ora bem, começam já a sair os coleccionáveis e as hagiografias de Cavaco, como acontece com Salazar, ou esperamos que o homem se fine?
Pronto, era só isto, mas que interessa?

[Sérgio Lavos]

25/03/08

Protection/Massive Attack



Há sempre um vídeo de Michel Gondry que nos surpreende, de cada vez que o vimos. É inestimável a imaginação do realizador francês, um tesouro precioso que ele tem a boa-vontade de partilhar com os fãs de músicos como White Stripes, Rolling Stones ou Bjork. É pena que a fragmentação criativa que é marca nos vídeos não resulte bem nas longas-metragens (com a excepção de Eternal Sunshine of the Spotless Mind); mas, se pensarmos bem, a riqueza imagética de Gondry, composta de autênticos puzzles freudianos e oníricos, dificilmente se adequa à linguagem do cinema, no qual o tempo e a duração têm de ser, obrigatoriamente, mais importantes que as ideias por metro quadrado. Por outro lado, existem tantas camadas nas curtas de Gondry que estas acabam por facilmente perdurar tanto como os filmes.
Neste vídeo, feito para Protection, dos Massive Attack, o ponto de partida é simples, mas difícil de concretizar: um plano sequência que vai mostrando vários apartamentos de um prédio, os seus habitantes e as diversas actividades que vão acontecendo. O cenário gigantesco tem um ar postiço (chega-se a ver uma rua a abanar, assim como várias partes do prédio), mas a ideia é mesmo essa; no fundo, estamos dentro da cabeça de uma criança ou de um sonho de adulto que não ultrapassou a infância. O livro de Georges Perec, A Vida - Modo de Usar, e a sua metáfora da vida enquanto miniatura manipulável por um coleccionador de puzzles, não terá andado longe dos pensamentos de Gondry quando fazia o vídeo. Mas o que é mais espantoso é a destreza técnica que faz encaixar o real e o sonhado, a banalidade e a súbita intrusão do surreal em cada apartamento. E a dança entre câmara e acção, coordenada ao segundo, até ao fim, mesmo depois da música ter terminado, quando entramos num carro e apenas se ouve o som dos limpa para-brisas na noite chuvosa; o falso silêncio que se segue ao caos - e que espelha o efeito que aparece antes da música começar. O fechar do círculo. Perfeito.

[Sérgio Lavos]

23/03/08

Ai, pobre de mim

Que lamúrias deve estar neste momento o Calimero Pacheco* a congeminar, para continuação da sua crónica fabulosa sobre a opinião de litro? As "armas de destruição massivas" (perdoe-se o português sofrível), parte 2. A verdadeira questão deveria ser: por que razão ainda me dou ao trabalho de esperar por um arrependimento, uma contrição, uma dúvida que seja? Deveria ter desistido há muito tempo. Eu, pecador pertencente à furiosa "turba", me confesso, e acrescento um link mais para ele se sentir perseguido por meia blogosfera (que digo eu? blogosfera inteira). Coitadinho, que nem tem direito a debitar a sua sabedoria de pintainho num jornal com uma tiragem diária de 60 000 exemplares, mais uma revista semanal com 30 000, mais um programa de televisão visto por algumas centenas de milhar. A piedade que Calimero me merece apenas é atenuada pela raiva com que ataco a América; eu humildemente admito que sou um anti-americano primário (como milhões de nativos daquele território a norte do México que se preparam para votar em Barack Obama ou Hillary Clinton). Eu juro que nunca vi, e desprezo, filmes produzidos em Hollywood; juro que nunca ouvi, e lamento, Lou Reed ou Tom Waits, Strokes ou LCD Soundsystem, Bob Dylan ou Talking Heads; juro que nunca li, e detesto, autores como Poe ou Melville, Faulkner ou Fitzgerald, DeLillo ou Cormac McCarthy. Portanto, anti-americano primário, c'est moi (por isso falo francês). Não há qualquer argumento racional que eu possa usar para atacar a limpa e organizada invasão do Iraque. O caos que se seguiu, as pessoas que morreram, as consequências duradouras que todos prevêem para a região, tudo mentira, manipulações, demências de quem pensa mais com o seu primitivismo anti-americano do que com o cérebro. Pensamento controlado por ideologias pré muro de Berlim? Sou eu, o meu retrato perfeito. Admito, nunca me converti ao Santo Mercado, continuo a acender velinhas por Marx, Lenine, Trostki e Mao. Pois que Calimero tem razão. E tem razão com letras garrafais, enquanto nós, os milhares que o acossam, temos direito apenas a migalhas, míseros pontos negros na virtualidade blogosférica.
Calimero Pacheco, camarada, sofro consigo no seu isolamento. Acredite, o facto de poder ler um texto como o de Paulo Pinto, no Cinco Dias, que tem mais seriedade por centímetro quadrado do que qualquer quilómetro debitado pela sua pena, dá-me um gozo irreprimível. Há justiça no mundo: vozes de burro não chegam ao céu mediático - a constelação na qual Calimero Pacheco brilha acima de todas as estrelas. A turba será derrotada!

