30/03/06

Ironia

Franz Kafka é vítima do pior exemplo de interpretação errada que se pode fazer de uma obra; logo ele, que se desmanchava a rir quando lia os seus livros a amigos, logo ele. O desespero pode nascer da súbita compreensão da ironia disto tudo.

Light Marketing

Dizia-me uma amiga hoje que desconfia da bondade da providência cautelar interposta pela editora de Margarida Rebelo Pinto, afirmando que tudo não passa de um golpe publicitário de, espanto, Rebelo Pinto herself, necessitada como anda de vendas desde que a sua obra foi arrasada por João Pedro George no blogue Esplanar. Confesso que esta era uma ideia que nem me tinha passado pela cabeça. Porém, faz algum sentido. Como sugeria o outro, prefiro que digam mal de mim a não falarem de todo. Repare-se, um dos pretextos para a acção judicial é precisamente o hipotético efeito nefasto que a publicação dos textos de JPG teve nas vendas da sua última obra, "Pessoas Como Nós". Confirma-se o móbil da coisa. O efeito pretendido, depois de capas em jornais de alta circulação e baixo nível, irá ser, por certo, ser atingido. O próximo romance de Margarida começa a ser vendido na próxima semana e, não sei por que artes ou partidas do destino o livro do crítico João Pedro George supostamente também irá começar a ser distribuído na próxima semana. Não querendo ceder ao tema da conspiração - que está na moda - não terão os spin doctors das duas editoras combinado esta fulminante acção conjunta? Não há coincidências?

29/03/06

A Natureza do Mal

A velha distinção entre o escritor que escreve fora da vida e o escritor que vive para escrever, que escreve a partir da experiência limite a que se convencionou chamar vida, por vezes ainda faz sentido. Talvez faça cada vez menos, as mutações que vão tornando a existência uma coisa quase híbrida, alargando as distâncias que se interpôem entre as pessoas, retiraram valor aos acontecimentos que implicam um contacto directo com o mundo; não queria parecer um pessimista, mas que sentido fará, nos dias de hoje, viajar, viver à margem, "sentir tudo de todas as maneiras"? O escritor maldito que se perde nos meandros do apertado rio a que tem direito na sua navegação à bolina é coisa do passado. Quem se lembra - e inveja - de Rimbaud, de Michaux, de Conrad, de Hemingway? A viagem mudou a sua natureza, os espaços tornaram-se mentais, o escritor começou a perder-se dentro de si próprio. Não é de agora, um longo caminho se percorreu desde Pessoa e Kafka, exemplos perfeitos desta arte do desvanecimento na sombra. Mas não era disto que pretendia falar. Os antigos, os que viviam. E depois contavam. Um exemplo de alguém que, assim me ilude, me parece próximo desta linhagem em extinção. Não sei quem ele é, pessoalmente, apenas o posso julgar pelos textos que leio. Um certo Luís que escreve no blogue A Natureza do Mal. Que iniciou o blogue quando estava preso - porquê? não interessa - e que agora escreve de forma viva sobre a margem de onde ele acabou de se retirar, a mais perigosa de todas. Dois excelentes textos. O gosto que a vida tem pode ser este.

João Pedro George e a providência acautelada

Quem não venderia a alma ao diabo apenas para ter a carantonha estampada na capa de um jornal de grande circulação? Por exemplo, o 24 horas. Por exemplo, hoje. Ele está lá, no canto inferior direito, menorizado pela imagem maior da escritora pop (nas suas próprias palavras), mas isto é apenas um pormenor. A indignação varre o país, imagino, hoje no comboio uma dona-de-casa comentava mesmo a falta de decência do malvado crítico - essa espécie daninha - que pretende arruinar a carreira da escritora que pôs meio país a ler. Digo, varre o país a revolta das classes culturalmente desfavorecidas que julgavam que era desta que teriam acesso aos escritos determinantes de uma figura da auspiciosa cena crítica nacional, e não é que os sacaninhas da Oficina do Livro chegam e avançam como uma previdência, ou providência, ou lá o que lhe chamam, e zás, corremos o risco de passar ao lado desta oportunidade de ouro, não é justo e direi mesmo aqui d'el rei, ou melhor clamemos pelos ideais da revolução, tão martirizados que eles são, e estamos pr'aí a trinta dias do 25 de Abril, ah, pois é.
Vendem mais jornais, com esta história? Duvido. Vender-se-ão mais livros, depois da poeira se espalhar em redor? Com toda a certeza. A Margarida e o João Pedro aposto que vão esfregar as mãos de contentamento. O que se aproveita, afinal? A qualidade (ou a falta dela) de Margarida já foi há muito tempo provada, agora gostava de saber o que move o crítico? O mérito do seu trabalho académico torna-se nulo se ele insistir na demanda contra a não-literatura. Deixem-nos estar, as Margaridas, os Migueis, os José Rodrigues deste mundo. Há espaço para tudo. Não mexa na lama, pois corre o sério risco de se sujar. Quem se lembra da literatura de cordel de épocas passadas? Valerá a pena a trabalheira que teve? A que custo, com que ganhos?

P.S.: Excelente manobra de marketing do novel editor valter hugo mãe.)
P.S.2: Passatempo interessante: seguir os links da blogosfera sobre o tema, e descobrir quem é amigo de quem nesta história. A partir daqui, por exemplo. Com passagem obrigatória por aqui. E aqui. E aqui. Revelador.

O caso Bez

Ou o contributo das maracas e do meneio de ancas para a história da música pop.

