28/01/08

Turistas e viajantes

O turista julga entender a alma do lugar que visita por alguns dias apenas, o viajante sabe que nunca conseguirá compreender o que sente um povo. Nascemos com a nossa terra no sangue, e nem que passemos anos fora perderemos essa marca de nascença.
Podemos fingir, cedendo um pouco à ilusão de conhecer. Em Barcelona, passeando entre "tourist spots" apinhados de gente com máquinas numa mão - digitais, que se perdeu para sempre a imagem do turista japonês de Nikon ao pescoço - e guia na outra, deparo com um breve (e ilusório) lapso da vida de quem pertence àquele lugar. Num parque com rampas para skaters, entalado entre prédios de cimento pouco típico e muito proletário, destaca-se um grupo, dois adolescentes e um homem mais velho. De início, não reconheço o objecto que o mais velho traz nas mãos. Dispõem-se em campo, o mais velho e um dos adolescentes frente-a-frente. O segundo saca do bolso uma bola de ténis e lança-a ao outro, que maneja o bastão de modo para mim inaudito. Coloca-o na vertical, amortecendo a pancada da bola, que ressalta e bate uma vez no chão antes de chegar às mãos do remetente inicial. Jogam cricket, entre muros, e o terceiro observa-os. São todos asiáticos, paquistaneses ou indianos. Em volta, os adolescentes catalães usando roupas largas e penteados trendy saltam nos skates, jogam à bola contra a parede do fundo, alguns com camisolas de Ronaldinho, Deco, Eto'o, vestidas. Os asiáticos, passado algum tempo, desistem do passatempo. E juntam-se a um grupo, começam a chutar uma bola de futebol de pé para pé, com mais ou menos talento para o jogo.
Ao afastar-me preferi não dar demasiada importância ao hiato de tempo que transcorreu naqueles breves minutos de actividade desportiva. Primeiro, o jogo dos pais e dos avós, a herança deixada pelos colonos que ocuparam o país durante 400 anos. Depois, o jogo do país onde nasceram, ou do país que os adoptou, tanto faz para o caso, acolhendo no seu património genético a nova terra que se entranha.
A conversa de integração não faz sentido nesta história. Eu era apenas um turista a caminho de mais um museu, sem qualquer desculpa para estar ali, na margem da cidade que visito.
Hoje, o grande tema é mais uma ameaça terrorista. Há canais de televisão que dizem que os suspeitos são jovens britânicos islâmicos, provavelmente asiáticos, como os do atentado no metro londrino, quem sabe como os adolescentes que vi jogando cricket em Barcelona. Não há espaço para moral nesta história. Os caminhos de um Homem são quase sempre um insondável mistério.

(Texto antigo recuperado alguns dias depois do que aconteceu em Barcelona)

[Sérgio Lavos]

Supergrass


Moving [Susana]

23/01/08

Os outros

Curiosamente, apesar dos propalados baixos níveis de literacia do país, encontro mais gente arrogante que ignorante. Quando eu próprio era arrogante, achava toda a gente ignorante. Portanto, eu sei o que essa gente sente. E tenho pena. Do seu sofrimento. Emocional, social. Físico. Não sei se sabem, mas a arrogância provoca maleitas físicas, pequenas coisas preocupantes. E chatas. Aftas. Furúnculos. Hemorróidas. Talvez por isso, falar com gente assim causa-me pena. Leio-lhes o sofrimento na pele. O esgar subtil. A carantonha retesada. O nervo sináptico ligando o cu à boca, transportando os excessos cá para fora. A arrogância, desconfio, é uma doença. Com variados sintomas - os físicos, já expostos, e os psíquicos. Má educação é outro nome para este terrível flagelo que atravessa uma classe circunscrita da nossa sociedade; do sangue azul ao sangue vermelho reciclado, do nobre depauperado ao burguês enconado, do velho rico fascista ao novo rico malabarista. E, em casos avançados da doença, a loucura pode aparecer. Daquela galopante, senil, babada, raiada, balbuciada, mal-educada. Portanto, via sacra sofrida que esta gente pena. Da hemorróida à loucura, o passo é curto.
Os ignorantes divertem-me. E ensinam-me. Ensinam-me a humildade - eu confesso que me esforço para aprender. Vou aprendendo. Curando as aftas. Os furúnculos. (O resto nunca tive). Divertimento e sabedoria, uma tábua rasa pronta a receber todo o conhecimento do mundo - como não admirar a ignorância? Aprendemos mais do que ensinamos, e os arrogantes vão continuar a sofrer de achaques, a contorcer-se, a espumar de raiva, a empalidecer, a esticar o nariz até tocar no tecto, como focas, a modular a voz até se assemelhar a um trombone, uma longa nota, estridente e cava, que não tem maneira de acabar. Deixemos a purulência arrogante refastelar-se na sua própria bílis. Ganhar bolor. Apodrecer.
A ignorância é uma benção.

[Sérgio Lavos]