*Expressão cunhada pelo Pedro Vieira

[Sérgio Lavos]

21/03/08

Road to Nowhere/Talking Heads



A sofisticação low tech de realizadores de clips como Spike Jonze ou Michel Gondry teve um percursor em Stephen Johnson. E quem é Stephen Johnson? Eu respondo, com outra pergunta; quem, tendo crescido nos anos 80, não se lembra do vídeo de Sledgehammer, de Peter Gabriel? Pois, é impossível escapar, goste-se ou não do ex-vocalista dos Genesis (o horror, o horror). Ora bem, Stephen Johnson não realizou muito mais vídeos; e, entre eles, o meu preferido é Road to Nowhere, dirigido em parceria com David Byrne.
O trabalho é um compêndio de uma cena artística: as insinuações arty remetem de imediato para uma década, a de 80, e para um local, Nova Iorque. O vanguardismo insinua-se, evocando várias técnicas da arte das décadas anteriores: o estilismo pop à Andy Warhol, o cromatismo da arte de rua, a action painting de Jackson Pollock. Se juntarmos a isto o kitsch dos símbolos norte-americanos - o deserto, as igrejas evangélicas, o gospel - temos um retrato mais ou menos fiel do que poderia ser a América. E, sobretudo, do que poderia ser a ideia que a cena artística de Nova Iorque tinha da América.
E, claro, a música dos Talking Heads; tão desviante e referencial como o vídeo. Por vezes, uma boa ideia é tudo.

[Sérgio Lavos]

19/03/08

Falar

Don DeLillo ou tem pesadelos com a questão ou diverte-se no seu genial solipsismo. Em todas as entrevistas que li, repete-se: os diálogos, são ou não são inverosímeis? São sardónicos, acelerados, subversivos, cínicos, repletos de referências culturais mais ou menos subtis, megalómanos na sua perfeição formal. Isso tudo. Mas será que as pessoas, na vida real, falam assim? É claro que não é uma verdadeira questão, apesar do escritor já ter dito e repetido que sim, falam assim. O que é mais interessante nos diálogos de Don DeLillo é o seu extraordinário sentido de ritmo. Das suas peças, li Valparaiso, e os ecos de Sam Shepard confirmam a suspeita: o seu treino tem raízes na linguagem do teatro, na difícil relação entre ideia e som, personagem e palavras. Deixarmo-nos ir com as personagens de DeLillo, sentir a língua fluir, equivale a uma encenação tensa de algo que nunca é verdadeiramente afirmado. O cansaço, o tédio, as desilusões da vida: e o esforço que os homens fazem para aliviar o peso de tudo usando o artifício da ironia.
A ironia, suprema conquista da linguagem, a derrota da seriedade da vida. É realista? É apenas a verdade.

[Sérgio Lavos]

Veritable jubilee

"Hello, Tab. I was in Hollywood recently. I drove my car into a palm tree and twelve guys fell out. They all looked exactly like you. Norman Rockwell soda jerks."
"Hello, Warren."
"When I called before, your secretary said you were in the office commiting suicide. I called back hoping I'd be the lasto person to speak to you alive. Warren Beasley, the controversial radio personality, was probably the last person to talk to the popular young television executive. Mr. Beasley said that Bell, twenty-eight, had been despondent over the loss of his old fielder's glove. The deceased bore a strong facial resemblance to a number of Hollywood stars known for their interchangeability. His body will be sent airmail express to the West Coast for possible casting in s new movie spectacular based on the siege of Leninegrad."
"You sound as morbidly chipper as ever" I said.
"I'm calling to invite you to my wedding. If all precedents hold, the honeymoon promises to be a veritable jubilee of ejaculatio praecox."