28/03/06

Os jornalistas que temos

António Esteves Martins, depois do jogo, a propósito de alguns dos manifestantes que hoje se passearam por Paris: "Uns vândalos, uns vândalos! Africanos e norte-africanos principalmente." Amigo, vamos lá ser frontais, sem medo, diga o que está realmente a pensar. Eram pretos, pretos e árabes. O que estava em causa na contestação dos estudantes? A lei de Villepin ou a integridade física do jornalista e do seu operador de câmara? Afinal, quem faz as notícias?

Benfica

O Benfica foi escandalosamente roubado no jogo contra o Barcelona. Passa-se isto a um mês das comemorações do 25 de Abril.

27/03/06

Do umbiguismo (3)

Note to self: a ironia disto é não poder assistir de cadeira à implosão de tudo. Demasiada matéria orgânica pairando em redor.

Do umbiguismo (2)

Note to self: lembrar-me das folhas que caem do estendal. Páginas ao sol e ao vento.

Do umbiguismo

Note to self: não esquecer de tirar a cadeira do relento.

Lamento

Tenho saudades do Groucho.

O gosto crítico

Saberá o crítico o labirinto em que se mete ao elevar livro x ou autor y ao pedestal dos grandes duma época? Pergunto, ignorarão eles o ermo desértico a que apenas os génios puderam aceder? O absoluto desconhecimento das engrenagens do tempo é condição fundamental para a produção de uma obra que valide o seu autor, uma obra que grite desde o passado a sua importância para o mundo. Ele sabe, o crítico sabe. Mas não quer saber.

Gosto

Já com o gosto se passa outro fenómeno. Quem não tenta impôr o gosto ao que se segue, acaba por ficar sem argumentos na defesa do seu próprio gosto. A opinião enche de ar um pneu que depressa rebenta, o gosto esforça-se por soprar contra si próprio. Ninguém quer saber do gosto dos outros, a não ser quando o gosto dos outros é mediático. Uma estatística interessante: a quantidade de livros aconselhados por Barbaras, Marcelos e quejandos que ficam esquecidos, a ganhar pó e a fazer tijolo, nas prateleiras das estantes dos bibelôs lá de casa?

Opinião

Os que se queixam do excesso de opinião que por aí grassa nem se dão ao trabalho de notar que, ao emitir esta opinião, estão eles próprios a engrossar o caudal opinativo. Opinião, opinião, opinião. Tanto de tão pouco, com tão parca substância, que se torna inevitável deixarmos de entender o que é a verdade. Uma opinião. Alguém duvida?

24/03/06

The Queen Is Dead

Isto foi assim, uma história como outras, invariáveis outras, os quatro encontram-se e decidem formar uma banda, viviam-se os anos de ferro de Thatcher, a idade do reencontro no tempo do desencanto, e já se sabe, Manchester é uma cidade cinzenta, negra de tão cinzenta, imagino assim que os quatro se juntam e se divertem a tocar, e Stephen Patrick Morrissey, descendente directo, como sabemos, de Oscar Wilde, julga que o palco a que Wilde não teve direito estará definitivamente ao seu alcance. Nem tudo é perfeito. A persona que se passeia pela cidade exibindo em doses iguais tristeza e cinismo estará mais protegida do que os seus companheiros, pensam, mas não, talvez devaneie, amigos, afirmou o outro génio que calhou em sorte a Mike Joyce e Andy Rourke - em favor dos dois, elogie-se aqui a competência acima da média no acompanhamento dos dois fora-da-lei humana residentes - e dizia que Marr continua a reafirmar a amizade que unia a banda durante os anos de percurso em conjunto, Morrissey durante muito tempo renegou o legado, mas, enfim, alguém achará que a carreira dele a solo alguma vez se aproximou sequer do brilho dos Smiths? Dizia que era assim, por exemplo podia acontecer, numa noite Marr à guitarra compor duas ou três músicas, entregar a cassete a Morrissey e no dia seguinte este ter prontas as letras, repito, dois dias, não vale a pena insistir no espanto, corro o risco de me repetir. Quem ache que o êxito depende dos tais 99% de transpiração depressa devia ter uma conversinha com os seus deuses. Isto é, alguém duvidará da desprendimento de Marr e Morrissey escrevendo para as estrelas? Não o sabiam, no máximo desconfiavam, um bom músico é, antes de mais, um bom ouvinte. Wilde intuía qualquer coisa, mas a dúvida nunca se dissipou completamente, talvez tivesse estado muito perto (Cemetry Gates é uma daquelas músicas... vibra tão fundo que quase se aproxima do silêncio puro) quando finalmente morreu de despeito em Paris, a fama de que se vira privado de um dia para o outro era um sinal para o futuro, depois do seu desaparecimento. Kafka, e este nem sei porque é chamado à contenda, passou pela vida achando que o fracasso era uma segunda pele que teria de carregar até morrer, não poderia saber o que veio depois. Mas de que falo? Dos criadores, quando deveria falar da obra? Pois se é apenas ela que sobrevive, apenas ela que pode aspirar à ilusão de eternidade? (The Boy With the Thorn..., guitarra tão clara desbravando o caminho de sombra que as palavras de Morrissey semeam.) Talvez quem não tenha passado por aquela época não devesse ter o direito de se emocionar de forma tão patética como eu o faço, o choradinho da pop é chão que deu uvas, mas o que o tempo tem instigado na minha coluna vertebral é a clara noção de belo nas sua múltiplas manifestações. Os amigos alguns anos depois zangaram-se. Como deve ser, quando se trata de música pop. A brevidade da beleza é o seu mais decisivo atributo. Para o resto já temos aí a vida.

(Vale a pena escrever: os mais perfeitos 37 minutos da música pop.)