Cifra

Deus não é o meu co-piloto, foi recusado nuns testes que eu lhe fiz há vinte anos.
Quem acabou por perder o sono, pelo menos durante algum tempo, fui eu. Ele voltou para a sua vida eterna, dia após dia, até se esquecer dos dias, e eu nunca mais voltei a vê-lo. Mas, de vez em quando, ele manda-me cartas. Nunca mails. Cartas. Longas missivas? Nem pensem, por duas razões: quanto mais curta a mensagem, mais possibilidade tem de ser importante; e porque escrevendo "longa missiva" estaria a cair num lugar comum. As cartas recordam-me que ele ainda não me esqueceu. E isso deixa-me feliz. Mas, infelizmente, a angústia, usando as serenas vestes da insónia, continua a guardar o meu leito.
Na última carta, falava-me daqueles que morrem jovens. Gente da minha idade, pouco mais velha, pouco mais nova, gente, e é aqui que eu quero chegar, que podia ser eu. Ninguém lamenta o desaparecimento de um velho; quando muito, elogiamos a sua vida, se foi um modelo ou deixou obra, admiramos a pessoa que foi. A morte é uma doença irreversível. Mas se derrota um velho, reconhecemos justiça no mundo. Quando, no seu voo, a morte rapina alguém que teria muito mais tempo de vida, lamenta-se, e de verdade, sem falsos sentimentos. Mas não há qualquer altruísmo nisto: medo, sim. Muito medo. A morte do outro é um pesadelo para nós: sabemos que não é real, mas pode a qualquer momento suceder. O pesadelo transformado em realidade.
Enquanto escrevia estas palavras, Deus tinha colocado o seu ar grave, sério. Falava verdade, e a nossa verdade (humana) dita pelo próprio Deus que alimentamos é um peso insuportável, não há verdade mais clara e mais certa. Eu reconquistei o sono, quando esqueci a recusa de Deus em ser o meu co-piloto (mas fui eu que recusei, não esquecer, fui eu - o espinho cravado). O tempo apaga tudo, mesmo oportunidades perdidas de negócio, parcerias para a vida. Neste momento, ou readmito Deus ao meu serviço, ou terei de pedir que deixe de me escrever cartas. Fale por sinais de fumo. Se mantenha calado, no seu retiro de mim. A verdade tem um rosto que eu não quero conhecer.

[Sérgio Lavos]

21/01/08

Estereótipos?

Caro Bruno,

pois é precisamente aquilo que dizes ser diferente no pensamento de Judith Butler que me leva a afirmar que ela nunca sai do círculo vicioso dos géneros. Simplesmente questiono se será sensato combater a hegemonia da norma heterossexual (recuso colocar entre parêntesis o termo heterossexista porque este pressupõe um preconceito em relação à heterossexualidade), deslocando comportamentos sexuais que se fundam nas diferenças de género de um sexo para o outro - as gloriosas descrições que Butler faz dos rituais transgender não revolucionam, não derrubam estereótipos. A forma de luta que Butler escolheu para combater a hegemonia heterossexual passa pela afirmação do óbvio: que existem comportamentos associados ao sexo masculino e ao sexo feminino a que o ser humano nunca conseguirá escapar. Trocar as voltas às coisas, mudar as cadeiras de sítio, não elimina os hábitos de séculos, milénios. A terceira via não é coisa que interesse a Butler; um terceiro sexo que sublimasse os "constragimentos constitutivos" não é possível, se acreditarmos que sexo e género estão imbricados à nascença. Neste ponto, se aceitarmos o que Butler diz, o que será mais razoável: o combate pelo direito de perpetuar estes constragimentos culturais e biológicos, ou um que aceite as diferenças de sexo abolindo as diferenças de género? No fundo, aceitar que uma mulher possa ser feminina tendo o mesmo poder que um homem, ou um homem ser masculino sem que, por isso, se possa colocar a si próprio num patamar superior à mulher?

[Sérgio Lavos]

Gato escondido

Comecei a ler um livro de um escritor português muito conhecido e traduzido. Leio por obrigação, mas admiti que podia, lendo, mudar de ideias a respeito do escritor. Duvido que mude de opinião. O monólogo interior depois de James Joyce está ao alcance de qualquer estudante de literatura que saiba escrever, portanto inspira piedade ver um escritor que visivelmente ignora as suas limitações praticá-lo sem parar e por vezes em frases mal escritas - para acumular banalidades sem interesse. Misturar dois ou três fios de intriga, não respeitar as regras tradicionais de pontuação só seria interessante se o assunto em si, o assunto do livro, fosse interessante. Não é interessante, é uma estopada. Histórias de famílias burguesas nem contadas para as caricaturar têm já qualquer interesse, prova-o o escritor. A burguesia portuguesa nunca teve qualquer interesse. Quem escreve sobre ela assim também não.

Quem será? Resposta aqui.

[Sérgio Lavos]

20/01/08

Expiação

Não sei se é apenas impressão, mas todas as críticas ao filme Expiação escamoteiam o facto de este adaptar o melhor romance desta década, o melhor de um dos melhores escritores actuais, Ian McEwan. Desconfio mesmo que a maior parte dos críticos não leram o livro, e por isso insistem em afirmar banalidades sobre a qualidade romanesca da história (alguém sabe o que isso é?) ou tecer loas ao estilismo romântico de Joe Wright (isto é nome de cineasta?!).
Vamos lá ver bem as coisas como elas são: a partir de um romance cujo tema é a criação, o próprio acto de escrita (um acto de amor), seria impossível produzir um filme que estivesse à altura do material original. A transcrição da história não seria suficiente para reproduzir todas as nuances da linguagem de McEwan, os diversos planos narrativos, as citações a outros autores, a perspectiva metaficcional a que McEwan se propõe. Se um romance nunca é a história que conta, pode muitas vezes parecê-lo (por isso, Hitchcock soube aproveitar obras menores e transformá-las em obras-primas do cinema). Mas em McEwan a linguagem não é um espartilho para a história; é o impulso para as diversas peripécias, o sopro que insufla as personagens.
E o que significa isto, quando transposto o portal que separa o mundo da literatura (composto de imagens que nascem no momento em que as palavras são lidas) do mundo do cinema (em que as imagens são oferecidas ao espectador, cerceando a imaginação a que um leitor é forçado)? Bom cinema, no caso de Joe Wright. As imagens que vemos são novas, e não porque o realizador se tenha afastado do enredo original; antes ilustrou, mas fê-lo de uma forma que não renunciou a um pensamento original, a boas ideias para solucionar os problemas colocados, no fundo a uma ideia de cinema. Os exemplos estão lá, para quem os quiser ver: o brilhante plano-sequência em Dunquerque (há quem tenha referido Kubrick, eu, exagerando, lembrei-me de A Sede do Mal, de Welles); os flashbacks inseridos cirurgicamente, sem que se perceba de imediato, criando uma ilusão de continuidade temporal, dois tempos diferentes que se fundem num só; a solução encontrada para mostrar o fundamento da história: o engano criminoso de Briony. A cena filmada através da janela, pelos olhos de Briony, e depois no exterior, do ponto de vista de Cecilia e Robbie. As fraquezas? Os actores principais, o inócuo James McAvoy e a sobrevalorizada (como actriz e mulher) Keira Knightley.
Expiação
podia ser mesmo um épico romanesco tão marcante como O Paciente Inglês (não por acaso, Anthony Minghela aparece como actor neste filme, entrevistando na cena final uma Vanessa Redgrave a fazer de Briony envelhecida), se o cast tivesse sido diferente (penso em Rachel Weisz e Christian Bale, por exemplo). Descontando isto, e um ou outro pormenor desnecessário (a banda-sonora a intrometer-se nas imagens, as cabeças cortadas em alguns enquadramentos), acaba por ser um bom filme, que merece o esforço que possa fazer para gostar dele - foi assim que comecei a admirar O Paciente Inglês e O Fiel Jardineiro, não seria coisa nova.
Querer que os críticos leiam o romance de McEwan é esperar muito. Que diminuam o filme, colocando-o na extensa prateleira das adaptações literárias de época, não se entende. Não se pretendia originalidade. Apenas alguma fidelidade ao espírito da obra adaptada. E a melhor maneira de conseguir isso é filmar bem, com mão virtuosa. Joe Wright, se não o consegue totalmente, fica muito perto. Seria difícil melhor. (Barry Lindon é um caso à parte).