Don DeLillo, Americana

[Sérgio Lavos]

Anthony Minghella (1954-2008)



[Sérgio Lavos]

18/03/08

É bom - a sério

Há algum tempo que não deixava aqui um link para um texto do José Quintas; aqui está ele. Mas podem ler o resto - o blogue é público.

[Sérgio Lavos]

MEC

A verdade é esta: o diário da perna, de Miguel Esteves Cardoso, mesmo sendo mau, inútil, displicente, é melhor do que quase tudo o que se lê na jornalhada nacional; só não percebe isto quem não entende que há várias maneiras de falar do esfíncter; esfíncter; falar do esfíncter; e da algália. A poesia da algália; a outra ponta da linha que a liga ao copo de whisky de há trinta anos. Saúde ao osso novo, descanso aos velhos. Excepto os ossos da mão; os que conduzem à escrita.

[Sérgio Lavos]

17/03/08

E agora, as artes

(Daniel Plainview na fase inicial da sua carreira)

Não queria bater mais no ceguinho, mas voltei-me a lembrar do Daniel Day-Lewis enquanto via o Marítimo-Benfica, o Chalana sentado no banco e depois, em fila, o Rui Águas e o Shéu (Han, desde que pendurou as chuteiras). Ora, o Chalana; decidiu colocar o destro de dois pés esquerdos, Luís Filipe, colado à extrema direita, e o homem do refrigerante disléxico, Sepsi, encostado à extrema oposta, devidamente apoiados pelos dois rafeiros de guarda da casa, Petit e Bynia. Se o raio de acção destes dois últimos conseguisse diminuir o espaço deixado pelos dois extremos, teríamos jogo. Se o Rodriguez conseguisse fingir que é segundo ponta-de-lança durante tempo suficiente, melhor ainda. E o Cardozo, lá na frente, serviria de tabela de basquete para as bolas lançadas pelos companheiros. Óptima estratégia, que dependeria de duas coisas: o retardador na reacção do treinador do Marítimo e o tempo até Luís Filipe perceber que, mesmo jogando a extremo direito, poderia sempre vir cá atrás e não ajudar o Nélson a defender, ou quem sabe provocar um ou outro calafrio para o Edcarlos não limpar. Havia algumas hipóteses. Quer dizer, eu não via o Benfica a jogar desta forma para aí desde os tempos em que o Vítor Paneira rabiava na direita, o traidor Pacheco na esquerda e o João Pinto bailava ali pelo meio, a servir um tosco qualquer que tivesse lá frente (por vezes era o Isaías). O comentador avançou: esta táctica é antiquada. O Chalana manteve-se sereno no banco, pensando em como seria bom que a Ciência tivesse avançado ao ponto de se poder clonar a ele próprio, entrar em campo e avançar para aquela pequena tira de terreno onde apenas microorganismos e grandes jogadores de futebol sobrevivem. É claro que o Benfica perdeu. Perdão, empatou. Apenas quando sairam os extremos e entrou o Rui Costa, não sei se alguém reparou. E o que é que o Daniel Day-Lewis tem a ver com isto? Para além de ter captado a atenção de quem vem a este blogue à procura de textos sobre cinema (haverá alguém?!?), tem tudo. O Daniel Day-Lewis não precisa de um bom filme para brilhar; é como o Rui Costa, que tem sido o principal protagonista de uma fita de terror no último ano e meio; digamos que o olhar dele, ao observar o desempenho dos colegas em campo, compara-se ao estertor do rosto de Jamie Lee Curtis em Halloween. Tirem-me deste filme; com amor. Já os outros actores, precisam, como de pão para a boca, de um Steve Soderbergh que os motive para a transcendência, um Kant dos tempos modernos, da mesma maneira que tornou George Clooney um tipo cool (em Out of Sight e daí para a frente em vários outros) ou Jennifer Lopez mais do que um cepo bem torneado, daqueles que se usam no Natal para enfeitar a mesa da consoada (também, e só, em Out Of Sight). O elenco benfiquista neste momento assemelha-se a uma reunião de velhos actores de Ed Wood, à espera de um génio que os faça brilhar de maneira que não seja cómica.
E chegar a este ponto - servir-me do cinema para falar de futebol - não é apenas preocupante. Uma pontinha de humilhação espreita também por aqui.
Ah! O Chalana poderia ser gajo para transformar o Luís Filipe num Paneira fora de prazo (o que já não era mau) e convencer o Bynia a olhar-se ao espelho e ver o Makelele; por isso é que vai sair do Benfica (ou continuar como adjunto da próxima alma penada). Série Z. Interminável.

