29/12/11

Livros do ano (4)

Puta que os pariu! 
O livro de que o Portugal de hoje precisava, a longamente esperada biografia de Luiz Pacheco, por João Pedro George.
Não serão assim tantos a recordar o escritor e editor e tudo. Viveu mais do que a maioria de nós, cada ano espremido e gozado até ao limite? Ou foi um proscrito por vontade própria, imune às tentações do bem estar burguês e da mediocridade de uma vida plana? Um miserável, um excêntrico hipocondríaco, um falhado que nunca chegou a cumprir o seu desígnio maior, a mais clara ambição, ser romancista? O pedinte, o sem abrigo - como a moralidade caridosa chama a quem decide viver, ou para isso é empurrado, na rua -, o pai de muitos de quem nunca soube cuidar, porque para ter uma "família" é preciso ceder ao impulso do conforto material, às regras sociais que ele tanto fazia por quebrar, o mau marido e péssimo gestor de vida (a linguagem tecnocrata dos nossos dias tem rótulos para estas coisas), o rapaz traumatizado por um pai distante e uma mãe galinha, crescido entre a riqueza relativa e o abandono; o funcionário público que trabalhava num organismo do Estado Novo ligado à censura, durante anos e anos batendo a continência a homens piores do que ele, até que o grito "Puta que os pariu!" teve de impor-se, e ele se tornou aquilo que talvez ambicionasse desde que abandonara a casa onde crescer: um libertino marginal, como tantas vezes lhe perguntaram nas entrevistas da última vintena de anos, dadas ou vendidas ao sensacionalismo suave de um jornalismo cultural que procurava avidamente o seu "louco", o que se expunha, o que dizia mal, o que se estava a borrifar para as meias tintas da sociedade portuguesa e do mesquinho meio cultural português. Um libertino marginal, repete-se a pergunta? Nunca, e o ziguezague de Pacheco ao longo dos tempos, entre a aceitação da categoria maldita e a recusa, prova que era tudo folclore, fogo-de-artifício, ignorância de quem o entrevistava.
Luiz Pacheco era tudo isto, claro, mas não era. Era quem queria ter sido, e passava fome e mendigava e vivia como muito bem entendia. A biografia de João Pedro George não pretende chegar a conclusões, apesar de um ou outro aparte sociológico que talvez fosse desnecessário. Mas é provável que eles apareçam por força da circunstância desta obra ter surgido a partir da escrita de uma tese de doutoramento em Sociologia - a depuração que certamente o trabalho académico sofreu na passagem para a edição comercial poderia ter ido mais longe. Mas isto é um pormenor. O livro de João Pedro George é exaustivo, bem escrito, obsessivo. E a admiração que o biógrafo poderia sentir pelo escritor parece a cada passo ser toldada pelo rigor da verdade - o que, neste caso, obriga a que pouco seja omitido. Caramba, uma biografia é uma biografia, terá de ter a ambição de contar tudo. Por isso, o fôlego deste trabalho é, e sem querer fugir ao lugar-comum nestas situações, uma pedrada no charco, uma agulha no palheiro, uma raridade absoluta. Nada a ver com as croniquetas de rainhas e princesas que agora se tornaram moda, escritas com os pés por gente que nem o significado da palavra iliteracia conhece. Um género nobre nos países anglo-saxónicos de que seria bom haver réplicas no nosso pobre meio editorial. 
Quem era Luiz Pacheco? Um homem que o Portugal de hoje não merece. E, para dizer a verdade, o do tempo dele também não. O homem que diria a esta tenebrosa turba que nos governa e à mancha de mediocridade que a rodeia "Vão para a puta que os pariu!".

Puta que os Pariu! - a Biografia de Luiz Pacheco, de João Pedro George, editado pela Tinta da China.

