31/12/09

Álbuns 2000 #1

Radiohead - Kid A (2000)

Passados quase dez anos sobre a saída de Kid A, continua a ser impossível encontrar outro disco que defina tão bem esta época. O lado B da euforia mainstream, o anti-pop que vende milhões, a música que antecipa a paranóia e o medo pós-milénio que vivemos. Os Radiohead deixaram de querer canções e conseguiram encontrar estados de espírito - a electrónica sublinha tensões, os ritmos estimulam a disforia, as peças que compõem cada puzzle encaixam mal, mas fazem todo o sentido.
Tudo no seu lugar, como Thom Yorke ensaia na primeira música, um sossego desinquieto, uma espécie de aviso para o que se segue: o robô infantil de Kid A, cantando como se fosse um flautista mecânico de Hamelin, a quem seguimos cegamente; o pseudo-hino insuflado de sopros desconchavados de National Anthem ("what's going on?"); a maravilhosa balada ensimesmada, Everything in its Right Place, um lamento sobre a transparência existencial e a possibilidade de fuga, "isto não está a acontecer", os violinos a sublinhar o desespero; e depois Treefingers, o perturbador interlúdio instrumental que tanto pode ser usado como acompanhamento para meditação como modo de evidenciar a alienação que o resto do álbum provoca, três minutos vindos directamente de 2001, Odisseia no Espaço; o silêncio precede o optimismo, como o DSM-IV avisa, e em Optimistic o ritmo rock acompanha uma letra sobre a distância, no fundo a melhor maneira de esquecer "os abutres que sobrevoam os mortos" e "os peixes maiores que comem os mais pequenos"; mas a bonança dura pouco, o caos regressa em In Limbo, armadilhas a cada passo, o afastamento, o isolamento e a lucidez que ele traz, "i've lost my way"; Idioteque é simultaneamente uma crítica ao vazio (que convoca e critica Discothéque, dos U2) e um princípio de entrega à loucura, quando não resta outra saída que não seja a retirada para um bunker, "here i'm alive/everything all the time". Depois, Morning Bell acentua o desfasamento da realidade - frases deixadas a meio, ideias vagas, e o cândido ritmo da voz de Yorke contrastando com a violência da letra: "Cut the Kids in Half/Cut the Kids in Half" - talvez a melhor música do álbum, perfeita. Para terminar, um som de acordeão transporta-nos finalmente a um porto seguro, e percebemos que apenas a banalidade do quotidiano - "cheap sex and sad films" - nos pode trazer algum conforto - e um simulacro de amor, antes do fim chegar - "I Will See You in the Next Life".
Ouvi este disco dezenas, centenas de vezes, e ainda consigo encontrar coisas em que não reparei antes: os versos têm outro significado, os vários trechos musicais combinam de forma diferente, a sequência em que ouço as diversas faixas muda, e o sentido também. Enquanto uma boa canção pop está ligada quase sempre à repetição, ao passado - de cada vez que a ouvimos, a sensação é quase a mesma - as músicas dos Radiohead questionam - o presente, as ideias sobre o mundo, os clichés musicais que se repetem. A música existencial para principiantes. Para todos.

(vídeo aqui, ao vivo e epiléptico)

30/12/09

Álbuns 2000 #2

The Strokes - Is This It (2001)

O som desta década, tudo o que se seguiu, foi definido por este álbum, e isso seria o suficiente para estar na lista. O rock nunca mais foi o mesmo? Não vou tão longe, mas a verdade é que os Strokes, entre o revivalismo pós-punk e uma pose arty nova-iorquina, facção Velvet Underground, foram o cadinho onde foram buscar inspiração dezenas de bandas rock que se lhes seguiram. Então, o rock nunca mais terá sido igual. Bateria sincopada e minimal, baixo ritmado, guitarra ritmo ondulante e solos resgatados directamente aos anos 70 (Undertones, Wire) juntaram-se à voz de ressaca displicente de Julian Casablancas para criar uma obra que, sobretudo é uma magnífica colecção de singles (à maneira dos Smiths). Não há uma faixa deste álbum que não seja suficientemente pop - até New York City Cops, homenagem ao punk mais puro, é um hino. Podemos exigir mais aos Strokes? Mais rasgo, mais invenção? Não me parece que o rock precise sempre destes dois ingredientes. Inventar o som de uma década é mais do que suficiente. O rock de guitarras angulares e estilo negligente estudado dura o que durar, como sempre, mas a eles ninguém pode tirar isso.

