05/12/07

Eastern Promises

Não me interessa discutir até que ponto Eastern Promises se afasta do resto da obra de David Cronenberg. Não é uma questão, porque toda a obra anterior do canadiano é díspar entre si, apesar dos inevitáveis temas que se repetem.
Cronenberg afirma-o numa entrevista à revista Positif: o que lhe interessa é o corpo. O de Viggo Mortensen, marcado pelas tatuagens das prisões russas e os outros menos despidos mas igualmente marcantes: o recém-nascido, o corpo de Vincent Cassel, reprimindo o desejo em relação a Viggo, os corpos martirizados das prostitutas. Por isso, Cronenberg mostra a violência como um momento de excepção, um momento de ruptura na precariedade absoluta de um corpo. A lâmina na garganta, duas vezes, e a luta corpo-a-corpo na sauna, são singularidades que se inscrevem de modo tão decisivo na carne como as tatuagens que os criminosos ostentam. A violência de uma luta, a dança das lâminas, a coreografia tensa da ameaça - como nos quadros de Francis Bacon inspirados nas fotografias de lutadores de Edward Muybridge. Toda a violência imaginada sobre o corpo tem, por sua vez, uma pulsão erotizante; Bacon percebeu-o, Cronenberg não terá sido inocente ao sublinhar o contexto homoerótico da relação entre Nicolai (Mortensen) e Kirill (Cassel).
Mas a violência do filme não é verosímil. Pode ser realista, no sentido em que o realizador encena a realidade de forma convincente. Mas a violência não é ilustrativa, como o é num docudrama como o recente (e ainda não estreado em Portugal) Tropa de Elite, pretendendo representar uma realidade, o ambiente nas favelas no Rio de Janeiro, fazendo uma tangente ao real, recorrendo aos truques habituais: a câmara aos solavancos, o estilo jornalístico, a caução da verdade com o genérico inicial afirmando que o filme foi baseado numa história verdadeira.
Cronenberg não está interessado em histórias verdadeiras. O seu cinema é um cinema de ideias (sem ser programático). A violência não tem qualquer gratuitidade, pertence ao próprio esquema do filme. Os rituais de purificação das personagens permitem que o espectador perceba o impacto que a violência pode ter sobre o corpo. O realismo de Cronenberg é, portanto, da ordem da imaginação cinematográfica, da fábula; daí a artificialidade dos inserts, planos muito curtos, em close-up, da violência a ter lugar. Como em Eisenstein, a montagem serve para vincar no espectador a excepcionalidade da situação retratada. Michael Haneke, em Caché, recorre precisamente ao mesmo artifício. Em Eastern Promises, a morte do mafioso russo pelo adolescente curdo surge de forma imprevista; o golpe da navalha no pescoço é um golpe na consciência do espectador, transporta-o de imediato para território desconhecido. O choque é brutal, como acontece no filme de Haneke, na cena do suicídio do imigrante argelino: e quem vê é puxado sem remédio para dentro da cena. Ora, a realidade não é assim. Não há inserts no dia-a-dia (e Tropa de Elite não tem efeitos deste tipo). Filmes assim conseguem criar uma impressão de realidade necessariamente distante da realidade de onde partem.

[Sérgio Lavos]

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