22/03/06

Perfect pop song

Talvez amanhã ouça "The Queen is Dead" ou talvez não. Talvez amanhã chova ou talvez não. Talvez decida escrever sobre a experiência, mas quem se interessa? No Quase Famosos, leio que Johnny Marr, num artigo escrito a propósito dos vinte anos desde o lançamento do álbum, disse que "There is a light that never goes out", "Frankly, Mr. Shankly" e "I know it's over" foram compostas numa noite. Assim, uma noite apenas. Há qualquer coisa de monstruoso numa afirmação destas. A perfeita geometria de uma canção pop dura apenas três (ou quatro) minutos. O mesmo tempo para a sua criação. Há aqui alguém a tentar passar uma mensagem, mas eu não vou dizer quem. Não o evocarei em vão.

Tempo

Posso apontar a diferença entre a boa e a má literatura se transcrever aqui dois parágrafos apenas de dois livros que entre ontem e hoje comecei a ler. Não sei se o farei, o correr do texto assim o ditará. Enquanto não chego lá, preciso de escrever sobre o primeiro livro que tentei, "Dias Exemplares", de Michael Cunningham. Pedantismo, excesso de coloquialismo, falta de nervo, uso e abuso do lugar-comum, personagens inverosímeis. Aguentei até à página, não sei, vinte, talvez. Hoje, escolhendo ao acaso o que tirar do canto para onde cinquenta por cento dos livros que compro são atirados, vejo um livro que não é meu. É isto. "Uma Abelha na Chuva", de Carlos de Oliveira, autor de uma obra para mim desconhecida, apesar das múltiplas referências. No comboio, por entre "Codex 632" e Nicholas Sparks avulsos, uma pequena maravilha. Desde a primeira página, ouso mesmo escrever primeiro parágrafo, um assombro. Um bom livro é aquele que nos prende pelo estômago, e tanto o pode fazer recorrendo ao pior da alma humana como ao melhor, e quando penso nisto ocorre-me a palavra inveja. Os cultores da língua conseguem curar os males do espírito mas instigam em nós o pior dos sentimentos, mesmo quando este é confundido com admiração. Emoção mais baixa não há. Estenda-se esta tese a toda a arte, e obteremos assim a matéria de que somos feitos. Raiva por não pintar como Tintoretto, ódio de morte ao labor minucioso de Bach, ira de ir às lágrimas visionando a genial dança da câmara de Orson Welles em "A Sede do Mal". Se me posso gabar de alguma coisa com o avançar da idade é da capacidade de reconhecer a arte menor ao primeiro olhar. Cunningham, de quem já li o pastiche de cordel "As Horas", cheira a oportunismo à distância. Apanhado, amigo. Pena que esta ilusão de sabedoria ainda não me permita evitar o contacto inicial com a baixa literatura. Se ao olhar, ou mesmo aproximar, se acendesse qualquer luzinha que avisasse do perigo de contágio a vida seria mais fácil - e mais longa. Já li muito mau livro na minha vida, e pude retirar algum proveito dessas leituras, nem que seja pelo facto de pertencerem ao meu património pessoal, ao meu breve pedaço de memória. Mas se pensar no tempo ocupado por estes desperdícios e no que poderia ter lido no seu lugar, ficarei deprimido. Não vale a pena. Resultado final, não me darei ao trabalho de explicar a razão da escolha, o descanso imediato que dei à obra de Cunningham fala por si próprio. Paz à sua alma.

20/03/06

A Condessa Russa

O melhor filme em meses, fazendo esquecer a sucessão de desilusões oscarizáveis a que assisti nos últimos tempos. Elegância e romantismo na evocação de um tempo e espaço fascinantes, Shangai pouco antes da invasão japonesa, em 1937. Juntando a isto um argumento de Kazuo Ishiguro, o escritor da discrição e da subtileza emocional, e temos o melhor filme de James Ivory desde "Os Despojos do Dia". A sequência que evoca os primórdios do cinema, quando a filha da condessa espreita por um cinematógrafo rudimentar, é comovente.