(vídeo aqui)

Álbuns 2000 #3

Sigur Rós - Ágaetis Byrjun (2000)

E agora, para algo completamente diferente. Depois de Björk, a banda que aprendemos a identificar com a Islândia. Guitarra tocada como se fosse um violoncelo desafinado, sintetizadores etéreos, sons sinfónicos siderais, uma voz de sereia andrógina planando, uma língua inventada, indecifrável. Será tudo isto, mas a descrição é sempre insuficiente. A maior qualidade dos Sigur Rós é a capacidade de criação de ambientes - planícies geladas, fiordes descomunais, o mar revolto trazendo marinheiros a portos abandonados, histórias de amor entre humanos e seres quiméricos, o fogo arrefecido de antigos vulcões pulsando por baixo da terra. Esta música ancestral, que transmite mais sensações do que ideias, vai se infiltrando lentamente até se transformar numa vaga avassaladora, como um rio de magma arrastando rochas e detritos, lavando a terra das suas impurezas originais. Estamos num outro mundo, que transcende a música que o cria. Brilhante.

(vídeo aqui, excelente como todos desta banda)

29/12/09

Seberg/Belmondo

Álbuns 2000 #4

Queens of the Stone Age - Songs for the Deaf (2001)

O rock, rock a sério, nesta década, passa pelos descendentes do grunge Queens of the Stone Age, e seus companheiros e camaradas, Eagles of the Death Metal e a série de projectos paralelos, que culmina nos Them Crooked Vultures deste ano, super-grupo que inclui John Paul Jones, antigo baixista dos Led Zeppellin. O melhor álbum dos QOTSA é Songs for the Deaf; e é perfeito porque tem a colaboração do melhor baterista rock dos últimos vinte anos, Dave Grohl - e não se fala mais em Foo Fighters, que a vaidade nos génios é um defeito desculpável. E Mark Lannegan, ex-Screaming Trees, é também fundamental na definição do som - a voz que veio do grunge faz a ponte entre as duas décadas.
Música para ouvir num qualquer bar de motoqueiros perdido no Texas, riffs de bateria divinos, baixo hipervitaminado, guitarras rasgadinhas, letras politicamente incorrectas qb: é esta a receita para a perfeição.

(vídeo aqui)


20/12/09

Álbuns 2000 #5

Arcade Fire - Funeral (2004)

Um álbum que é uma celebração dos queridos mortos - dificilmente uma banda poderia arranjar melhor assunto para primeiro trabalho. E transformar o que seria uma elegia fúnebre, negra, numa festa em palco, eis o grande feito dos Arcade Fire. Mas, para além dos épicos desempenhos ao vivo, há a música, algures entre David Bowie e a folk, com uma ou outra passagem pelos New Order e os Pixies, num álbum que evoca os gloriosos anos 90, e que apenas poderia dizer algo a quem passou por lá, oscilando entre a melancolia e a euforia, entre Radiohead e Smashing Pumpkins (há muito do desequilíbrio deles em Funeral), entre o fim de qualquer coisa e o princípio de algo que rapidamente passou - o grunge, claro. Se nos limitarmos às pequenas coisas que os Arcade Fire também têm - as histórias de infância, as zangas entre irmãos, as brincadeiras que queríamos prolongar até ao infinito, todos os sons que ilustram a sensação de perda - teremos o suficiente. O hype da década, que nos desiludiu ao segundo ensaio, prolongou-se para lá da estação em que nasceu. Um grande álbum, imperfeito e belo como também podem ser os grandes álbuns.

