31/05/13

os capítulos maiores da minha vida, suas músicas e palavras,
esqueci-os todos:
octogenário apenas, e a morte só de pensá-la calo,
é claro que a olhei de frente no capítulo vigésimo,
mas não nunca nem jamais agora:
agora sou olhado, e estremeço
do incrível natural de ser olhado assim por ela

Herberto Helder, in Servidões (via O Melhor Amigo)

27/05/13

Herberto

Dói-me tanto a possibilidade de um dia não celebrar novo livro de Herberto Helder. De um dia não poder encontrar novos poemas, e saber que novos poemas não poderão ser encontrados. Nunca mais. Também terei a certeza de que sonharei com os poemas que ele perdeu numa viagem suburbana, o livro que nunca escreveu, nunca chegou a ser. Tenho saudades agora, saudades do que não vou poder ler quando Herberto deixar de escrever. Não consigo conformar-me com o que tenho. A desolação é mais certa do que o presente. Herberto não continuará a escrever.

26/05/13

Fotografia

Estaria mais interessado em
roubar a alma da cidade
do que em vivê-la, sentir a leveza da pedra
nos dedos e a luz caindo sobre a tarde
como uma amante reencontrada,
e cada fotografia que tirava
afastava-o mais desse centro essencial
de que falam os poetas e os teólogos.

Quando estava a escolher as imagens
que dariam sentido à cidade que dizia amar,
foi pensando no exacto instante
em que parara e decidira enquadrar
e matar com o obturador a parcela de tempo
que o abismava. Perdeu muito. E tudo o que ganhou –
a beleza desfocada e a imitação da vida –
não se compara ao que recorda.

A realidade é uma âncora presa à memória – para trás,
fica tudo o que não se pode capturar.

24/05/13

Perder o tempo

Ir avançando por aí, pelo tempo fora, é perder aos poucos o que nos motiva quando somos mais novos. O que nos transporta é ilusório, úteis invenções às quais entregamos a vida. Sabemos que as vamos largando por aí, por vezes elas acodem-nos à memória e por ali ficamos, mergulhados nas possibilidades que se foram esgotando. A cada momento em que paramos e pensamos nela, na mesma medida desejamos essa ilusão ingénua e ficamos felizes no que somos, no que sobe à superfície do abismo da perda. A serenidade será nada querer, nada ambicionar? Ainda irei a tempo de saber.

15/05/13

O labirinto

"Ouvi Borges dizer que se recordava que uma tarde o pai lhe tinha dito algo muito triste sobre a memória, tinha-lhe dito: «Pensei que conseguiria recordar a minha infância quando cheguei a primeira vez a Buenos Aires, mas agora sei que não consigo, porque creio que se recordo algo, por exemplo, se hoje recordo algo desta manhã, obtenho uma imagem do que vi esta manhã. Mas se esta noite recordo algo desta manhã, o que então recordo não é primeira imagem, mas sim a primeira imagem da memória. Assim, cada vez que recordo algo, não o estou a recordar realmente, mas estou sim a recordar a última vez que o recordei, estou a recordar uma última recordação. Por isso, na realidade não tenho em absoluto recordações nem imagens sobre a minha infância, sobre a minha juventude.»
Depois de evocar estas palavras do pai, Borges calou-se durante uns segundos que me pareceram eternos, e logo a seguir acrescentou: «Tento não pensar em coisas passadas porque, se o faço, sei que o estou a fazer sobre recordações, não sobre as primeiras imagens. E isso põe-me triste. Entristece-me pensar que talvez não tenhamos verdadeiras recordações da nossa juventude.»