José Manuel Fernandes e a verdade

Mais que a coerência de José Manuel Fernandes na defesa da intervenção americana no Iraque, surpreende-me que os mesmos de sempre esperassem uma reviravolta à posteriori de uma das principais vozes do dono em Portugal. Nem ele, nem Pacheco Pereira, ninguém irá mudar de opinião e admiti-lo, e por uma razão muito simples: escrúpulos. A falta deles. A utilização de uma estratégia de intoxicação da opinião pública, com o objectivo primeiro de defesa de uma decisão que foi tomada muito antes daquilo que foi anunciado. É claro que afirmar isto publicamente é meio caminho andado para a descredibilização de quem o afirma, mas a verdade é esta: durante o período pré-invasão, poucos duvidavam da palavra dos inspectores Hans Blix e Baradei, e como eles foram insistentes na tese da falta de vestígios que provassem a existência de armas de destruição maciça no Iraque. No entanto, Bush e os seus conselheiros decidiram enveredar por essa linha de argumentação. A movimentação a que assistimos nos meses que se seguiram foi uma exibição digna do tempo em que vivemos, quando as armas a que as ditaduras recorriam, a censura, a manipulação da memória, a ausência de liberdade de imprensa e de opinião, foram eficazmente substituídas pelas armas dos que acedem ao poder pela via democrática, esquecendo nessa ascensão os valores que fundaram os estados modernos; métodos como a desinformação, a manipulação da informação, o controle dos media por grupos económicos favoráveis aos governantes, e as inevitáveis consequências que daqui resultam: uma ilusória liberdade de imprensa, um excesso de opinião que substitui a informação pura, jornais e televisões que tendem para a subjectividade no tratamento das notícias. Exemplo, dos dois lados: a Al-Jazeera e a Fox News. A outro nível, um exemplo mais do tratamento oferecido aos factos incómodos das actualidade: o permanente desconversar da direita quando se fala de coisas como direitos humanos, direitos das minorias ou o fosso crescente entre países ricos e países pobres, disfarçando qualquer tentativa de discussão destes problemas através do uso e abuso da acusação de politicamente correcto, seja lá o que isso for.
Se nós sabíamos que a razão para a invasão era inexistente, quem defendeu a operação também sabia, e contudo continuraram a avisar para um perigo potencial, e agora voltam-no a afirmar, sem pudor, como José Manuel Fernandes hoje faz, mostrando no mínimo que viu o filme de Spielberg, "Relatório Minoritário", em que se fala de crimes que ainda não aconteceram. Lamento, mas ainda não conseguimos adivinhar o futuro. Mas a doutrina de guerra preventiva é isto mesmo, actuar antes do facto acontecer, e se ela não se assemelha a tirania, não sei a que se possa assemelhar. Depois, defende-se o inconcebível apesar de... esquecendo os milhares de mortos, o estado de guerra civil iminente, os abusos das forças ocupantes, o vampirismo dos contratos efectuados com companhias com provadas ligações aos instigadores da invasão para a reconstrução do país e exploração dos poços de petróleo, etc., etc., etc. Mas a mim não me surpreende a posição de José Manuel Fernandes. Quando, sabendo o que sabia - e, principalmente, o que não sabia - defendeu um erro colossal, colocou-se do outro lado da barricada. Exactamente o sítio onde eu nunca me hei-de colocar.

19/03/06

Lição de bola

Entre o real
e o Real (moeda brasileira ou equipa-galáctica)
se abre um abismo insolúvel:
o primeiro duvido que exista,
o segundo mais verdadeiro é difícil.
Escrevendo aqui,
real, Real, Real, cruzeiro
e espelho, farei destas palavras
poesia?

(. .)

[Sérgio Lavos]

18/03/06

Política de autores

A instituição "literatura" é um dos mais pesados mastodontes portugueses, entretendo-se a converter autores medíocres na revelação do momento, a premiar "jovens escritores" que escrevem como velhos - e isto não é um elogio - a cultivar um cânone que premeia não a qualidade mas sim a quantidade de espaços onde o escritor aparece, sejam jornais, conferências, televisões, comendas presidenciais, etc. Ah, e os amigos, fundamental peça do puzzle. Aqui há uns tempos, levantou-se um ventozito na blogolândia a propósito deste assunto, oportunidade única para assistir de balcão à exibição de alguns egos inchados, misérias várias, cristas enfunadas. Não interessa, cada um sabe aquilo que tem para exibir ou esconder. Pena é que alguns bons escribas avancem discretos na corrente, como é o caso do emigrado J. Rentes de Carvalho, que agora tenho a oportunidade de acompanhar no blogue mantido pelo antigo director da revista Periférica, Rui Ângelo Araújo. Não conhecia, confesso, a escrita de Rentes de Carvalho, e talvez o facto tenha a ver com o quase anonimato da editora onde publica, a Escritor, casa que se pode gabar de prosseguir uma actividade editorial há décadas, contando com o esforço de, julgo, Serafim Ferreira, também ele escritor. Numa editora com outra projecção mediática, a voz de Rentes de Carvalho não passaria despercebida. Mas o ruído que se produz em torno da "literatura" enubla o que é a sua verdadeira essência. Um exemplo, para desfazer as dúvidas:

"Nascido em comunhão com a terra, os meus conhecimentos da natureza são práticos. Diferencio um carvalho dum castanheiro, um macho dum cavalo; sei que a rama da batata não cresce alta como a do tomate; que o voo da pomba é silencioso e o da perdiz barulhento. Mas de vez em quando tenho inveja dos que sabem o nome e os detalhes das plantas, das flores, das árvores; dos que distinguem pelo pio ou pela pena a espécie dos pássaros.
O meu receio, porém, é de que, pelo menos nesse particular, a um aumento do saber corresponda uma diminuição do sentimento. Eu não sei se se continua a olhar com alegria ingénua para a giesta em flor quando se lhe chama Genista lydia, se lhe conhece a genealogia e se estudou a composição química do solo em que ela melhor se desenvolve."


[Sérgio Lavos]

17/03/06

Mr. Hide

A clique de Cavaco parece que afinal pode provocar alguma comichão, a julgar pela crónica de Vasco Pulido Valente, hoje no Público. Não sei se houve alguém que tivesse caído na história do candidato de esquerda, mas a composição da equipa do presidente prova até que ponto a candura de Cavaco foi estudada ao milímetro. Haverá quem não preveja a força de bloqueio que se prefigura para os próximos tempos? Sabemos como a sintonia de Sócrates e Cavaco se limita às questões económicas. O primeiro calar-se-á de bom-grado nas questões sociais (aborto, direitos das minorias, eutanásia, direito dos trabalhadores - e o uso do jargão sindicalista não é inocente), se o segundo não levantar muitas ondas às propostas económicas que possam surgir nos próximos tempos. Ah, a perfeição deste monstro de duas cabeças é desarmante. Tenham medo, tenham muito medo.

[Sérgio Lavos]

Pleonasmo

E ainda temos de ouvir o "She Bangs the Drums", o "Elephant Stone" e claro, o "Fool's Gold". Será suficiente?