(vídeo aqui)

18/12/09

O silêncio continua a ser de ouro

Ora, portanto, bingo, José Mário, estou contigo. Eu ainda tive paciência para lhe aturar os humores, enquanto achei que a verve e o estilo lhes eram superiores. Mas há um limite, e Vasco Pulido Valente bem se esforça para chegar lá, abnegadamente. É claro que ele não tem razão neste caso, e mais, raramente tem razão, e pior, quando tem razão, tem a razão de um qualquer taxista, que acerta apenas no mal que toda a gente conhece, não sugere nada que acabe com esse mal e tem-se sempre em grande conta, achando-se único num mundo que não o compreende - recorrendo sempre ao "que se faz lá fora". O que nos resta agora é assistir à agonia do homem, todas as semanas, se para isso alguém tiver pachorra. Haja quem, que é triste a decadência.

Álbuns 2000 #6

The National - Boxer (2007)

Repara-se primeiro na maravilhosa percussão das músicas, a bateria, maquinal, repetitiva, depois o baixo, e sobre o ritmo assentam as palavras de Matt Berninger, melancolia e desilusão amorosa, numa destilação pura, vintage e grave, perfeita. Se os Joy Division são a banda para a adolescência tardia, os National devem ser a cura para o arrependimento, a banda-sonora ideal para o desencanto da idade adulta. As manhãs de ressaca cada vez piores, os fins de relação cada vez mais penosos, os inícios cada vez mais cínicos. O estado de espírito de uma geração na década dos 30 em forma de álbum, e lá se confirma a ideia da música ser uma abstracção concreta, e não algo de indefinível. Recontextualizemos: não quero que todos os que são desta geração gostem da música dos National; quero apenas que aqueles que eu entendo a entendam. Somos muitos, ou poucos, não interessa, somos os suficientes. E mesmo sem as letras de Berninger, seria sempre um grande álbum.

(vídeo aqui)