(Para compensar, saiu ao Sporting o cromo do Paulo Bento, e parece que a cola é Super 3; é para durar. Bem hajam!)

[Sérgio Lavos]

15/03/08

MGMT


Surgem sempre bandas que, com uma ou outra música, nos fazem dar mais atenção ao hype, mesmo que a vontade seja de ignorarmos aquilo de que toda a gente fala. O cemitério dos hypes, de resto, abriga cadáveres mais belos do que muitos vivos que ainda hoje são famosos. O primeiro hype a que dei atenção, por exemplo, foi o shoegazing, e ouvir hoje My Bloody Valentine continua a fazer sentido; teria sido pior se tivesse ignorado o hype.
Aqui há uns 8 anos, também dediquei muito do meu tempo a um álbum fantástico, de uma banda que deverá ter atingido o seu auge criativo ali: os Mercury Rev. Deserter's Song, é claro que sobreviveu, eles continuaram, mas a fama desapareceu. O facto de uma música deste álbum ter sido usada pela Optimus, no seu aparecimento, não é, evidente, fenómeno a desconsiderar no sucesso transitório. Percorrer o espaço entre margem e corrente principal pode, portanto, ter a ver com, fundamentalmente, vender a alma e a integridade artística a uma empresa de telemóveis; ou será que a promoção da música pode admitir esta transigência artística? A música ignora sempre a dúvida ética. E Deserter's Song, na sua planura etérea que vai beber directamente ao psicadelismo dos anos 60, continua a brilhar de tempos a tempos no meu leitor de CD's (ainda não me livrei dele).
Tudo isto a propósito de quê? Do novo hype, directamente de Brooklin para o mundo (novamente). Para não deixar a tocar Vampire Weekend, que são bons, nem Yeahsayers, que também se ouvem bem, deixo os MGMT, uma banda de 1968 (queriam eles) que apenas agora foi descoberta. Muitas derivações sintéticas, melodias místicas e saturação sónica acompanhadas aqui e ali por um meneio de ancas ao estilo de Mick Jagger. Do mesmo produtor dos Mercury Rev e Flaming Lips, Dave Fridmann, a criação do momento, Time to Pretend, com uma letra vagamente inspirada em Almost Famous, o filme de uma geração - a hippie, claro, basta olhar para a roupa dos MGMT. Nada de novo na frente ocidental; a reciclagem é obrigatória.

[Sérgio Lavos]

Mengele

Depois de ter começado a fumar em Janeiro, acho que vou ali fazer um piercing e já venho.

[Sérgio Lavos]

12/03/08

Túneis

Alberto Manguel, uma certa tarde perdida e um homem cego a entrar com o sol, decidido. Bastou uma simples conjunção de circunstâncias para um homem dedicar uma vida aos livros, ao perverso fétiche da sabedoria; na realidade, o saber. Jorge Luis Borges, de porte altivo, esbatendo a planura branca dos olhos, precisava de alguém que lhe lesse. Precisava de alguém que lhe contasse as histórias que lhe serviam de sangue para as suas próprias histórias (memórias?). Ninguém melhor, para satisfazer os seus caprichos, do que aquela voz de adolescente à procura. O paraíso que Borges desejava, a biblioteca transcendental, aconteceu-lhe em vida. Desconfio. A sua biblioteca era mental; todos os livros que lera, todos os livros que lhe leram, todos os livros que escrevera, todos os que não escrevera. As estantes de Babel repletas de livros que sonhava ler, a eternidade. Manguel, na sua cegueira de juventude, viu ali um guardião de uma causa divina. Segui-lhe os passos, farejou-a, quis tornar o sonho de um cego o seu próprio sonho.
Agora que escreve os seus livros (belos e devotos, belos por mostrarem tanta devoção), imagina ser o corpo que descontém o fluxo criativo de Borges. O seu tigre. Enjaulado numa biblioteca. Interminável.