[Sérgio Lavos]

I wanna be adored

Há quem passe uma vida inteira tentando perceber a razão do esquecimento de Deus, matutando no génio a que não consegue aceder, aplicando fervorosamente as regras a que são sujeitos os outros mortais, aqueles onde não habita já a cinza da centelha original. Os esforçados, os laboriosos, os funcionários aplicados nas suas tarefas corriqueiras sonhando obter algum dia o reconhecimento dos que com eles suportam o fardo da injustiça divina. E depois, há os outros. Os que ostentam o génio que um bastardo qualquer decidiu distribuir de forma aleatória, esquecendo a maioria invejosa e frustrada que apenas existe como carne para canhão, massa de indivíduos banais que serve como balanço dos extraordinários, ou simplesmente como turba adoradora que se limita a assinalar o génio dos escolhidos. E estes, quase sempre, estão a leste de tudo, ignoram olimpicamente a genialidade e passam pela vida naquele limite perigoso entre razão e loucura, a fronteira entre a iluminação e a alienação. E depois, há os outros. Os que, além de terem caído nas boas-graças da Providência Divina, ainda gozam com o resto de nós, gritando ao mundo a puta da injustiça de que fomos alvo recorrendo aquilo a que o comum mortal chama arrogância mas a que se deveria chamar simplesmente de assentimento, um reconhecimento do fardo a que o génio está sujeito. E enquanto escrevo isto, é um acaso que esteja a ouvir os Stone Roses, incluindo "I wanna be adored", perfeita geometria musical onde tudo parece ter sido forjado de maneira a imitar um qualquer arquétipo inacessível, com a ressalva da cópia ser ainda mais perfeita do que o original. Aplicando uma expressão prosaica a esta canção, tudo parece existir no espaço e tempo exactos. Aquele início com uma reverberação sónica em crescendo, o baixo de Mani a entrar, a primeira guitarra, a segunda, como água assomando, a bateria de Reni primeiro discreta e reassumindo um protagonismo quando a guitarra de John Squire o decide acompanhar, até que entra a voz de Ian Brown, o ritmo muda, recua, acelera, varia, o baixo contínuo com a bateria saltando de variação em variação, o refrão, guitarras em uníssono, solo, Ian Brown calado - um achado, o refrão ser apenas instrumental - o recuo da vaga, o regresso aos tons mais baixos, a repetição de Brown "I wanna be adored" até que o solo de Squire volta e de repente pára. Tudo no sítio. É isto.

[Sérgio Lavos]

15/03/06

Late night movies (2)

Imagem da obra-prima esquartejada de Orson Welles, O Quarto Mandamento. Nem quero pensar como seria o filme se lhe fossem restituídos os sessenta minutos de fita destruídos pelo produtor. Como foi possível, será a pergunta que se impõe?

Portas e Cavaco

Não queria armar-me em profeta descamisado do subúrbio, mas não me parece que a coincidência da subida ao trono de Cavaco e o redesembainhar da espada do alegre moribundo Paulo Portas seja passível do esquecimento generalizado do comité central do comentariado nacional. Ele há amigos, ele há os ex-patrões, eu sei, mas não se devia brincar com certos sinais que vão acontecendo, e eu já vi esta história. Eu, que lia o Independente com um fervor quase pueril quando ainda não sabia que ser contra o poder estabelecido não era necessariamente ser anarquista (admito, ingenuidade burra), mas que em minha defesa afirmo que aquilo de que eu gostava mesmo no jornal era das crónicas do Miguel Esteves Cardoso, digo agora que sei o que espera o país - ainda que este se esteja marimbando - nos próximos tempos: o regresso do paladino da direita ao sítio onde ele melhor se sente, e não estou a falar, evidente, das feiras e mercados nacionais. A cadeira da oposição. Vasco Pulido Valente, de entre as opiniões que eu li, foi o único que intuiu isso, mas os laços - directos ou indirectos - que o unem a Portas não lhe permitiram descarregar a tradicional bílis sobre o homem. Pacheco Pereira afiou a pena, contas antigas por cobrar (Santana Lopes, lembram-se?). De resto, o deserto. A teia de influências mexe-se com o movimento provocado pelas patas do dono ao regressar. O que se espera? A curto prazo, a queda do acidental Ribeiro e Castro e a ascensão do próprio ou de um qualquer delfim que se preste ao serviço sujo. Ou não. Quem sabe a que partido e a que políticos quererá Paulo Portas fazer oposição? Alguém cuja ambição pode tomar, numa má manhã, proporções desmedidas, é disso que falamos. O poder é coisa passageira, a glória dura um pouco mais. Paulo Portas saiu do governo de Santana sem honra e muito menos glória, mas ainda assim, num país onde o político pode ser o pior crápula, por cima. Era uma questão de tempo, dizemos. Cavaco que se cuide. O seu PSD, também. A treta do projecto ideológico de direita é areia de atirar para os olhos, anos e anos de aprendizagem em jornais dotaram-no das armas que mais se adequam ao combate. A pergunta é: ainda terá crédito?

[Sérgio Lavos]

11/03/06

Speaker's Corner

Ontem, zappando quase insone e debatendo-me com uma digestão difícil e a doença passageira do meu filho, deparei-me com um programa na RTP-N, "Choque Ideológico", onde se mostravam Ivan Nunes e Helena Matos, debitando os discursos formatados de uma certa esquerda e de uma certa direita, tudo muito ameno, tudo muito controlado, sem grandes ondas. Apercebi-me depois que são ambos bloggers. O primeiro mantém o interessante A Praia, a segunda é uma recém-chegada ao ninho de extremistas ditos liberais, o blogue Blasfémias. Esta progressiva promiscuidade entre blogues e media tradicionais limita-se a provar uma coisa: quem domina a opinião em Portugal, com a emergência da blogosfera ganhou um poleiro mais. Diversidade, dizem? Vontade de poder, antes escrevemos. O salto é curto, e depressa nos habituamos a ler uns e outros nos sítios do costume. A democracia é isto. Apenas Pacheco Pereira paira acima de tudo, manejando com diligente oportunismo os cordelinhos dos diversos palanques controlados. A suas leis da blogosfera são paradigma daquilo que afirmo. Semelhante desfaçatez faria qualquer outro corar de vergonha. Mas enfim, nem vale a pena a preocupação. Voltando ao mundo real...