17/12/09

A cultura da Direita

Caro Rui,

não querendo acrescentar muito mais ao que escrevi, e relembro o que escrevi: "e fico a matutar naquela ideia da direita matarruana no que toca a assuntos de cultura. Se não fosse o Pedro Mexia e outros a contradizer o preconceito...", penso que devias ler hoje no Público - se não o fizeste já - o texto (indisponível para não assinantes) escrito em conjunto por Rui Machado, director do ANIM, e Luís Miguel Oliveira, director do Departamento de Exposição Permanente da Cinemateca, no qual esclarecem a razão do referido arquivo se situar em Bucelas e não no centro de Lisboa. Confesso que não conhecia essa razão, mas ainda fiquei mais elucidado sobre a atitude de Helena Matos; ela escreveu sobre aquilo que não conhecia a fundo, motivada por razões exclusivamente ideológicas. "Se a Cinemateca é um organismo público e se dela depende o ANIM, então deve funcionar mal, de certeza", terá pensado. Parece-me claro. Enquanto eu questiono o meu preconceito em relação à atitude da direita no que diz respeito a questões de cultura, Helena Matos atira-se de cabeça e critica sem saber minimamente do que fala. Quanto a isto, estamos conversados.
Quanto ao resto, julgo que já tivemos esta conversa antes. A minha posição é clara: não faz qualquer sentido não haver em Portugal uma Cinemateca (ou duas, ou as que forem necessárias) e as instituições que dela estão dependentes. O cinema é uma manifestação cultural essencial, e é essencial que os filmes que não tenham distribuição comercial regular estejam disponíveis ao público. E em sala, não em DVD, quem gosta de cinema sabe qual é a diferença. Mas esta é apenas a função primária da Cinemateca - o arquivo de imagens que lhe está associado é a verdadeira razão de existência da instituição; os filmes produzidos em Portugal desde os anos 20 são, como deves imaginar, de uma importância extrema para a compreensão do tempo em que foram feitos, são a memória viva dos acontecimentos que registam, das impressões que deixam, de um sentir das sociedades que neles são retratadas. Alguém que não compreenda isto não me merece consideração. Mas, de que modo é que esta divulgação e conservação deverá ser feita? Será que acreditas na bondade do mercado perante algo que é, manifestamente, pouco ou nada lucrativo? Todos os países que têm Cinematecas, incluindo os de modelo mais liberal, financiam estas instituições - é assim em Espanha, em França, e, pasme-se, Inglaterra (o British Film Institut depende do mecenato e de subsídios). Não faz sentido nenhum entregar o governo destes bens a privados porque, primeiro, ninguém se interessaria, e segundo, seria um risco, tendo em conta as leis do mercado, que visam o maior lucro com o menor custo possível. Nós pagamos a manutenção da Cinemateca porque ela faz parte do património cultural do país, ponto final. Quanto à crítica tantas vezes repetida de que deve ser quem consome os produtos culturais a pagar, devo dizer-te que, para se ir ver um filme à Cinemateca, paga-se entrada, assim como no Teatro subsidiado, nas Óperas subsidiadas (e não é pouco) ou nos museus. Aliás, os museus são um verdadeiro caso de estudo em Portugal, principalmente se comparado com a Inglaterra, onde se pode entrar sem pagar em muitos (financiados pelo Estado e por mecenas) ou mesmo com a França ou a Alemanha, onde, proporcionalmente, os preços são muito mais baixos. Portanto, "as classes médias elitistas e aculturadas" pagam a cultura do seu bolso, mas apenas isso não é suficiente para a cultura existir; e a alternativa é não existir de todo, o que penso não ser aquilo que desejas.
Já agora, de entre tudo aquilo de que gostas, música, cinema, livros, etc, tens a certeza de que, em algum ponto do percurso até chegar a ti, esse produto não foi patrocinado pelo Estado, seja através de subsídios à criação, bolsas académicas ou subsídios à produção? Não farás tu parte dessa horrorosa "classe média elitista e aculturada"?

(na imagem vê-se António Reis filmando Trás-os-Montes)

14/12/09

Álbuns 2000 #7


LCD Soundsystem - Sound of Silver (2007)

E pensar que há 15 anos dizia o pior que se possa pensar de toda a música electrónica; é verdade que os LCD não são propriamente uma banda electrónica - a estrutura das canções é pop-rock, e estão lá todos os instrumentos tradicionais do rock - guitarra, baixo, bateria. Mas o uso de sintetizadores resgatados aos anos 80, Daft Punk pelo meio (os mestres do electro-indie), e a influência distante dos avós Kraftwerk, faz deste projecto de James Murphy um dos mais, vá (será que uso a palavra?), trepidantes da última década. Quando ouço LCD Soundsystem penso em discotecas nova-iorquinas em finais dos anos 70, mas depois lembro-me que nessa época ou era-se disco, e era horrível, ou punk e pós-punk, e era-se hip. Curioso que os LCD não andem assim tão distantes dos ritmos dançantes do disco, e continuem a ser respeitados por quem dita o bom-gosto.
Exemplificando esta mistura, temos a música All My Friends, que começa com uma vaga evocação do piano de Keith Jarrett e termina em eufórica festa, celebração das saídas à noite com os amigos, um hino à inconsequência prática; não admira que os Franz Ferdinand tenham feito uma versão - a energia rock está toda lá.

(video aqui)

(versão dos Franz Ferdinand)

Noël Carroll, hoje na FCSH

Noël Carroll é Distinguished Professor de Filosofia no Graduate Center da City University of New York e um dos mais importantes filósofos mundiais no campo da arte e da estética, particularmente na área da filosofia do cinema.