[Sérgio Lavos]

Simone, a escandalosa

Na semana passado, um grupo de feministas protestou em frente à redacção da revista Nouvel Observateur por esta ter publicado uma foto desconhecida de Simone de Beauvoir nua, de costas, mirando-se no espelho. Não reclamo do facto de esta revista ter desfeito a imagem que eu tinha da feminista francesa: uma mulher séria, que seriamente lutou para que as mulheres tivessem os mesmos direitos que os homens. Poderá uma feminista séria deixar-se fotografar em discreta pose sensual, vaidosa e bela? Aparentemente, não. As mulheres que protestaram assim o pensam. Mesmo que a fografia se tivesse mantido secreta durante 50 anos e tivesse sido publicada mais de vinte anos depois da morte de Beauvoir. As mulheres que protestaram pediam fotos do rabo de Jean-Paul Sartre (sempre gostei mais de Jean-Saul Partre), das espaldas de Lévinas, do torso de Albert Camus. Descontando o facto de não perceber por que razão uma mulher inteligente poderá querer olhar para Jean-Paul Sartre nu, aplaudo a iniciativa. A filosofia não pode ser apenas a constituição de um corpo de ideias coerente e sistemático; é preciso mais carne, outro corpo material, nesta disciplina em vias de esquecimento. As inconsistências do pensamento filosófico de Beauvoir são reduzidas ao seu valor mínimo se estiver em causa um sexismo evidente por parte dos editores da Nouvel Observateur. Beauvoir vestida é filósofa? Não sei, mas, pelos vistos, despida passa a ser.
A afirmação da ideia de mulher enquanto conceito cultural, a maior contribuição de Beauvoir para o feminismo (o que vale isto perante a luta das sufragistas, não é?), não pode ser compatível com a maior conquista do feminismo, desde o seu aparecimento: a liberdade sexual da mulher, em qualquer circunstância. Pelo menos, na boca de muitas da seguidoras do pensamento da filósofa. É este o meu maior problema com o feminismo: transformar mulheres sensatas, inteligentes, em puritanas ainda mais puritanas que as mulheres no tempo da rainha Vitória. Mulheres que nunca irão perceber como o pensamento de Camille Paglia é libertador (e libertário) e o de Judith Butler apenas perpetua estereótipos (as chamadas diferenças de género) e justifica a marginalidade de comportamentos sexuais anómalos, que visam imitar e repetir estes estereótipos, contra os quais Simone de Beauvoir lutou.
Longa vida a Simone de Beauvoir, vestida ou despida, na intimidade ou nos livros - e a simetria das duas enumerações é propositada; nada pode ser mais erótico do que uma mulher que pensa. O pensamento como motivo de escândalo. Um pecado.

[Sérgio Lavos]

15/01/08

Ainda a crítica (2)

Declaro que eu deixei de gostar de polémicas. Já escrevi sobre isso, não me vou repetir. Não gosto de polémicas porque é difícil convencer quem já está convencido. A discussão não é o melhor meio para a razão; não quando o interlocutor ou não quer ouvir os argumentos do outro ou quer ouvir o que o outro não disse. Não quero entrar em polémicas, porque qualquer bom argumento tem de ser afirmado de uma forma séria. E eu não sou sério. Tenho tendência para achar sempre o lado lúdico de um argumento furioso. Racionalizo a irracionalidade do oponente. E psicanalizo a resposta. Eu sei, quando me dizem algo, o que está por trás do que dizem. E também posso afirmar que nada do que eu digo é racional - tudo existe em função de variantes nada objectivas - o meu crescimento, a formação da minha personalidade. É que a constituição de um gosto não é um processo inocente. Toda a minha vida passa pelos olhos quando escrevo: prefiro a maneira anglo-saxónica de fazer crítica literária ao priapismo crítico português, todo ele forma, herdeiro bastardo de um barroco nunca ultrapassado. O problema é meu, passei os anos de formação a ler autores ingleses e norte-americanos, a tentar esquecer os francesismos que, durante séculos, se foram incrustando na literatura portuguesa. Os maus francesismos, claro, porque os bons ninguém imita (continuam a preferir os delírios poéticos de uma Duras à nova língua inventada por Céline ou Julien Gracq, mas enfim). Não serve de desculpa a má-formação que me foi dada. Mas explica a elegância de achar que nada pode justificar a insistência num ponto que nunca será de acordo, e que, para cúmulo, se funda num equívoco.
Gosto de ver o José Mário Silva a concordar com um amigo. E gosto de ver que estamos os três de acordo: acho Manuel Gusmão um dos melhores poetas aparecidos na última década, admiro os seus ensaios e leio sempre os seus textos para o Ipsilon. A questão não era essa; era saber até que ponto o grupo a que Francisco Frazão gostaria de pertencer não poderia ser alargado a mais gente. O tom ensaístico que Gusmão exibe nas suas recensões é de uma lucidez impressionante (mas, confesso, pouco cativante em termos de estilo, ao contrário, por exemplo, de Joaquim Manuel Magalhães ou António Guerreiro). Mas importa que o leitor menos exigente perceba o que o crítico quer dizer. Utilizar termos que vêm da teoria literária em textos publicados num jornal não me parece ser a melhor forma de cativar leitores para a leitura de textos muitas vezes menos densos que o texto que deles fala. Eu percebo que Manuel Gusmão escreva assim; é esse o seu treino, é essa a sua formação. Mas será o espaço apertado (cada vez mais) de uma recensão de jornal o local certo para fazer análise literária? Dúvidas, confesso, dúvidas, e Francisco Frazão não as elucida ao comparar Pedro Mexia a Manuel Gusmão. Percebe-se à distância que a formação e a intenção de Pedro Mexia, enquanto crítico literário, é oposta à de Manuel Gusmão. Menos exigente? De modo algum, apenas mais claro, menos interessado em utilizar o jargão académico aprendido nos cursos de literatura.
Mas admito que tudo isto seja subjectivo. Como também sei que nenhum potencial futuro leitor se perde na floresta barroca que enfeita a crítica produzida por Manuel Gusmão. Que interesse poderá ter escrever apenas para o salão de medíocres? Eu respondo: todo, cada um é livre de escrever para quem quiser. Mas, por favor, evitem justificar o elitismo com a ignorância dos que não pertencem ao grupo.

