31/08/11

Arrival

And yet one arrives somehow,
finds himself loosening the hooks of
her dress
in a strange bedroom -
feels the autumn
dropping its silk and linen leaves
about her ankles.
The tawdry veined body emerges
twisted upon itself
like a winter wind...!


Sudek, William Carlos Williams

Simetrias

30/08/11

A cidade e as serras

Uns versos de Cesário Verde: nas nossas ruas, ao anoitecer, há tal soturnidade, tal melancolia... transformados em prosa, deixam de descrever a Lisboa do século XIX e passam a designar qualquer fim de tarde, em qualquer época. Numa cidade, a noite cai de forma abrupta. As pessoas regressam a casa, as luzes acendem-se, o trânsito diminui. A melancolia urbana é triste. O anoitecer no campo é lento, os olhos vão-se habituando à luz nocturna, e o corpo vai atrás, acomoda-se às sombras. A cidade destrói o silêncio. E o campo dá-lhe um nome de família. Não tememos o silêncio, no campo; antes o ruído que o possa interromper. E os versos de Cesário Verde deixam de fazer sentido.

Falso zen

A paciência, para um monge budista, é tão maleável como um pedaço de plasticina. Contudo, mesmo a plasticina tem um limiar de elasticidade; e quebra-se. 

(A história do monge budista é inventada. Sei lá eu o que pensa um monge budista da paciência.)

Santiago

29/08/11

A ler

Uma reflexão de David Teles Pereira que complementa - e enriquece em muito - o texto de António Guerreiro no Expresso. O progressivo desaparecimento de uma coisa tão inútil como a "poesia" deveria ser um tema tão ou mais importante do que a crise económica ou o aquecimento global. A discussão não poderá deixar de ser feita.

Sabedoria

Chega uma altura em que teremos de reaprender a não ter certezas. Há quem lhe chame realismo; eu sou suficientemente cínico para lhe chamar sabedoria.

A culpa

Um homem não é culpado das coisas que não pode controlar; mas será sempre culpado por não as  saber controlar.

28/08/11


Barata (uma alucinação de Adília Lopes)


                                                                               "Por exemplo, nunca convidei uma barata para lanchar comigo"
                                                                                 CLARICE LISPECTOR

Havia uma pessoa
que convidava outras pessoas 
para lanchar com ela
ela fazia pudins complicados
tão complicados
que eram precisas mais duas pessoas
para os fazer
o que é muito perigoso
porque se três pessoas fazem a mesma coisa
ao mesmo tempo (mais ou menos)
ou morre a mais velha ou morre a mais nova
ela por esperar muito os convidados
arranjou as coisas de maneira
a ser sempre a do meio
entretanto as criadas iam morrendo
mas os convidados não apareciam 
ela chegou mesmo a suspeitar 
que nunca os tinha convidado
ou que nunca os tinha conhecido
comia ela os pudins com a criada que sobrava
e às vezes com uma barata
as criadas não achavam bem a barata
em cima da mesa
e a barata deixou de aparecer
ela com o desgosto passou a viver de maneira perigosa
fazia de maneira que as duas criadas
fossem ambas mais velhas do que ela
ou ambas mais novas
mas eram sempre as criadas a morrer
até que um dia sem ter feito nada por isso
morreu
então as criadas abriram a porta do armário
onde tinham fechado a barata
e a barata saiu de lá 
muito magra
a caminhar a custo
e à medida que os convidados
iam aparecendo os convidados
iam pedindo desculpa às criadas

In Dobra, ed. Assírio & Alvim, 2009.

27/08/11

A minha cabeça estremece

Nada a Temer

Um livro ideal para o Verão? Pense Julian Barnes. Pense existencialismo. Literatura francesa. Morte. Nada a ver com praia, sol, paz de espírito? Tudo. Com Barnes, o temido fim não deixa de estar lá, mas relativizemos: a obra autobiográfica do francófilo escritor inglês é uma reflexão sobre o desaparecimento, um diálogo com o irmão filósofo, uma demonstração de virtuosa bibliofilia – e também um edipiano ajuste de contas com a falecida mãe. O cortejo de escritores ajuda Barnes na sua demanda para curar a “doença da existência”. Acabará por não a curar, é certo, mas alivia um pouco o seu peso. E o nosso.

Nada a Temer, de Julian Barnes. Edição Quetzal, tradução de Helena Cardoso.

(Texto publicado no ThePrintedBlogPortugal).