28/12/11

Filmes do ano (3)

Uma das coisas que me divertem - provavelmente porque gasto demasiado do meu tempo em desnecessárias inutilidades (e claro que há inutilidades necessárias, mas isso é outra vindima) - é espreitar os comentários dos espectadores no Cinecartaz do Público. Depois de ver os filmes, por princípio; que nunca uma opinião me faça alterar o fundamento dos meus preconceitos. Há umas semanas, fui ver um filme que declaro, desde já, ser fabuloso: O Tio Bonmee Que Se Lembra Das Suas Vidas Anteriores. Não vale a pena queixarmo-nos da extensão do título em português; em tailandês é ainda mais extenso e certamente mais impronunciável, quase tanto como o nome do realizador desta obra: Apichatpong Weerasethakul. Certamente que todos se lembrarão que este filme ganhou a Palma de Ouro do ano passado e que esta decisão foi um incómodo para muita gente. Em concreto, recordo uma polémica nas páginas da Sight & Sound. Que o filme era demasiado hermético, lento, inacessível. Ora bem, o filme é seguramente hermético, lento, pouco acessível. Mas esta análise revela de forma mais decisiva os preconceitos e as limitações de quem a faz do que esclarece exactamente que objecto é este. A verdade, subjectivamente falando, é que o filme é uma experiência sensorial do outro mundo, uma viagem psicadélica entre tempos e espaços, uma provocação aos limites da verosimilhança extraordinariamente arrebatadora. Vivemos - nós, que apenas vemos imagens, sombras no ecrã - entre fantasmas, os fantasmas que visitam o tio Bonmee enquanto ele vai morrendo. E a morte, aqui, não é um abismo, não é um corte violento nem um nó dramático, à maneira do cinema ocidental. Não conheço o suficiente da cultura tailandesa para poder especular sobre a filosofia zen que motiva Apichatpong. Sei que a morte - e a vida, sobretudo a vida, a dolorosa preparação para a morte - não é o mesmo vulto negro do filme de Bergman, por exemplo; é um acidente, uma aceitação, uma desolação serena. Os espíritos da natureza, a irmã morta, o filho desaparecido em busca da alma que as fotografias roubam, o quotidiano pacífico de uma plantação, o ritmo das colheitas, o sol e as sombras da floresta. Um mundo afastado do mundo, do ritmo da cidade que é incrivelmente condensado naquela cena final em que uma família (que inclui um jovem monge budista que foge do silêncio do mosteiro) olha concentrada para um televisor num quarto de hotel, a realidade fora da realidade que acabámos de viver durante duas horas. Tudo desapareceu, com o desaparecimento de Bonmee, a derradeira viagem de regresso ao útero materno, a gruta inicial.

O Tio Bonmee que se Lembra das Suas Vidas Anteriores, de Apichatpong Weerasethakul, com Thanapat Saisaymar, Jenjira Pongpas e Sakda Kaewbuadee. 

26/12/11

Livros do ano (3)

"DECLARAÇÃO DE INTENÇÕES

Para aqueles que insistem diluir
isto que escrevo aquilo que vivo
é mesmo assim, embora aluda aqui
a requintes que com rigor esquivo.

À língua deito lume, o que invoco
te chama e chama além de ti, mas versos
são uma disciplina que macera
o corpo e exaspera quanto toco.

Fazer poesia é árido cilício,
mesmo que ateie o sangue, apenas pus
se extrai, nem nunca pela escrita

um sólido balança, ou se levita.
Então sobre o poema , o artifício,
a borra baça, a mim a extrema luz."



Mulher ao Mar, de Margarida Vale de Gato, ed. Mariposa Azual (2010)

25/12/11

Filmes do ano (2)