(ver aqui)

13/12/09

Álbuns 2000 #8

Radiohead - Amnesiac (2001)

O segundo melhor álbum dos Radiohead nesta década é também a segunda parte de Kid A, menos experimental e mais próximo do formato tradicional de um conjunto de canções pop. O regresso aos singles com video é também exemplo desta reaproximação ao mainstream. Mas a paranóia moderna está toda lá, o experimentalismo também, com passagens pela electrónica (Morning Bell), pelo rock de guitarras bluesy (I Might be Wrong), e pela típica canção radioheadiana, de início calmo e final furioso (You and Whose Army?). Tem uma das melhores canções da banda, o single Knives Out - a guitarra cristalina vai construindo a música de acorde em acorde, e Thom Yorke limita-se a ir atrás, subindo e baixando de tom na linha quase desafinada que a sua voz orgulhosamente exibe. A mais importante banda dos últimos quinze anos (os Beatles da pós-modernidade pop) num ensaio quase perfeito.

(video aqui, de uma versão ao vivo, não está disponível o vídeo original)

11/12/09

Álbuns 2000 #9

MGMT - Oracular Spectacular (2008)

No ano em que Brooklyn se tornou o centro da música pop (Santogold e Vampire Weekend incluídos), a banda que criou o melhor álbum psicadélico desta década. Recorrendo mais a sintetizadores analógicos do que a guitarras, contaram com a ajuda do produtor dos Flaming Lips e antigo baixista e baterista dos Mercury Rev, Dave Friedman, para dar coesão a um punhado de canções com as letras mais estimulantes dos últimos anos. Um sonho juvenil de adolescentes a caminho da idade adulta, no qual cada canção é como uma imagem que recupera ilusões perdidas e desilusões perenes, o álbum é também um caleidoscópio de sons que tanto podem citar os referidos Mercury Rev como os abomináveis Bee Gees ou Michael Jackson, sem nunca perder a coerência. E, sobretudo, é um daqueles trabalhos que se vai sedimentando lentamente em nós - a cada audição descobre-se coisas novas, breves associações, ruídos de infância, uma referência a algo que julgávamos ter esquecido. Tenho a certeza de que vou ouvir estas músicas durante muito tempo, e mal posso esperar pelo próximo álbum. Como amostra, o grande primeiro single, um hino lúcido e irónico ao que é a vida das estrelas pop, Time to Pretend.

(video aqui)

Álbuns 2000 #10

M.I.A. - Kala (2007)

Os Tigres Tamil podem ter sido derrotados, mas M.I.A., dois anos antes, quase conquistou o mundo. Sem exagerar (mas exagero, quem sabe quem ela é?), o álbum Kala, entre a vanguarda musical londrina (grime, hip-hop) e o trash da música de Bollywood e um outro namoro a linguagens world (kuduro incluído), é uma montanha-russa de batidas que obriga a mexer o corpo, mesmo quem, como eu, tem uma vida mais sedentária do que devia. Do Sri Lanka para o mundo, a M.I.A. apenas devemos desculpar ter participado na banda-sonora de Quem Quer ser Bilionário (apesar do reconhecido bom gosto de Danny Boyle). Mas Kala é anterior a isso. E a denominação música de guerrilha nunca foi tão apropriada - a violência das letras contrasta com o ambiente geral de diversão que transparece do álbum. E é raro vermos alguém utilizar os samples de modo tão certeiro; exemplo disto é a fabulosa Paper Planes, os Clash a dar uma mãozinha e os Beastie Boys en passant, a apadrinhar a coisa. Brilhante e censurado, como deve ser.