[Sérgio Lavos]

Anúncio

Há um livro que já falou disto em tempos: primeiro a posse de Cavaco, depois o crescimento quase negativo da economia portuguesa, finalmente a cada vez mais certa ameça da gripe galinácea. Quatro pragas mais e teremos a certeza.

O Espectro

Vasco Pulido Valente e Constança Cunha e Sá fizeram a coisa mais inteligente que podiam ter feito: acabaram com o blogue, deste modo regressando a um pedestal alto demais para ser atingido pelo esterco lançado por quem está muitos degraus abaixo na pirâmide mediática. A desculpa da falta de tempo era desnecessária, o pessoal compreende os excessos aristocráticos dos burgueses desapossados.

[Sérgio Lavos]

09/03/06

Uma solução

Entre blogue e uma bela sesta, eu sei bem o que escolheria.

[Sérgio Lavos]

Da máquina

Eu sei que, a quem falta o génio dos grandes, apenas resta esta adulteração do acto de criar: horários, disciplina, transformar a arte num emprego. Marx tem um cantinho do paraíso comunista reservado para os derrotados da arte. Os funcionários do belo. A mecânica fluida da sociedade acomoda todos os excessos.

[Sérgio Lavos]

Método

Entre Albert Cossery, que se obrigava (obriga?) a não escrever mais de duas páginas por dia e o escritor funcionário que se senta à mesma hora todos os dias parece que se interpõe uma vertiginosa distância. Erro decisivo dos míopes. É preciso rigor na preguiça, método na procrastinação. Falar aqui de Cossery não foi uma displicência.

[Sérgio Lavos]

Da culpa

Se me esforçar o suficiente, ainda consigo atribuir ao acto de escrever toda a culpa que um bom prazer sempre traz. Transferência edipiana da ordem do discurso.

[Sergio Lavos]

Superação

A chave da alma humana.

07/03/06

Tuga

Se há defeito que não estimo em mim é a tendência para a portugalidade, a irreprimível inclinação para o espírito tuga que me impele a ver em todo o político um espelho de mim próprio, às vezes deprimido, às vezes alcoolicamente eufórico, quase sempre ladrão e com uma preocupante fraqueza no que à verdade diz respeito. Não é de agora, e nem preciso de pedir a ajuda do ansiolítico-mor da praça dos comentadores nacionais para referir os escritores de oitocentos que passavam o seu tempo a vergastar costumes de forma desprendida e plena de witt, Eça à cabeça, pois claro. O que me falta, como à maioria dos portugueses, é estilo. Sou azedo, quase sempre, e não suporto a arrogância de quem me toma por semelhante dos milhões de basbaques que desbaratam a educação que o estado lhes ofereceu e a inteligência que Deus lhes deu babando para cima de jornais desportivos ou novelas da TVI, conforme o género, de quando em quando quem sabe treslendo uns tomos daqueles de que as vedetas falam no ecrã, o ubíquo leitor Marcelo à cabeça. E, lá está, quem erradamente presume que o meu entedimento é, por natureza, moldado pelo património genético de uma nação em desespero de causa, não me merece o mínimo respeito. Pense-se em Sócrates, por exemplo. Rabiado pela excelência de um palácio dos longínquos mares do norte, mugindo do lado de fora para a multidão que o segue cá dentro, e, maravilha das maravilhas, descobrindo a dinamite que irá rebentar de vez com o país. Se provinciano não fosse um termo de tão fraca linhagem, poderíamos ficar por aqui, mas aquilo que me ocorre dizer é apenas isto: idiota de frágeis genes. E eu, imbecil, que o aguento, e aguento a desfaçatez de quem acha que, imitando os outros que resplandecem, algum dia alcançaremos o mirífico fim do pelotão de que nos afastamos tão rápido como uma Clara Ferreira Alves à vista de CCS. Paciência é coisa que me falta. A grande originalidade portuga é o umbigo que teimamos em massacrar com o dedo enquanto invejamos a velocidade com que os outros se nos adiantam. Exportêmo-la.