George Clooney aprendeu com os grandes mestres do filme político - Alan J. Pakula, Sidney Pollack, o Coppola de The Conversation. E o que colheu nestes filmes - a paranóia, o gosto pela construção das personagens, a sensibilidade que transforma histórias vulgares nos meios políticos em obras sobre a miséria da alma humana - as peças políticas de Shakespeare são, devem ser, a matriz deste género cinematográfico - é usado com uma sabedoria formal assinalável. O sentido de ritmo de Idos de Março é a correia de transmissão de um argumento inteligente e complexo. Começamos a meio de uma campanha eleitoral para a presidência, ainda na fase das primárias democratas (há ecos de Taxi Driver nestas sequências iniciais). Há um candidato que parece ser mais idealista - Clooney - e os seus dois assessores, desempenhados por Philip Seymour Hoffman (o experiente, vagamente inspirado, até fisicamente, no sinistro Karl Rove, antigo conselheiro de Bush Jr.) e Ryan Gosling, o novato, a quem todos auguram um futuro brilhante. Gosling, o idealista, que trabalha para o candidato por concordar com muitas das suas ideias políticas. Mas a política é suja, não pode haver nela lugar para idealismos. A trama adensa-se quando surge uma jovem apoiante (a excelente Evan Rachel Wood) que seduz Meyers (Gosling). Sexo, poder, controlo. Tudo o que a política é, o mundo de sombras a que Meyers queria escapar, a sua essência. A composição de Gosling é certeira, perfeita - o olhar do jovem idealista transforma-se, torna-se cínico e frio, vingativo. E o filme torna-se grande com esta metamorfose. Ninguém está a salvo.

Idos de Março, realizado por George Clooney, com Ryan Gosling, George Clooney, Philip Seymour Hoffman, Evan Rachel Wood, Paul Giamatti e Marisa Tomei.

24/12/11

Livros do ano (2)

"Uma linha extremamente ténue separa esta «humanização» de uma aquiescência resignada com a mentira como princípio social: neste universo «humanizado» é a experiência íntima autêntica, não a verdade. No final de The Dark Knight, de Christopher Nolan, filme que também «humaniza» o seu super-herói, apresentando-o cheio de dúvidas e fraquezas, assistimos à morte do novo procurador judicial Harvey Dent, um feroz perseguidor das máfias que sucumbiu à corrupção e se tornou culpado de vários homicídios. Batman e Gordon, o seu amigo polícia, pressentem o golpe que a moral da cidade sofreria se os crimes de Dent viessem a ser conhecidos. Por isso, Batman convence Gordon a preservar a imagem de Dent declarando que o responsável pelos seus crimes é Batman. A necessidade de perpetuar uma mentira a fim de proteger a moral da população é a mensagem final do filme: só uma mentira pode salvar-nos. Não admira, pois, que, paradoxalmente, a única figura verdadeira do filme seja o Joker, o vilão por excelência. O objectivo dos seus ataques terroristas a Gotham City torna-se claro: os ataques só serão interrompidos quando Batman arrancar a sua máscara e revelar a sua verdadeira identidade. A fim de impedir este desfecho e de proteger Batman, Dent declara aos jornais que Batman é ele - uma nova mentira. Do mesmo modo, outra mentira tem ainda lugar, quando, para ludibriar o Joker, Gordon encena a sua morte (fingida)."

Viver no Fim dos Tempos, Slavoj Zizek, tradução de Miguel Serras Pereira, ed. Relógio d'Água.

Filmes do ano (1)

Um melodrama inscrito na linhagem de David Cronenberg e Michael Mann. Ryan Gosling e Carey Mulligan em dois grandes papéis. Não é um filme perfeito: dispensava-se o excesso de câmara lenta, a contemplação exibicionista de Nicolas Winding Refn. Mas vale pela perseguição de carros e pela fabulosa sequência inicial, pela tensão acumulada, pelo desempenho dos actores. O prémio de realização em Cannes traz atrás de si um rasto de polémica, mas, para minha surpresa, confesso, o filme tem muito mais qualidades do que defeitos. Um realizador a seguir.

Drive, de Nicolas Winding Refn, com Ryan Gosling e Carey Mulligan.

23/12/11

Livros do ano (1)

"Quando nascemos, alguma divindade marca com uma cruz preta o nosso nome e a partir daí a vida não dará tréguas, não encontraremos senão obstáculos, chacota, ciladas, e teremos de suar a mais pequena alegria, remando, lutando contra a corrente, vendo os afortunados a deslizar na margem, de trunfo na mão, e sem nos permitirem a menor distracção, pois é isso que se espera de nós, que cedamos um instante ao desânimo para que a arma penetre até ao cabo."