(Video aqui)

Listas

Ah, a década que a música dos Pulp inventou, e já passou. Disco 2000, mas tal como chegámos ao presente sem que o presente se aproxime sequer do que era o futuro em Buck Rogers - e ainda bem -, passámos o presente e chegámos a uma conclusão: a década passada foi mais cool do que se pensava, a década em que o alternativo se tornou mainstream (Arcade Fire, The Strokes), a década em que a música pop pode ser sofisticada (Justin Timberlake, Kanye West), a década que concilia a mais popular javardice (futebol e Ená Pá 2000) com as vítimas da moda e dos restaurantes trendy, dos hambúrgueres gourmet e do gourmet popular, a década da continuação da crise perpétua, dos falhanços futebolísticos, da ripanço e do sacanço internético, a década em que praticamente deixei de comprar música sem a deixar de ouvir, a década que nada decidiu, como todas as décadas. Fiz as minhas listas, e vou-me lembrar do que deixei de fora, inevitavelmente.
E esta foi também a década em que comecei a blogar. O presente passou.

10/12/09

Um tornado lento

Helena Matos, num curto texto hoje no Público, ensaia um curioso exercício de auto-crítica, não sei se irónica ou não, depois de um longo texto no qual reafirma a sua descrença no aquecimento global e em tudo o que os perigosos ecologistas de esquerda fazem para salvar, vá lá, o planeta. O método é banal: falar do passado para descrever o presente, esquecendo-se de que os ciclos acontecem, é um facto, mas a cada regresso alguma coisa mudou. Certamente só alguém muito confiante no futuro - e portanto, possuindo dons proféticos que Gabriel Malagrida certamente não desdenharia ter - pode achar que a subida de alguns graus na temperatura média do planeta e a série de consequências que o acontecimento tem provocado é uma grande coincidência, a Natureza a seguir o curso normal das coisas. Sacanas dos cientistas, que no fundo querem é organizar lobbies anti-petrolíferas e pró-empresas que desenvolvem tecnologia para o aproveitamento de fontes de energia alternativas. Não sabemos que resultado pode surgir deste combate de profetas, mas temos a certeza de que a sensatez ficará a perder.
Até porque é o curto segundo texto que confirma o que é evidente já no primeiro: Helena Matos começa a falar sobre a nomeação de Maria João Seixas para directora da Cinemateca ironizando com a chusma de cinéfilos que saltou da toca a propósito deste assunto, completando o que diz ao afirmar que não frequenta a sala da Barata Salgueiro, e continua criticando a localização de um organismo (Arquivo Nacional das Imagens em Movimento) que, dependendo da Cinemateca, se encontra demasiado longe desta, em Bucelas. Nada mal para quem não visita o espaço, e para quem acha mal que tantos tenham uma opinião sobre a nomeação de Maria João Seixas. Eu, que passei muitas horas formando o meu gosto cinematográfico ali, apenas posso ter uma opinião sobre a opinião de Helena Matos - não é para isso que aqui estamos, escrevendo num blogue? E fico a matutar naquela ideia da direita matarruana no que toca a assuntos de cultura. Se não fosse o Pedro Mexia e outros a contradizer o preconceito...
E Maria João Seixas? Uma nomeação política, é certo; ligada ao PS, ocupou vários cargos sempre nomeada directa ou indirectamente por este partido, mas a verdade é que quase todas as nomeações para cargos públicos são o fruto de um sistema político que liga mais à cor do que ao mérito; Bénard da Costa também lá chegou apontado por Vasco Pulido Valente e acabou por realizar um trabalho exemplar na instituição. É esperar para ver, e ela parece ter crédito suficiente junto do meio para usufruir do benefício da dúvida.
Será que sou suficientemente cinéfilo para ter uma opinião sobre o assunto?

08/12/09

Não sei se já disse que gosto mais de Zurlini do que de Fellini

Tempo de balanços

Este ano vou fazer três listas: os melhores livros que não terminei; os melhores discos dos quais conheço apenas algumas músicas; e os melhores filmes com soneca incluída. Não sei se isto é uma promessa.
(E acaba a década, mais uma década, a década decisiva que acabou por nada decidir).