[Sérgio Lavos]

14/01/08

Autofagia

Neste blogue, perdido na corrente dos arquivos, há um texto onde refiro (detalhadamente) um livro que, em boa verdade, não existe. Dou as referências bibliográficas, editor, ano de edição, as páginas referentes às citações escolhidas; falo do percurso do autor, evidencio o empenho do tradutor (e o seu interesse) em traduzir o livro, confesso-me fascinado com o pequeno volume. Espalhadas pelo blogue, mais referências a livros que nunca foram publicados. A história que o Luís conta (inventa) não pode ser verdadeira. Pode-se perfeitamente escrever sobre livros que se formaram apenas na nossa imaginação - a Biblioteca de Papel de Mário Santos (há uns meses terminada, no Público) induziu-me em erro (talvez por distracção) durante algumas semanas. Borges escreveu um livro sobre seres imaginários, Calvino construiu cidades invisíveis. Poderia escrever poemas inspirados por quadros inexistentes, que ninguém se daria ao trabalho de averiguar as remissões. O leitor que comenta, no blogue que o Luís refere, a tal invenção do blogger, só pode ser uma pessoa muito mal-intencionada. Se o blogger migrou para o Sapo e se tornou de referência, tanto melhor. Toda a escrita pode incorrer na mentira. Se assim não fosse, ninguém leria ninguém. Alguém contesta?

[Sérgio Lavos]

11/01/08

M.I.A.


M.I.A. não é o nome de uma agência de espionagem. Não é alta cultura (literatura, música clássica, Pina Baush e afins) nem baixa. Digamos que entre alta e baixa cultura, temos M.I.A. Não é pop xunga, mas tem batidas que fazem lembrar os maiores êxitos da música turca; não é europop, mas por vezes ameaça com uns violinos que se aproximam da melhor música festivaleira; e também não é uma banda-sonora de Bollywood, apesar do tom da pele e dos arranjos de gosto duvidoso que enfeitam as batidas grime de influência urbana londrina. M.I.A. aprimorou-se numa coisa: a escolha da roupagem, do guarda-roupa. Quem conhece o vídeo de Galang, do primeiro álbum, sabe do que falo (também notável pelo reportório completo de maneiras esquisitas de dançar que a cantora exibe). A linguagem caleidoscópica dos fatos de treino comunica com o telespectador de maneiras nunca antes vistas. Imagine-se a mistura de cores dos saris indianos (ou do Sri lanka, de onde ela é originária) com o corte da moda de rua inglesa. E agora transporte-se isto para a música que M.I.A. produz. Não encontro melhor analogia.
Paper Planes é o mais recente single do último álbum, Kala, um dos melhores do ano passado, e para além do sample sacado aos Clash, tem a curiosidade de mostrar dois respeitáveis músicos de uma menos que respeitável banda a serem servidos por M.I.A. Quem são? - respostas na caixa de comentários. Para além disso, o vídeo tem outra curiosidade menos agradável: o som de tiros que se ouve no refrão foi cortado na versão que passa nas televisões americanas. Land of the free? Sri Lanka.

[Sérgio Lavos]

Política francesa

10/01/08

Tântalo

Caro Tiago,

a bajulação ainda te leva a algum lado. Atormentado? Eu. Eu próprio. Sabes, é que, neste momento, escrevo. Estou a escrever. Estou escrevendo. Estou a teclar palavras. Tentar que estas palavras transmitam ideias, sensações, emoções. Vou escrevendo. E, lamentavelmente, corro o risco de usar as mesmas palavras que Camilo Castelo Branco usou, de que Eça abusou, as mesmas palavras do Pessoa, do Herberto. Nem por isso escrevo o mesmo que o Camilo, que o Eça, que o Pessoa, que o Herberto. Escrevo o mesmo mas nunca conseguirei escrever o mesmo. Do que eles. Não escreverei o que eles escreveram. Mas estou condenado a lê-los. A relê-los. A percorrer os olhos pelas palavras que eles deixaram, e descobrir, a cada leitura, a evidência de que eles se expressavam na mesma língua do que eu. O meu suplício é superior ao de Tântalo - ele pelo menos conseguia ver aquilo que não poderia alcançar. Eu nem isso - não entendo o mecanismo do génio, a sua origem. Todos os que escreveram antes de mim me perseguem. Leio assombrado por uma maldição de contornos masoquistas. Quero lá saber de tudo o que não li nem lerei! Chega-me o que leio diariamente.
Atormentado, eu?

