Nos livros de Manuel Vásquez Montálban com Pepe Carvalho, o que mais me cativou não foram as tramas intricadas, os ambientes negros, as mulheres fatais vindas de policiais noir antigos; nem sequer foi a Barcelona que me pareceu tão mais bela que a verdadeira, quando finalmente a visitei, ou tão bela como, mas diferente. Nem a hábil leveza da escrita, como quem se exercita no ofício da guerra com apenas uma caneta como arma (dispenso o uso da pena). O que me deixou, literalmente, a salivar, foram as descrições, fulgurantes, precisas, pomposas, da preparação dos elaborados pratos que o detective cozinha para os seus convidados (Francisco José Viegas aproxima-se, com Jaime Ramos, deste hedonismo desencantado).
Cada refeição começa-se a preparar com a antecedência minuciosa de um gourmet - a escolha dos ingredientes é, evidente, fundamental. A textura, o cheiro, a aparência, o toque, a leveza; e, sobretudo, a confiança nos habituais fornecedores - isto de cozinhar assemelha-se em muito a consumir uma droga; a confiança no dealer é essencial. Depois, as mãos sobre a comida em bruto, a sua dança, a escolha da ordem com que os legumes, peixe, a carne, são cortados e colocados dentro dos tachos. A descrição das lâminas a cortar a polpa dos frutos - o presunto servido antes, os queijos, o vinho. O amor ao detalhe é tão grande que ultrapassa largamente qualquer outra passagem dos romances. Cozinhar é uma volúpia que poucos descobriram - e quem realmente gosta de comer acaba por querer, mais cedo ou mais tarde, controlar todo o processo que leva ao prazer.
Montálban provoca este desejo de comer - a literatura para o estômago de que falava Julien Gracq, no seu sentido mais literal e benigno. Um bon-vivant, esse velho e estafado cliché, terá de necessariamente amar a vida ao ponto de a achar uma desilusão. Um detective mergulhado em caos e corrupção é o derradeiro hedonista - ainda bem que a ficção se aproxima mais da vida mental do escritor do que da realidade que retrata.
Cada refeição começa-se a preparar com a antecedência minuciosa de um gourmet - a escolha dos ingredientes é, evidente, fundamental. A textura, o cheiro, a aparência, o toque, a leveza; e, sobretudo, a confiança nos habituais fornecedores - isto de cozinhar assemelha-se em muito a consumir uma droga; a confiança no dealer é essencial. Depois, as mãos sobre a comida em bruto, a sua dança, a escolha da ordem com que os legumes, peixe, a carne, são cortados e colocados dentro dos tachos. A descrição das lâminas a cortar a polpa dos frutos - o presunto servido antes, os queijos, o vinho. O amor ao detalhe é tão grande que ultrapassa largamente qualquer outra passagem dos romances. Cozinhar é uma volúpia que poucos descobriram - e quem realmente gosta de comer acaba por querer, mais cedo ou mais tarde, controlar todo o processo que leva ao prazer.
Montálban provoca este desejo de comer - a literatura para o estômago de que falava Julien Gracq, no seu sentido mais literal e benigno. Um bon-vivant, esse velho e estafado cliché, terá de necessariamente amar a vida ao ponto de a achar uma desilusão. Um detective mergulhado em caos e corrupção é o derradeiro hedonista - ainda bem que a ficção se aproxima mais da vida mental do escritor do que da realidade que retrata.
[Sérgio Lavos]
3 comentários:
Caro amigo Sérgio.
Escreves extraordinariamente bem, uma escrita fluída, sem arrufos ou pretensões estilisticas grotescas, bem pontuada,num estilo claro e acessível e, sobretudo, coerente.
Creio ser mais novo do que tu, pois em breve farei 47 primaveras, mas a leitura e a escrita são os dois grandes amores que me prendem a esta vida.
Gostava de um dia poder, também, conseguir escrever assim, com essa mestria, mas todos nós temos uma fasquia como escreventes e acho que a minha há muito foi alcançada.
Um abraço amigo, Feliz Natal e, caso não te importes, virei visitar-te sempre.
Jorge (Madrigal)
glauco1961@gmail.com
Desculpa. Voltei atrás. o meu blogue é: madrigais.blogspot.com - e de momento está encerrado para comentários.
Um abraço,
Jorge
PS. Caso te apeteça, escreve-me.
No Verão passado, li um livro bem "confeccionado", cujos ingredientes eram limas bastante verdes, abacates maduros, ostras, tequilla bem fria, pão com azeite... Chama-se «Água na Boca»,de José Manuel Fajardo. E se no final, não chupei os dedos, pelo menos abriu-me o apetite.
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