Prosas Apátridas, Julio Ramón Ribeyro, tradução de Tiago Szabo, ed. Ahab.

20/12/11

recado

ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte


vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer -- vai por esse campo
de crateras extintas -- vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite


deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo -- deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração -- ouve-me


que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna -- o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite


não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira -- não esqueças o ouro
o marfim -- os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço

Al Berto, em Horto de Incêndio, ed. Assírio & Alvim. Encontrado aqui.

16/12/11

Christopher Hitchens (1949-2011)

Depois de Nietzcshe, mais um ateu famoso que morre antes de Deus. Christopher Hitchens. Mas não a verve, a veia de polemista, o apurado gosto, a ferocidade do crítico. Os seus textos, as aparições na televisão. Os livros. Sobretudo, Deus Não é Grande, manifesto ateísta dominado por uma pulsão provocatória que ultrapassa demasiadas vezes a racionalidade argumentativa. Hitchens, como muitos ateus, era um militante, um crente. E, como muitos crentes, era um fundamentalista. Confudiu fé com religião, a imaterialidade da primeira com os erros das instituições que servem a segunda.

Pormenores. A inteligência do crítico e o arsenal retórico de que abusava em discussões muitas vezes pareciam deixar à distância eventuais erros de julgamento. O que desculpamos a um homem equivocado é quase sempre uma medida da nossa própria sensatez. A Hitchens, desculpamos muito. Viver terá de se aproximar do que foi a existência dele. Um fogo-de-artifício breve, e depois o céu escuro. Para tanto, Deus não deverá ser chamado.

Cinco anos

Aqueles cinco anos, dediquei-os a esquecer
os dezoito anteriores. Uma questão de prioridades,
ou essa coisa de construir a personalidade
de que os manuais de psicologia falam.

Não sabia ser, talvez o que queria.
Os encontros e a fortuna fizeram o resto:
bastaram alguns meses para ter um rosto
que se distinguisse da multidão, o pormenor
que eu julgava ser diferente.

A roupa, a pose, e a poesia.
Uma imagem a defender em acaloradas discussões,
becos sem saída, e na dobra
dos dias um amor que recusava a sua
natureza provisória.

O fulgor da provisão e do engano,
rebater argumentos recusando ler
mais do que os livros da moda,
uma vontade de poder frágil
como a vida de um vitelo recém-nascido.

Mas a força, ah, a força da ignorância.
Não saber o que o dia traz,
o seu declínio, era imparável.
A imortalidade na ponta dos dedos
que agarravam a manhã nascendo, o álcool

refazendo o seu percurso,
cumprindo a sua missão,
permitindo o esquecimento.

Foram cinco anos que se multiplicaram
pelo corpo dentro; não soube reconhecer
a primeira derrota. Todas as que se seguiram
trouxeram uma nova forma de evitar a vida:
escrever sobre ela, como se eu não lhe pertencesse,

um fantasma correndo sobre a tela.

15/12/11

Ulysses (5)

Ainda ando por lá. Como era de prever, demoro mais tempo do que tinha pensado. O tempo e a sua relatividade não são para aqui chamados; mas passados dois meses, não serei o mesmo. Contudo, passou apenas meio dia em Dublin - e várias linhas narrativas se cruzaram, avanços e retrocessos, memórias e devaneios, caos ordenado pelas frases perfeitas de Joyce. A ordem nasce do rigor sintáctico. Do ritmo das frases, da fonética. O sentido é por vezes incerto - ou assim parece ao leitor, a quem não vive dentro da cabeça do narrador - mas o texto nunca deixa de respirar, de fluir. Frases curtas, onomatopeias e canções. E os diálogos, resgatando da abstracção o texto, dublinescos, verdadeiros.