[Sérgio Lavos]

Jesse James


O assassínio de Jesse James pelo cobarde Robert Ford é um título tão longo quanto o filme mas com aquela qualidade de imagem, não me importaria de ver as quatro horas (?) inicialmente previstas. O facto de ter sido reduzido, ou a inicial má planificação da narrativa, prejudica o filme; em algumas cenas sente-se que falta continuidade ou, pelo menos, uma indicação mais concreta que mostre as razões do clima de desconfiança e traições que predomina entre as personagens.
As referências cinematográficas são muitas, criando um pastiche de diversos géneros: o enquadramento central da porta para o exterior de Ford; o sossego de um campo de feno de Malick; as paisagens brancas cobertas de neve dos Cohen [substituindo os desertos típicos]; a nível narrativo, é um pouco ingénuo, caindo mesmo na armadilha habitual da adaptação de livros: o narrador vai contando a história, repetindo o que já é evidente só pelas imagens. Mas, cumpre na perfeição o que é necessário para criar um ambiente onírico ao modo de Malick: todos os pormenores foram captados, a passagem das nuvens, as partículas de luz, a mínima poeira, etc.
Casey Affleck consegue fazer com que a personagem de Robert Ford, um verdadeiro totó de voz esganiçada e insegura, não ultrapasse os limites do aceitável. Incrivelmente, Sam Sheppard desaparece passados 20 minutos (tem apenas um pequeno papel no início, quando o grupo prepara o último assalto).
Mas este Jesse James tem uma temporalidade, ou um modo suave de duração (do olhar que tem tempo para observar), o modo com que Andrew Dominik vai contando a história de Jesse e de Robert, digno de nos levar ao cinema. A cena inicial é de longe a minha favorita [não só porque os comboios fazem parte de um imaginário pessoal ( não só nos westerns)], graças ao contraste entre a escuridão e a luz; quando o comboio chega, primeiramente anunciado nos carris, vai iluminando o bosque e enche de fumo a floresta onde aguardam os assaltantes. O mérito vai todo para a imagem de Roger Deakins e para Jesse James que, segundo Ron Hansen (o autor do livro), continua a dar lucro.

[Susana Viegas]

07/01/08

Um pouco de aritmética

Não sei se repararam (isto é retórica, ignorem) mas não fiz um balanço dos livros lidos no ano que passou. Bem sei que não interessa a ninguém (não de certeza a quem vem aqui parar à procura de "fotografia sacanagem onanismo"), mas gostaria de explicar o seguinte: tudo o que li o ano passado provavelmente não foi publicado o ano passado (correndo o risco de me ter esquecido de quase tudo o que li; e não aponto). O primeiro livro de 2007 é Doutor Pasavento, e estou a acabar de ler agora (não agora, enquanto escrevo, claro, à minha frente tenho dois livros do Luiz Pacheco, o terceiro que me lembro de comprar não o encontro, e ando à pesca de uma citação que, pelo andar da carruagem, não vou publicar). Mas comecei a ler muita coisa que não terminei, decidi-me especializar nisso, dada a minha experiência de vida. Li no outro dia que bastavam as primeiras linhas para se perceber se vale a pena avançar na leitura de um livro. Não precisava de ter lido tal banalidade, a minha experiência teria sido suficiente (mas fica sempre bem escrevermos que lemos qualquer coisa para corroborar o que dizemos). Portanto, muita coisa má me passou pelas mãos; ou então não percebo nada disto; ou então o trabalho que faço cansa e por isso nem Joyce nem Bergman entram nas contas do meu rosário. Curiosamente, fui lendo, bastante fluido, um ensaio de que vi excelentes referências, e avancei, avancei, até chegar a meio e perceber que o livro não acrescenta nada ao que eu já sabia. Não que eu soubesse muito antes, mas o livro chove não molha, e a desilusão tardia quase que vai levando a melhor à minha decisão de terminar a coisa (mais tarde direi de que livro falo; ou escrevo sobre ele; veremos). Deste modo, designo como livro do ano, de entre os publicados em 2007, Boca do Inferno, do Ricardo Araújo Pereira. É o livro do ano porque foi o único livro do ano passado - e nem me venham falar em Sebald, ou Kafka, ou (espreito por cima do ombro para ver as pilhas dos lidos), Doris Lessing. Não, agora a sério: é mesmo o melhor livro novo que eu li no ano passado. Mesmo tendo lido outros (na pilha vejo Jorge de Sena, Dexter, ambos de 2007, e outros que não são; o primeiro gostei, o segundo é fraco, quando comparado com a série).
Reformulo: li mais livros publicados em 2007 do que tinha escrito ao início; do que tinha pensado ao início. O que significa uma de duas coisas: a minha memória é má; a minha memória é selectiva, destacando os melhores do ano automaticamente. O primeiro livro de 2007 (Vila-Matas) é portanto o quarto ou o quinto; pouca sorte.
A anarquia é esteticamente perfeita, quando falamos de livros. Em 2008, quantos livros de 2008 não lerei? E quantos do ano que passou? Fica para o próximo balanço.

[Sérgio Lavos]

Mais um chupista

Ao jornalista do Público que ontem aqui chegou pesquisando no Technorati sobre Luiz Pacheco: mais coragem. A sério, meia blogosfera produziu o seu elogio fúnebre, com mais ou melhores palavras do que eu, bem podia ter avançado umas páginas mais no trabalho. Tinha alguma vontade de continuar a cavalgar a onda, mas vamos lá ver: já tudo foi dito. E se lhe lessem os livros? Podem responder: practicamente não se encontram. Verdade, verdade, toda a gente gostava de o ver a fazer figuras - vestido de Pai Natal, a exibir um belo manguito para a câmara - mas ninguém justificava a existência do que ele escrevia. Saíram há uns anos dois livros na Oficina do Livro que cairam, em pouco tempo, no esquecimento; a correspondência com António José Forte, idem; alguém ainda encontra, da Quarteto, um livro de que não recordo o nome, e que agora não me apetece pesquisar na Internet, por aí? Não. E está esgotado? Nunca, devem ter vendido uns 500, se tanto. Pensando bem, não precisam de lhe ler os livros. Agora, o dinheiro já não lhe faz falta. O guito para o pão, para matar a fome dos filhos e a sede do fígado, o pilim que cravou a tantos ao longo dos anos. Mas quem ficou a dever-lhe mais? Os senhores professores que agora emitem opiniões sobre a importância da sua obra. Emitem, repetem, o filme foi visto tantas vezes. Ninguém aprecia ser visto em más companhias; um homem não é sua obra - é a sua vida. Repito eu, que não o conhecia, e vamos aguardar o que virá, futuras edições respigando os restos, e nada lhe irá parar ao bolso. É assim a morte. Mais triste do que a vida (e se ela consegue ser triste!)