25/08/11

Prosas Apátridas


Prosas Apátridas, de Julio Ramón Ribeyro, é um blogue avant la lettre. Mas não é um diário. Por não ser um diário, mas um conjunto de textos curtos e intimistas, numerados e sem indicação de data, é que este livro do escritor e jornalista peruano se aproxima tanto do registo bloguístico. A observação do quotidiano; notas de leitura, algumas ácidas e desiludidas, outras deslumbradas; breves meditações sobre a natureza humana, pontuadas por uma ironia melancólica sustentada no pleno domínio da língua. Para ler como se escreve um diário: saboreando a transitoriedade do momento.

Prosas Apátridas, Julio Ramón Ribeyro. Edição Ahab, tradução de Tiago Szabo.

(Texto publicado no ThePrintedBlogPortugal)

19/08/11

A minha Assírio

A "parceria" entre a Assírio & Alvim e o grupo Porto Editora marca uma fim de uma era. Aconteça o que acontecer. A editora fundada nos anos 70 não era uma marca, não era um produto; era uma referência. Criou uma identidade. A editora da poesia. A editora de Herberto Helder. A editora da Phala. A editora da colecção de poesia inédita portuguesa, que foi revelando grandes poetas ao longo de várias décadas. A editora de Fernando Pessoa. De Alfredo Saramago. Do Poemário e do Culinário. Da minha Poesia Toda a espreitar ali da estante. Do meu Lunário - e não é d'O Medo porque tenho a edição da desaparecida Contexto. Do meu Bartleby e do meu Tonino Guerra. Do meu Kafka. Do meu Miguel Esteves Cardoso. De Manuel António Pina. O que vai ser dela, agora que foi engolida por um gigante? Como Jonas, sobreviverá dentro da baleia? O comunicado da Porto Editora assegura que se vai manter a autonomia editorial. Mas Manuel Rosa, o continuador de Manuel Hermínio Monteiro (o homem que forjou a alma do projecto), parece que vai sair. E nem passou um ano desde que Vasco Teixeira, o dono do gigante, afirmou numa entrevista que a poesia, a curto prazo, deixará de ser editada - amargas ironias do destino. Temos o bom exemplo da Sextante, também pertencente ao grupo, e que tem sabido manter, pela mão de João Rodrigues (o fundador), a mesma criteriosa qualidade. Tudo muda, tudo se transforma. E o gigantismo pode não ser absolutamente uma doença. Mas saber que a Assírio não era uma "marca" ou uma "chancela", mas sim uma editora, a sério e à antiga, uma força com identidade própria que foi sobrevivendo nas livrarias, era um sinal de conforto num mercado que cada vez mais tem menos que ver com livros e mais com "produtos". 
O uso do pretérito imperfeito poderá ser prematuro. Espero que seja. Porque eu não quero perder a Assírio da poesia. E as coisas que vão desaparecendo são muito mais preciosas do que as que vão nascendo. Tempos de sobressalto, quando valores mais altos do que a poesia se levantam. Tristes tempos.

Raúl Ruiz (1941-2011)

18/08/11

Carro

Surpresas e ausências. Permanência. O que preferir, o que entender? O esforço de atribuir um sentido aos acontecimentos; não no sentido premonitório ou místico. Mas um sentido. A linha que leva de um lugar ao outro; sentir o ritmo da viagem. Andar a reboque do tempo, deixá-lo tomar as decisões de que não nos conseguimos livrar. E depois não lamentar a abdicação. Olhar para trás e achar que tudo aconteceu como deveria ter acontecido. A liberdade, uma paisagem desaparecendo no retrovisor do carro. E eu, no lugar do morto.

A Primavera das fotografias

O grande mural fotográfico que adorna a sala do café Les Finances. Representava, nos seus bons tempos, um bosque em pleno verdor. Com os anos a cor foi amarelecendo. A Primavera das fotografias também tem o seu Outono.

Uma prosa apátrida de Julio Ramón Ribeyro para a série "The Hungry Eye", da Maria João Freitas.

01/08/11

Vultos

O que torna o passado uma morada de reconhecimento é a sua natureza extensiva. Alongado, esticado até ao limite, um habitante do reverso da pele, um vulto desaparecendo na janela. Pegar numa folha de papel, dobrar, vincar com as unhas, esmagar imagem contra imagem. Qual a original, qual a cópia? Guardar a folha num casaco que nos foi roubado. Perder tudo. Recordar a imagem da imagem. Regressar ao espaço imaginando-o tempo.