05/03/06

Por um punhado de óscares

A festa na aldeia de Hollywood terá lugar hoje à noite, e apetece-me falar de cinema. A festa em Hollywood é hoje à noite e, uma vez mais, não vi mais de metade dos candidatos ao óscar. Não irei assistir à cerimónia pela TVI por duas razões, uma verdadeira e a outra pura invenção: arrepia-me a perspectiva de ver Jon Stewart com um comentador português papagueando por cima das suas tiradas, e amanhã, como qualquer bom suburbano, levanto-me cedo. Houve um tempo em que podia atravessar a noite colado ao televisor, mas nem nessa altura o fiz mais do que duas ou três vezes. Se há coisa de que não abdico é o tempo que passo a dormir. Vou perder alguma coisa importante? Nem se coloca a questão. O que posso ver depois, no compacto do dia seguinte, compensa eventuais perdas. Não ver Jon Stewart em directo, por exemplo (e repito-me). O filme sobre pastores gays irá ganhar? Não me pronuncio. Não vi. O que me suscita alguma preocupação é a insistência da imprensa no epíteto de "filme de cowboys gay" colado à obra. Annie Proulx já explicou numa entrevista, eles apascentam ovelhas. Não vacas. Mas esta moderna invenção, o maravilhoso marketing, dispensa estes pormenores. Há quem queira vender sabonetes, presidentes, outros guerras sob falsos pretextos, e outros ainda querem convencer meio mundo de que o filme é transgressor. Repare-se, a transgressão é vendida bem enfeitada com o slogan da história de amor intemporal. A estratégia não é assim tão discreta. Agrada-se num passo os críticos e contribui-se noutro para o hype, chamando às salas público que de outro modo fugiria a sete pés do filme "gay". A marginalidade entra na corrente de modo imparável. (Os 56 milhões de espectadores provam-no.) Seja como for, Ang Lee é um cineasta estimulante - o filme "A Tempestade de Gelo" foi marcante - e espero ver a fita. Mas o resto pouco tem a ver com cinema. Os filmes que conheço, "Munique" e "Capote" são dois excelentes exemplos de obras oscarizáveis. Ambos esforçados, ambos muito longe do que se pode considerar uma obra-prima. Para acabar de vez com os óscares: em 1958, ano de "A Sede do Mal", "Vertigo" e "Quanto Mais Quente Melhor", três obras que obrigatoriamente farão parte de qualquer lista dos melhores filmes de sempre, ganhou o musical "Gigi", com um recorde de 11 estatuetas. É preciso dizer mais?

04/03/06

mAMA

Pode-se dizer que dois tipos de pessoas podem escrever sobre futebol: os fanáticos, que raramente conseguem mostrar discernimento, e os críticos que, para além do desconhecimento total daquilo que falam, são desprovidos de qualquer sentido de ironia. A minha dificuldade é esta: não consigo encontrar o tom certo para escrever sobre uma coisa tão instintiva como o jogo da bola. O defeito é inultrapassável, sou apenas um adepto que inveja os dotes de escritores como Javier Marias ou Ruy Castro, ou ainda esse fenómeno do mundo futebolístico que é Jorge Valdano: de futebolista médio com a sorte extrema de ter calhado jogar na mesma selecção de Maradona (com maiúscula) a dirigente falhado do clube mais desinteressante do mundo (o Real Madrid das estrelas oclusas e mimadas), a lírico cronista perdido numa selva de brutos sensíveis. Nem vou referir aqui o nosso maradona, injustiçado fanático e cronista que, neste momento, é alvo de uma campanha sem precedentes na blogosfera, a mAMA. Há causas que valem a pena. maradona no Mundial!

Late night movies

Janet Leigh em A Sede do Mal, de Orson Welles

O spleen dos subúrbios

Circle around the park, joining hands in silence
Watch the evil black the sky
The storm has ripped the shelter of illusion from our brow
This power is no mystery to us now
Leave your spirit genocide, the cancer you won't remove
We cast our funeral rose inside and bury the need to prove
Our mutilation is to gain from the system
Turn your head away from the screen, oh people
It will tell you nothing more
don't suck the milk of flaccid Bill K. Public's empty promise
To the people that the public can ignore
This way of life is so devised to snuff out the mind that moves
Moving with grace the men despise, and women have learned to lose
Throw off your shame or be a slave of the system
I see you take another drag
One more lost soul to raise your flag
The sky is a landfill
I see you take another drag
Let's see you take another drag
you like to dance to the rolling head of the adulteress
You sing in praise of suicide
We know you're useless
Like cops at the scene of crime
With your steroids and your feedbag and your stable and your trainer
I got a mail bomb for you, Mr. Strong Arm
Throw out the stones from all the cemetery homes
for the violence of a nation gone by
or the politics of weakness and the garbage dump of souls
That will now black the sky
Their yellow haze and crowds of eyes will plug up the mind that moves
Moving with grace the men despise, and women have learned to lose
We'll share our bodies in disdain for the system
I see you take another drag
one nation bends to kiss the hag
The sky is a landfill
I see you take another drag
I see you take another drag
I have no fear of this machine

The Sky is a Landfill, de Jeff Buckley

Diversão

Um dos divertimentos mais comuns na blogosfera é desancar em Eduardo Prado Coelho (EPC, para os amigos). Sem mérito de quem o faz, de resto. Gozar com EPC é como tirar doces a uma criança. O professor universitário oferece ambos os flancos, consegue caminhar sobre a fina linha que separa a mediocridade do ridículo. O engraçado é que nem sempre foi assim; há obras que comprovam que a opinião do crítico já foi respeitada, resquício de um tempo em que a importância do professor era efectiva, não poderia ser beliscada por qualquer engraçadinho sem ideias que se divertisse a escrever num espaço virtual de onde o intelectual clássico está, à partida, arredado. Curiosamente, a crónica de Vasco Pulido Valente, hoje no Público fala, de certo modo, precisamente desse tempo. Parece-me que o cronista tem perdido qualidades desde que se tornou blogger. O lamento de hoje (Sábado) cheira a desnecessária fraqueza. Terá sentido Vasco Pulido Valente na pele as dezenas de comentadores medíocres que passam os dias a exercitar o rancor acumulado e a descarregar as suas frustrações no blogue a que pertence? Como EPC não se expôs ainda à democracia totalitária que impera na blogosfera, continua a pairar acima da maior parte das críticas que lehe são dirigidas. Porque não lê, simplesmente, ou porque não quer falar disso. A verdade é que são poucos os que se atrevem a assediar EPC na imprensa escrita. O homem, não há dúvidas, ainda consegue ser influente. Nem que seja porque quem o pode criticar vive na esperança de algum dia ele poder falar da obra produzida, e EPC, se alguma qualidade possui, é a de saber gerir bem as expectativas de qualquer aspirante a escritor ou artista com obra ainda por divulgar. O anonimato da blogosfera permite que se continue a dizer mal do acossado ensaísta, e aqui reside a diferença entre este meio e os outros espaços públicos de opinião. Enquanto a blogosfera não se tornar um circo de animais amestrados, como parece que começa a suceder. Será disso que Vasco Pulido Valente fala?