[Sérgio Lavos]

Boca do Inferno

Escrever sobre o livro de Ricardo Araújo Pereira é pouco sensato; primeiro, porque o juízo do público já o colocou num patamar acima de qualquer crítica; segundo, porque Miguel Esteves Cardoso já o leu (e quatro vezes!) e antecipou-se a este texto; terceiro, porque qualquer texto que eu escreva sobre as crónicas do humorista arrisca-se a fazer figura de parente pobre ao lado de... qualquer crónica que apareça no livro recenseado. No fundo, escrever sobre o livro de Ricardo Araújo Pereira é como dançar sobre artesanato (parafraseando um conhecido fenomenólogo e estudioso dos rituais de acasalamento galináceos de que agora não quero recordar o nome).

O que resta, então, fazer? Continuando na técnica de fragmentação de um texto em pontos (tão fácil, tão fácil), deixar o livro descansado, depois de todo o esforço físico que fizemos para chegar ao fim do livro (rir cansa todos os músculos do corpo, ó se cansa); ou pegar na obra e tentar mostrar por outras palavras, diferentes e necessariamente mais fraquinhas do que as de Araújo Pereira, por que razão Boca do Inferno não é apenas mais um livro de crónicas escrito por um humorista – no meio da enxurrada de tentativas pouco sérias de fazer humor que, nos últimos anos, tem inundado as livrarias.

Decidi-me a fazer nenhuma das duas acima. Nem fiquei quietinho a um canto, pensando em todas as boas piadas que eu gostaria de ter escrito em vez do sacaninha de cabelo rapado, nem me atirei à vaca fria, encetando um vão ensaio para uma hermenêutica do humor pereirano. Será que há por aí professores de literatura que queiram levar a cabo tal tarefa? Não é difícil, e sempre seria coisa produtiva, irritar mais a azia crónica de Vasco Pulido Valente - “não gosto, não li, o Eça de Queiroz é muitas vezes superior, assim como um fulano que eu conheci em Oxford e limpava retretes no intervalo dos livros que escrevia”.

Uma crónica tem de ter técnica (e recuso-me a tentar produzir uma metáfora futebolística). Uma crónica tem de ter estilo. Uma crónica tem de conseguir conciliar técnica e estilo – ou o estilo será uma conjugação feliz de todas as boas regras da técnica? Não li suficientemente sobre o assunto (sim sou um leigo); para dizer a verdade, não li nada. Nem me apetece pensar um pouco sobre o caso, debruçar-me, correndo o risco de cair do parapeito, sobre o tema (e aí vão três sinónimos em três frases seguidas). O que me interessa, simplesmente, firmemente, é que o texto consiga atingir o seu pressuposto inicial. E qual é o pressuposto inicial de um texto do Ricardo Araújo Pereira? Que o leitor acabe por fazer figura de parvo em transportes públicos. Eu explico, em vários passos: primeiro, o leitor senta-se exactamente ao lado da loura de pernas descobertas e busto que podia estar mais encoberto (se fôssemos o João César das Neves). Que hajam não sei quantos mais lugares vagos na carruagem, é um pormenor. Segundo, retira (ou tira, segundo algumas versões) da mala um livro que não é o último do Miguel Sousa Tavares. Se ainda não tinha percebido, eu explico-lhe: você, caro leitor, está sentado ao lado de uma mulher que poderia ser a futura mãe dos seus filhos a ler um livro escrito pelo Ricardo Araújo Pereira. E, passados poucos segundos, a primeira gargalhada. Não ligue ao olhar de reprovação da loura. Desconfie antes quando ela se levantar e dirigir-se ao lugar no lado oposto da carruagem. E aproveite para tirar partido da sua figura ao máximo: revire os olhos, convulsione (existirá, este verbo), soluce, deixe que as lágrimas assomem aos olhos (bela imagem, de uma poeticidade intensa). Está feliz? Não, caro leitor, está fazer figura de parvo.

Quem me conhece sabe que quando me dou ao trabalho de explicar por que razão gosto de alguma coisa, o efeito atingido é necessariamente o oposto do pretendido; se digo: leiam autores nórdicos e vejam cinema europeu, sei que estou a convencer o meu interlocutor a embrenhar-se nos labirintos de Jorge Luis Borges e a passar umas boas horas a ver westerns da era clássica de Hollywood; o que me deixa satisfeito, porque no fundo era isso que eu pretendia fazer ao início. Conheço-me bem demais (já me aturo há trinta... hum, vinte e dois anos), por isso reitero: não leiam Boca do Inferno. A sério, sabiam que o Miguel Sousa Tavares publicou um livro há pouco tempo?

(Sabiam que este texto não é inédito, já foi publicado noutro blogue?)

[Sérgio Lavos]

06/01/08

Luiz Pacheco (1925-2008)

Morreu Luiz Pacheco, que não era libertino, nem libertário, repetiu-o muitas vezes. Insistiam nisso, e ele sempre negou. O "toma" que ele aparece a fazer numa das fotografias mais conhecidas é dedicado ao país em que viveu. O anti-autor, o anti-resistente, o homem que poderia ter sido, mas não foi. No seu tempo, escrevia como poucos, meia-dúzia que também já desapareceu. Neste tempo, ninguém escreve como ele, no seu modo de adiar a literatura, escrever apenas pelo gesto, a estética da escrita. Sem pedir consagrações ou honrarias, prémios ou idolatrias. Deixou pouco, escreveu o que conseguiu escrever - porque escrevia apenas o que a sua liberdade permitia; nunca o que os outros esperavam dele; e os outros nunca esperaram muito dele. Se resistir, deverá isso à literatura. A vida não lhe podia exigir mais nada.