Avulsos


Há várias razões para acreditar que Luís Miguel Queirós é o melhor jornalista literário a escrever em jornais portugueses; a mais recente foi o texto que saiu há uns dias no P2 sobre Nabokov e o romance póstumo agora publicado, literatura em peças para montar, frases e parágrafos aos pedaços.
The Original of Laura é um conjunto de fragmentos que muito dificilmente se poderia chamar de romance, mas ainda assim é melhor do que se não houvesse nada; para o diabo com a vontade do escritor morto. Se respeitássemos os mortos não teríamos Kafka e Pessoa, e isso, mais do que à humanidade como um todo, iria deixar-me bastante aborrecido, isto se eu pudesse ter conhecimento de que tinha sido escrito algo que poderia fazer-me acreditar que a minha vida iria mudar com tal leitura. Falamos de hipóteses, claro; a mudança é uma questão de perspectiva, e parece que na realidade não existe - já repararam como Obama passou de Messias a traidor em menos de um ano ou o Benfica regrediu de "temível adversário" a uma equipa que qualquer um que não seja designado sucessor de Mourinho consegue ultrapassar se jogar com pelo menos três trincos (a cacofonia é propositada) e um guarda-redes em fase de hiper-ventilação vitaminada? Muda-se apenas para que se possa voltar à forma inicial - a frase truncada e retirada de uma obra literária mais citada dos últimos tempos, ou então eu ando a ler as coisas erradas.
Lamento dizer, mas ainda não comecei a ler 2666, que estava para ser escrito "&&&. Conheço várias vítimas de tijolos literários - qual a percentagem de pessoas que comprou a Ilíada, e a Odisseia e o D. Quixote, que realmente terá chegado ao fim da leitura? Mas quem poderá duvidar de que o uso dado a estes livros - elegante decoração das estantes Billy do quarto e da sala - concorre menos para a felicidade mundial do que efectivamente terem sido lidos? Como tal, não me atrevo. Já fui derrotado uma vez pelo Ulisses, duas pelo Proust e três pela Montanha Mágica - e confesso que, apesar do empolgamento sentido ao ler Moby Dick, prefiro de Melville o fabuloso Bartleby, mais do que herói literário, exemplo que deveria seguir com mais persistência.
Desse modo, e querendo preencher a minha quota parte de livros da Quetzal, a editora renascida das cinzas pela mão de Francisco José Viegas, peguei num livro da extinta editora Escritor - Ernestina, de Rentes de Carvalho (é claro que o livro foi agora reeditado pela Quetzal), e é difícil perceber como o público leitor português ainda não descobriu este escritor de estalo. O exílio leva ao esquecimento, uma lástima - ele é mais lido na Holanda do que por cá, mas o Lobo Antunes é mais lido por cá do que na Holanda e, como toda a gente sabe, os holandeses são muito mais cultos, educados e estudados do que nós - para bom entendedor...
Um relato autobiográfico que regressa a uma infância passada entre uma aldeia de Trás-os-Montes e o Porto, nas primeiras décadas do século passado - é este o resumo do livro, mas não mostra nada; o que vale a pena, em Rentes de Carvalho, é a cadência da frase, a riqueza do léxico, o vivo ritmo narrativo que nos transporta a um tempo irrecuperável.
Sabemos que nada dura para sempre - Nabokov não podia fazer nada com os papéis deixados para serem usados como peças de um puzzle (pelo menos o livro, editado pela Alfred Knopf, é um objecto fascinante, um achado em termos de grafismo) - e a glória é transitória, mas por vezes seria justo reconhecer a competência dos competentes em vez de se comprar (e comprar, e comprar) o produto da incompetência dos incompetentes. O ideal seria que o tempo trouxesse justiça ao escritor, e não à obra; como escreveu Woody Allen... ah, ah, não é desta que me apanham a citar alguém a trouxe-mouxe; o que ele terá escrito foi: "para o diabo com a posteridade da obra, eu queria era viver para sempre!". O que, convenhamos, poderá ser, objectivamente, entediante.