Esta passagem de Paris Nunca se Acaba, de Vila-Matas, já tinha ficado a bailar no meu espírito da primeira vez que li o livro, há uns anos. A analogia da memória como uma cebola à qual se vão retirando as várias camadas, até restar nada, fabulosa na sua simplicidade, é também terrivelmente verdadeira. As nossas recordações são codificadas em imagens, e não podemos confiar nelas. Podemos lembrar sons, palavras, até cheiros ou sabores, mas estas sensações não-visuais são sempre inseridas numa cena. O passado projecta-se no nosso presente, imagens numa tela, mas nunca poderemos seriamente confiar nas imagens que vemos - o filme da nossa vida pode ser tão inventado como qualquer fita a que assistimos. 
Pensar que o passado, por mais forte que seja a impressão que deixa no nosso presente, pode não ter existido, poderia levar-nos, se quiséssemos, à loucura. Confiamos nas imagens que não são mais do que recordações de uma recordação. Não sabemos, nunca saberemos, o que perdemos e o que ganhámos, o que acrescentámos ao que vivemos. Claro que a técnica - fotografia, filmes - permite-nos fixar a realidade, fintando os truques da memória. Mas até essas imagens mentem, ou pelo menos escondem a parte do passado que existe para lá do enquadramento.
Por outro lado, não só não podemos confiar nas recordações como nunca poderemos saber o que sentimos no momento em que recordamos. Achamos que sabemos o que sentimos, mas poderemos na realidade saber o que pensávamos de um acontecimento ocorrido aos doze anos, estando a ver aqui do presente, o olhar moldado por aquilo que somos agora? Há algumas formas de loucura que aprisionam o ser no passado - talvez esses loucos consigam saber exactamente o que sentiam, o que pensavam, num qualquer momento traumatizante da sua vida que para sempre será repetido, em loop perpétuo. O castigo por recordarem de verdade é a perda do presente - viver exactamente no passado, como aconteceu, não permite que vivamos para o que somos, agora, e para o que viremos a ser. A história da mulher de Lot, contada no Génesis, que olha para trás, para Sodoma destruída, desobedecendo a Deus, e se transforma numa estátua de sal, revela a essência dessa maldição de forma perfeita.
E depois, há os sonhos. Muitas recordações que eu tenho, sonhei-as. Isto é: eram recordações de coisas reais com que sonhei, e a partir da primeira vez que as sonhei, passei a lembrar apenas o sonho. Portanto, não é apenas pensar em coisas passadas que são imagens das recordações, mas pensar em sonhos que são imagens das recordações achando que esses sonhos são as verdadeiras recordações. 
O labirinto mental de Kubrick (em Shining) é provavelmente a imagem mais clara do mundo de incertezas e enganos em que estamos enredados. Talvez por isso, a psicanálise aponte para a ideia de que um homem são seja alguém que vive o mais afastado possível do seu passado. Quem vive no presente, consegue fugir às imagens que distraem e enganam, à ilusão.

08/05/13

Coisas simples

"Mas naqueles tempos de juventude em Paris eu achava que a alegria era um disparate e uma vulgaridade e, com notável impostura, fingia ler Lautréamont e não parava de incomodar os amigos insinuando a todo o momento que o mundo era triste e que não tardaria a suicidar-me, pois só pensava em estar morto. Até que um dia encontrei Severo Sarduy no La Closerie des Lilas e perguntou-me o que pensava fazer no sábado à noite. «Matar-me», respondi-lhe. «Então fica para sexta», disse Sarduy. (Anos depois ouvi Woody Allen dizer o mesmo e fiquei de boca aberta, Sarduy tinha-se-lhe antecipado.)
A partir daquele dia, incomodei menos os amigos com essa ideia da morte por mão própria, mas durante muito tempo mantive - até Agosto deste ano não estava completamente pulverizada - a minha crença na elegância intrínseca do desespero. Até que descobri como era pouco elegante passear triste, morto e desesperado pelas ruas do nosso bairro de Paris. Compreendi-o este Agosto. E a partir de então a elegância encontro-a na alegria. «Empreendi várias vezes o estudo da metafísica, mas fui interrompido pela felicidade», dizia Macedonio Fernández. Agora penso que não é elegante mas de verdadeiros cataplasmas estar no mundo sem sentir a alegria de viver. Fernando Savater diz que a frase castiça encarar as coisas com filosofia não significa encarar as coisas com resignação, nem tão-pouco com gravidade, mas sim encará-las alegremente. Claro. Bem vistas as coisas, dispomos de toda a eternidade para estarmos desesperados." 

Enrique Vila Matas, Paris Nunca se Acaba, tradução de Jorge Fallorca, editado pela Teorema.

06/05/13

Notas para uma crise (2)