[Sérgio Lavos]

04/01/08

Mais uma ou duas coisas

Agradeço a inclusão (fala-se tanto disto, nos dias que correm) do Auto-retrato nas listas anuais ao Irmão Lúcia, ao Duelo ao Sol e ao Estado Civil (não detectei, felizmente, mais nenhum). E como parece que fiz mais um amigo, caro Tiago, podes tirar o cavalinho da chuva - isto é, ninguém pode evitar que continues a sonhar com a Susana Lavos; permito, inclusive, que leias os textos dela. Mas a tua imaginação bem pode parar aí. Usa as tuas mãozinhas - escreve para o blogue.

[Sérgio Lavos]

P.S.: Custava muito deixares um link permanente nos posts? Julgas que és o Pacheco Pereira, ou quê?

Coleccionismo para totós (2007 revisto)

Não há razão para pânico ou histerias. Não vale a pena correr a esconder para debaixo da mesa mais próxima, vender todas as acções em desespero ou deitar a toalha ao chão. As coisas mudam, mas nem sempre mudam para muito pior.

A situação aconselha prudência. Miguel Pais do Amaral vai compondo o ramalhete de editoras, qual apaixonada coleccionando declarações de pretendentes; os editores em pré-reforma engordam a conta bancária, embarcam na aposentação dourada para a qual trabalharam toda uma vida. (E quem os pode censurar, verdadeiramente?) Quem sobra nesta história de demandas quixotescas, negociações ferozes, batidas com a porta por parte de editores, lacrimejar de donzelas ofendidas, lamentações, choro e ranger de dentes?

Meus amigos, quem vai sofrer, quem já começou a sofrer, são as centenas de pessoas que foram e irão para as ruas durante os meses que se avizinham. A concentração empresarial e o monopólio têm o sabor de um whisky velho para quem vai enriquecendo e o gosto amargo do fel para quem desespera perante a possibilidade de desemprego. Não há razão para pânico ou histerias? Quem por lá tiver de passar, passará, alguém acha que pensa de modo diferente quem trata da vida de pessoas como se fossem “peanuts”? O caridoso coração de Pais do Amaral estremece ao ouvir os rumores de que um negócio gigantesco, no espaço de um ano ou dois, se prepara, entre ele e a Bertelsman. De bom-grado o empresário se dispôs a fazer o jogo sujo de angariar, cortar a eito (património, capital, pessoas) e depois compôr tudo muito bem composto para oferecer, em belo bouquet feito de prémio Nobel e do mais importante escritor de língua portuguesa (palavras do próprio), ao noivo alemão que colecciona editoras pelo mundo fora.

Falando claro: nenhum leitor exigente perderá com a concentração editorial. Haverá sempre espaço no mercado para projectos que visam editar primeiro por gosto. As notícias sobre a estagnação do mercado da edição são manifestamente exageradas; nos últimos anos são muitos as editores que realmente trouxeram algo de novo ao mercado (A Cavalo de Ferro, a Livros de Areia, A Ovni, todas as minúsculas editoras que continuam a albergar a poesia, como a Averno), e houve também a renovação de algumas editoras que já eram manifestamente importantes no mercado português, como a Assírio & Alvim, a Cotovia, a Fenda. É verdade que nos últimos tempos a vida dos pequenos editores não tem sido fácil: a entrada das grandes superfícies, incluindo a FNAC, no mercado, e a expansão dos grupos livreiros levou a que o poder de negociação destes últimos junto dos editores aumentasse exponencialmente, o que se traduziu em margens de comercialização bastas vezes incomportáveis para os editores. Mas também é verdade que a única razão para os livreiros terem conseguido forçar os descontos pretendidos foi a falta de um entendimento entre editores, foi a inexistência de uma associação de editores forte e unida, disposta a defender o dumping praticado pelas grandes superfícies. A lei do preço fixo seria uma óptima medida, se não vivêssemos em Portugal. Mas como a regra por cá é contornar chico-espertamente a lei, tornou-se norma vermos nos hipermercados livros com menos de 18 meses de edição com descontos astronómicos, e ninguém acusa ninguém. A ASAE serve mesmo para quê?

Num meio editorial onde as editoras de referência num passado recente (Asa, D. Quixote, Caminho, Gradiva) convivem lado a lado com os abortos editoriais que se foram instalando no mercado durante a última década, é de esperar o pior. Não é que, por exemplo, a D. Quixote, se salvaguarde do descalabro dos últimos anos, desde a saída de João Rodrigues (agora, na Sextante, outro exemplo de um excelente projecto editorial). Quando colocam à frente das empresas gente formada em Escolas Superiores Comerciais com um currículo assinalável na direcção das cadeias Lidl, sabe-se muito o que se pretende: baixar a fasquia, baixar, até se acabar editando potenciais best-sellers pelos quais se pagam milhares à cabeça e que acabam por redundar em flops, e, deste modo, deixar de publicar produtos de qualidade e sucesso garantido, como é o caso, por exemplo, dos outros quatro livros de Carlos Ruiz Záfon que precederam o sucesso de A Sombra do Vento (inexplicável). Resultado: o desastre e a consequente venda a alguém que se orgulha de ler, agora e sempre, um livro apenas: o de cheques.

Esperamos o pior, mas alguém há-de ocupar o lugar de referência das editoras que se afundam. Se Lobo Antunes sair da D. Quixote, alguém o há-de publicar. Como a Luísa Costa Gomes. Ou José Saramago, da Caminho. Ou Gonçalo Tavares.