[Sérgio Lavos]

Cantiga de amigo

...lia um texto sobre blogues, e lembrava-me de como é fácil cair em certas armadilhas. Julgava eu, que escrevendo, me sobraria tempo para pensar sobre o escrito. Catadupa - catadupa, escrevia, sem pensar, primeiro rascunho. E ali brilhava o texto, e eu publicava, e estava tudo pronto, e seria necessário reafirmar o medo que prendia a solidão a um canto do quarto. O canto oposto de onde escrevo - a geometria da escrita depende da mudança das estações; o sol declinado sobre o monte de jornais, quando a tarde se emociona; o rádio ligado, Lou Reed sintonizando a sua estação preferida - estação certa na estação certa, primavera, a caminho do sol. A margem entre a sombra e a luz era um canteiro - e não quero com isto retirar força à literalidade da paisagem; não há metáfora que possa condenar a realidade. Realmente lia, realmente escrevia e realmente fazia primavera sobre as manchas pretas dos jornais acumulados; e a solidão amedrontava-se. Um passo em falso, o alçapão, um focinho de toupeira que espera; a mão sobre o jornal, e de como provavelmente poucas palavras serão capturadas pela ave de rapina que dá pelo nome de leitor de blogues. Um texto armadilhado, o possível quando o cansaço é um aperto amoroso no texto contínuo que vai nascendo. Não tenho palavras preferidas, nenhuma presa guardada na jaula. Todas me fogem, e na sua voluptuosidade matreira levam a minha última esperança de descanso, de silêncio.
Na verdade, há em cada intervalo no silêncio que compõe este texto um inimigo. Quando escrevo, combato; e quase sempre caio por terra. E nem posso dizer - como um pássaro. A liberdade de um combatente é nula. E continuo a ler, enredado na mira do inimigo meu amigo. Meu amigo.

[Sérgio Lavos]

04/03/08

e não mais

Creio que os meus textos sabem muito mais; eles não estão atrás, no meu passado autobiográfico; eles estão diante de mim, no meu futuro autobiográfico; atraem-me tanto a mim quanto os outros que os tocam, para saber

e não mais.

Maria Gabriela Llansol

(Um Beijo Dado Mais Tarde, ed. Rolim, 1991)

03/03/08

Um beijo e uma memória

Queria ter começado este blogue com um texto sobre o tempo (lá fora). Queria, de resto, ter continuado este blogue mantendo uma proximidade com o mundo que corre (lá fora); situar-me. O blogue não me ajuda a localizar, não é um mapa. Saber que no dia 3 de Março de 2006 esteve a chover ou que o sol se atreveu a reaparecer seria, desconfio, indício fiável de nada. Saber que hoje, por exemplo, morreu Maria Gabriela Llansol, não adianta nem atrasa a existência deste blogue. Porque eu posso falar por ele. Mas ele não pode falar por si próprio, independente do tempo no qual vai sendo escrito. Relativizando, relativizando, o único caminho a seguir antes que comece a falar de mim na 3ª pessoa. Adiante; um texto (com espaço, traço, e tudo) de Llansol, que eu nunca soube ler como devia:

Poderia estar com os rapazes, no sonho da aula, na cova do povoado. Mas terá, sozinha, um confronto com a leitura; a casa que havia na cidade soltou-a, nessa noite, no campo _______ puro de toda a densidade que não seja o tempo.
É sobre o tempo, hoje, que vai ler. "O percurso, até chegar à lição de leitura, é meu". Partes do livro terão um corpo que, ao fim da hora concluída de leitura, lhe será entregue. Ao fim do sussurro de ler, operou-se a metamorfose de Myriam em Témia _______ muito mais tarde, quando for lido, e o dia estiver eventualmente iluminado por uma vela.

(Um Beijo Dado Mais Tarde, ed. Rolim, 1991)

[Sérgio Lavos]

2 more years



Neste dia, há dois anos; sem espelho.

[Sérgio Lavos]