Não conseguir libertar-me do mundo em que vivo pode ser ainda mais opressivo do que a prisão que a simples enunciação desta impossibilidade sugestiona. O mundo em que vivo é um mundo cada vez mais cruel, injusto, um mundo em que os acabrunhamentos implícitos da existência se vão multiplicando, numa impotência que há bem pouco tempo não se julgaria possível. 
As notícias de jornal, as reportagens da televisão, as conversas de café. Três planos diferentes, cada um apontando para o mesmo: não se vislumbra saída para o impasse, todas as possibilidades parecem vedadas. Será assim para muita gente, cada vez mais pessoas, não será para alguns que navegam a fortuna, escapando à vaga que tudo parece arrastar. Nunca vi tanta tristeza nos olhos das pessoas. E o medo, disfarçado pela sombra da resignação. A vontade de poder, que para a esmagadora maioria nunca passou apenas de uma vontade de lutar por uma vida melhor, é constrangida a cada dia que passa por uma hierarquia sufocante, incontrolável. As pessoas sentem, as pessoas sabem, que pouco do que se possa fazer irá mudar verdadeiramente alguma coisa.
Há mudanças, pequenos assomos de mudança. Há talvez maior proximidade. O que nos une, a nós, proletários de um país que nunca deixou verdadeiramente de os ter, é a perda e a impotência. Sentimentos negativos, é certo, mas que estão criando laços invisíveis que poderão, quem sabe, ser o rastilho para uma verdadeira transformação. Os primeiros sinais, contudo, são de um medo mais profundo e perigoso. É no medo que prosperam o ódio e a negação, e não é, de modo algum, um acaso, que os movimentos políticos extremistas ressurjam, alimentando-se do ressentimento e da desesperança. Entre esta discreta união de despojados de uma política que escolheu vomitar a parte da sociedade que verdadeiramente nunca pertenceu, de pleno direito, ao paraíso da modernidade, e os movimentos extremistas para os quais é atraída outra parte destes despojados, se decidirá o futuro. As vozes que repetem que outra guerra poderá surgir a breve trecho poderão estar mais certas do que o bom senso aconselharia.
No dia a dia, nada disto conta. Os grandes planos são contrariados pelos pequenos incómodos. Basta afastarmos o espírito por algumas horas daquilo que produz a ilusão de guiar a nossa vida para percebermos que, afinal, a filosofia dos antigos e os manuais de auto-ajuda têm razão numa proposição: cada momento conta, esqueçamos o que nos leva a acreditar numa perspectiva demasiado grandiloquente das nossas minúsculas vidas. Olhar para as coisas, como elas são, senti-las. Sentarmo-nos a ouvir a natureza, e perceber que o barulho a que não costumamos prestar atenção, com um ligeiro esforço, pode-se focar, evidenciando todos os sons que o compõem: cinco cantos diferentes de pássaros, do trinado composto do pintassilgo ao monótono piar da carriça; o ritmo certo do longínquo cuco; a brisa suave soprando por entre as laranjeiras; as vozes familiares que dão sentido à distância que nos separa do mundo. E, se concentrarmos toda a nossa vontade no gesto, ouviremos o ruído de fundo do universo, pulsando desde o início dos tempos. A crise? Não existe.

01/05/13

Montmartre, 1.º desvio

Quando decido escrever sobre a vida que vivo
atraiçoo o que está fora dela -
encontro à hora certa os fantasmas da viagem,
a melancolia de uma tarde noutra cidade,
as pessoas na sua rotina comum,
e eu procurando as ruas de há cem anos
batidas por poetas que mal conheço;
a mesma caça de outrora,
menos verdadeira, uma verdade fora de prazo,
desajustada como as casas respirando
os ares venenosos de uma modernidade nunca cumprida.

Vou subindo as escadas,
e cada degrau me vai esquecendo;
paro e desato a tirar fotografias,
tanto rosto que se me quer escapar,
não sabem que não me é permitido o registo
do presente nem a ilusão do passado.
Meti-me num avião sabendo muito bem o que esperava:
desencontrar as sombras dos meus poetas,
chegar ao lugar e percorrer
o bravo caminho de agora,
o que me resta, deitar notas ao papel
e depois lembrar o desencanto - mas não era assim, não era;
sorria enfiado num fato demasiado largo,
o sorriso compostinho dos turistas,
sorria tanto como aquele japonês de Nikon espetada
em direcção às encostas que desaguam na cidade,
o mar plano de onde se ergue a torre, maldita profecia
de uma humanidade perdida.
Sorria tanto como tantos que saíram
de casa, julgando que assim se comprometiam com
uma transumância que não passa de uma ideia de viajante
submetido ao suave adorno da burguesia - era mais um de muitos,
e pensava, sorrindo do lugar mais do que comum, na fuga para a Abíssinia,
o desaparecimento.

Cadência vulgar,
a do passeio; os corvos estremecem
na alma dos turistas. São muitos, muitos,
cada vez mais a caminho da morada térrea de Truffaut.
A flor que lá foi deixada, já sei, já sei, de nada vale.
Regressamos pelas ruas a disparar contra um vazio
que se aloja nos ossos e um gato - esse, verdadeiro viajante -
aproxima-se, confiante. Damos-lhe pão que ele engole num golpe rápido e partimos,
embrulhamos o coração num pano seco, carregâmo-lo
até ao próximo cruzamento.

O trânsito, não pára.
A vida nunca pára.