Seria tão bom se todos fizessem como Rui Zink, que ao primeiro sinal de deriva da D. Quixote (Carolina e C.ª) abandonou o barco, indo parar à Teorema (que, curiosamente, também foi vendida a um grupo de investidores de contornos, no mínimo, nebulosos). Pessimismo? Apenas para quem achar que editar é como somar números numa calculadora. Os bons continuarão por cá.


(Texto publicado inicialmente no Arte de Ler)

[Sérgio Lavos]

Ainda a crítica

Caro Francisco:

apesar de não parecer - parece, de resto, uma crítica muito séria - penso que João Bonifácio se refere a Manuel Gusmão, neste excerto, em termos, no mínimo, sarcásticos. O ponto dele é simples: se o Manuel Gusmão pode, e é elogiado por isso, também ele pode produzir "uma verborreia inenarrável de referencialidade abusiva exclusivamente centrada em maus poetas e escrita apenas e só para gáudio onanístico de um pequeno salão de medíocres." Ou não? Ou o que Manuel Gusmão escreve é mesmo decisivo para o entendimento e consequente compra do livro recenseado? Lá beleza tem, sem dúvida - e ele, sem ironia, é um grande poeta. Mas adequar-se-à ao meio - um suplemento de jornal - em questão? É que, vamos lá ver, o outro exemplo citado, o Pedro Mexia, é o oposto, em estilo, em influências, do Manuel Gusmão - escreve claro, sem rodriguinhos de subjectividade e sempre a tentar escapar a qualquer referencialidade nebulosa; capaz de, imagine-se, falar da história que um romance conta ou, pior ainda, referir dados biográficos quando fala do autor do livro. Em que pé é que estamos? Poderá um crítico musical escrever como um poeta sem cair no ridículo?

(Não sabia que o "entusiasmo" se pode fingir?)

[Sérgio Lavos]

03/01/08

A melhor época das listas



Poderia concordar ou discordar com tantas listas, não trago nada de novo. Como Jim Jarmusch disse, todo o cinéfilo gosta de listas e estamos na época delas. Poderia falar dos melhores filmes de 2007, de Half Nelson ou Inland Empire, das músicas que mais ouvi, dos Beirut ou dos LCD, do melhor vídeo, dos Battles, das melhores séries para um serão em família, House ou Dexter, mas prefiro voltar a eles, aos Radiohead. Para além do mais, têm novo vídeo ainda do ano velho. Nude.
Até poderia falar da maior surpresa, do que nunca me passaria pela cabeça vir a acontecer, ouvir as palavras de David Lynch sobre criação artística e meditação transcendental.

[Susana Viegas]

02/01/08

O sentido da vida

Dos 5, só vi um. Um, apenas. Apenas um. Os melhores 5. Um, apenas. Vou meditar enquanto dou umas baforadas.

[Sérgio Lavos]

Anúncio ao público

Atenção! Atenção! O Alexandre Andrade respondeu ao desafio dos 5 filmes da vida. Vou ali e já venho, fumar um Habano no café da esquina (que se lixem os geninhas!).

[Sérgio Lavos]

Eu, pecador, me confesso

Nos últimos tempos, tenho-me comovido por tudo e por nada. A sério. Comovo-me com filmes, com gestos públicos de afecto (essa palavra tão cara a pedopsiquiatras), com a caridade dos outros pelos outros, comovo-me. E comovo-me porquê? Porque tenho sentido bastante carinho por parte de 70 por cento da população portuguesa, e isso não é, de maneira nenhuma, desprezável. Imaginem, 70 por cento! (O uso do ponto de exclamação deve ser bem ponderado, empregue apenas em ocasiões excepcionais, como esta). Setenta por cento de portugueses que se preocupam, que pensam em mim, quem sabe se todos os dias, olham para mim com olhinhos de piedade quando me vêem na rua, quando me sento nos cafés, abandonado, adormecem a pensar em mim e no meu futuro, meu Deus, na minha saúde. Como não comover-me? Conheço gente que por muito menos chora a toda a hora. Eu nem por isso, sempre fui poupado no gasto de tal líquido (não noutros, não noutros). Não choro. Mas comovo-me. Como não me comover com tão grande acto de benevolência, de caridade, de altruísmo cristão, raríssimo nos nossos dias? A grandiosidade dos que me comovem é tanta, o amor que sentem por mim é tão grande que conseguiram convencer o Estado a pensar em mim, a cuidar de mim, a olhar por mim, velar pelo meu futuro, e o dos meus descendentes, ameaço agora mesmo chorar, eu choro mesmo. Eu que nunca me comovo, agora entro num café e olho para aquele sinal vermelho e quase choro; desfaleço, tremo, sacudo-me como se chovesse cá dentro. Quando me sento, derrotado por tamanha bondade, compungido por tal consideração, quase que não consigo pedir a bica do costume, o croissant, a meia de leite. Sinto as lágrimas a vir, mas contenho-me. Tanta filantropia merece o respeito de alguém que não devia ter tanto; por isso, comovo-me mas não choro; vacilo mas aguento-me, como um forcado perante o touro. Não choro. Mas comovo-me. Aquele sinalzinho, "Proibido Fumar", deixa-me quase de rastos. As pessoas gostam de mim! Portugal gosta de mim! O Mundo gosta de mim! E eu tento não chorar com tal gesto de bondade. Obriguem-me, isso, obriguem-me a não fumar, protejam-me das tentações do Demo, protejam-me, por favor, de todo o mal; eu, pecador, me confesso! Por favor, preguem os avisos contra o tabaco à porta de casa, espalhem tabuletas por toda a cidade, instiguem a criação de uma Inquisição anti-tabaco! Obrigado por tanto amor, tanto, tanto! Em troca, apenas posso dar uma certeza: não vos incomodarei mais com o fumo; e se o fizer, podem deixar de falar comigo, dizer mal de mim nas costas, virarem a cara quando me virem entrar com o ar macilento do pecado. Talvez não mereça o vosso amor, a preocupação, o afecto. Mas mereço ser banido se algum dia cair em tentação. Punam-me!

[Sérgio Lavos]