03/03/06

Humor

Ao contrário do que preconizaram durante anos, a idade não me trouxe sabedoria nem paz de espírito. Ocorrem-me duas razões para o sucedido: ou sofro de uma lamentável tendência para o pessimismo e receio a velhice muito antes do tempo ou aqueles que me avisavam incorreram num redondo engano. Mas nem tudo é mau, com o acumular dos anos fui criando uma espessura de pele que me torna imune a quase tudo o que, para outro qualquer, poderia ser desagradável ou prejudicial. Desde que não cutuquem a minha sagrada trilogia – família, família e família – posso dizer que consigo ser, quase todos os dias, um homem feliz. A qualidade que me permitiu este upgrade de personalidade poderá ter sido, desconfio, o sentido de humor. Nada de rancor, antipatia, ódio visceral. Tudo pode ser risível, se enquadrado no seu devido contexto. Não é à toa que os ditadores se caracterizam também por ostentarem uma preocupante tendência para a seriedade. A excepção, Fidel Castro, serve para confirmar a regra. (Não é gralha, alguém acredita que aqueles discursos intermináveis e monótonos são para levar a sério?) Serve esta palavreado introdutório para dizer o quê? Que, apesar da minha regular bonomia, me irritam algumas coisas. Por exemplo, e isto é a minha costela de esquerda a falar, desprezo a arrogância capitalista e o individualismo exacerbado, valores que vão fazendo a lei no mundo. Mas, tão claro como isto, lamento que a esquerda encare com excessivo rigor a sua luta. O humor, e nem sei quantas vezes já isto foi repetido, pode ser a mais afiada das lâminas. Os esquerdistas padecem do mal de se levarem demasiado a sério. Conseguem ser chatos, chatos como um dia de chuva londrina em pleno verão. Debitam discursos aborrecidos e arreganham com rapidez os dentes se as suas ideias são atacadas, ou pior, arengadas pelos direitistas. Os esquerdistas gostam de coisas como ideais, princípios, regras de boa conduta. Dogmas, dogmas, dogmas. Um esquerdista entediado consegue ser mais conservador do que o pior reaccionário, um esquerdista enfadonho faz temer qualquer revolução que se anuncie, um esquerdista maçador é um perigo para a democracia. Passe a retórica exacerbada. Ser de esquerda e ter um pensamento de esquerda são coisas diferentes. Penso em Miguel Esteves Cardoso, confessado monárquico e revolucionário encapotado, penso em Vasco Pulido Valente, jacobino disfarçado de liberal relutante. O riso não é apenas a menos desprezável das conquistas da razão; quando acontece, elimina as rugas que a vida reflecte no rosto, e a sua ausência é o pior agoiro para o tempo que se segue, em grande ou pequena escala.

Pormenores

O professor doutor Diogo Freitas do Amaral é um daqueles homens raros, capaz de gerar consensos da esquerda à direita. Viu-se agora, no caso dos cartoons. O fartote que foi ter sido apanhado em falso, de calças na mão, congenialmente veniando os terríveis terroristas islâmicos. Os que esperavam por uma escorregadela do homem têm feito a festa. A direita, neste aspecto, depois de tanto tempo aguçando as facas, tem-se prestado ao serviço de modo conveniente e vivaço. É normal, ninguém nesse campo político lhe perdoou a traição. Começou no retrato excomungado da sede do CDS e culmina nas sugestões de demissão sopradas por gente tão diversa como o director do Público, Pacheco Pereira ou Vasco Pulido Valente. No outro campo, a esquerda socialista, que nunca viu com bons olhos a nomeação de Freitas por Sócrates, sorri para dentro. Será uma questão de tempo até à queda. Sem surpresa, apenas a extrema-esquerda (facção BE) ainda defende o ministro dos Negócios Estrangeiros, consequência evidente do convívio próximo em manifestações com o político católico. Mas que fez Freitas para provocar tanta indignação, chiste e rilhar de dentes? O dislate inicial é imperdoável, mas compreensível; não surpreendeu ninguém a atitude beata de subserviência ao um deus que já nada diz aos ateus que opinam nos jornais. O que já não se entende é o ataque que se seguiu à primeira correcção do rumo inicial: quando Freitas sugeriu que o Ocidente seria, actualmente, o primeiro agressor do mundo árabe, onde estava o erro ou a mentira? Alguém poderá provar o contrário? O burburinho que animou os detractores do ministro foi, no mínimo, suspeito. Quem grita é guerra! é guerra! não se comove com estas minudências, a melhor das intenções esbarra no choque de civilizações propagandeado por uma certa direita saudosista da Guerra Fria. Os ideólogos que temos alegram-se com pouco. Meus amigos, avancem lá, que eu morro de curiosidade, o que têm a dizer sobre o último livro de Francis Fukuyama?

Contabilidade

Os mortos passam a ser números. O pior dos destinos.

Gosto antigo

Odalisca & escrava, Ingres (1780-1867)

Direita e esquerda

Blogues à direita, coração à esquerda.

Modus vivendi

Não sou celibatário. Nem conservador. Nem deprimido. Também eu me questiono porquê.

Teste

Sem espelho.