14/12/11

W.G. Sebald e George Whitman

O escritor alemão morreu há dez anos, num acidente de carro perto de Norwich. George Whitman é seguramente menos conhecido. Americano expatriado, amigo da geração beat, fundador da mais bela livraria do mundo, a Shakespeare and Company. Tinha noventa e oito anos, e, até ao dia derradeiro, leu. Whitman era uma relíquia de outros tempos e a livraria que ele criou, em 1951 (primeiro com um nome de mulher, Mistral, o seu primeiro amor), uma ilha no meio do negro mar em que se vai transformado o negócio dos livros. Tratar o livro como mais do que um objecto que passa de mão em mão a troco de dinheiro é um luxo em vias de extinção. Entrar numa livraria e não sermos invadidos por uma maré de produtos a que, por comodismo, se convenciona chamar "livro", uma raridade. 
Sebald era também um bibliófilo. Um amante do conhecimento. O acaso quis que os dois morressem no mesmo dia, dez anos a separar as duas mortes. Por conveniência do destino, um epitáfio comum, de dois homens que talvez se tivessem conhecido e que certamente terão muito a conversar, caso se reencontrem. Num mundo onde as conveniências dos tecnocratas se tornaram lei, é preciso celebrar gente assim. Nunca foram muitos. Vão sendo cada vez menos. Os resistentes.

O que este país precisa

Dos tomates e do sentido de liberdade de Luiz Pacheco, em vez desta "apagada e vil tristeza".

12/12/11

FCSH 1993

Lembro-me dele,
dormindo na última fila de Inglês I,
recuperando as horas perdidas
na Feira da Ladra das quintas,
vendendo discos, CD's, cassetes de vídeo porno.

Por vezes, acordava e dizia qualquer coisa
vagamente sábia - era mais velho do que a maioria,
voltara aos estudos, como então se dizia,
mas trabalhava, trabalhava como poucos de nós -

precisávamos de estar por ali, faltando à faculdade,
fumando cigarros no pátio onde alguns anos depois montaram uma feia
esplanada com cadeiras de plástico e chapéus de sol veraneantes,
precisávamos de sair
ir à Gulbenkian, deitar na relva
esticados ao sol, olhando o tempo retroceder por força da inércia,
e depois ler todos os livros de que não precisávamos,
sem subversão nem revolução, apenas
alguma preguiça, ter um livro para ler
e não o fazer, dormir até ser tarde demais,
adiar a derrota -

e ele andava a comprar discos para os vender
na Feira e a alguns de nós nas aulas.

Por vezes, eu visitava a banca, aos Sábados,
comprava-lhe bandas, músicas, motivos
para esquecer, gostos emprestados.

Ainda estão para ali, e ouço-os talvez mais
do que ouvia na altura.

Anos depois, soube que se tinha
perdido numa estrada a caminho do Sul,
uma curva, um metro a mais, desolação.

A morte é a memória de um rosto
que se vai perdendo, um breve relâmpago.

Uma banalidade tremenda.
Vale a pena?

05/12/11

Encontro

Roubo ao passar por ele, grave decisão,
a dignidade da solidão,
e recolho-o em minha casa,
decidido a derrotar a miséria humana
e todos os seus reclusos, a quem os pontapés
que a vida dá deixaram de doer, e as feridas
comidas pelos animais traidores
que em tempos lhe fizeram companhia
parecem cintilar, cicatrizando,
promessa de absolvição.

Grande história, a que lhe contaram os pais -
no seu berço ouvia mentiras e acreditava nelas,
preparava-se para aquilo a que se chama maturidade,
o desprezo da vida adulta, intermitente
e carcomida pelo medo e pela hesitação,
a sombra de uma derrota como um cão
mordendo as pernas.

As mentiras, rosto do conforto familiar -
narrativas, livros, fieis depositários de um grandioso engano -
os sorrisos disfarce, demónios entrando pela pele,
percorrendo o sangue e saindo em golfadas pela boca.
Antes vinho, carrascão,
bebido na companhia amena dos outros desterrados,
almas penadas encostadas às esquinas das ruas
cravando ao próximo alguns minutos mais de esquecimento,
tocando o frio da calçada, na radiosa celebração da bebedeira.

Deixai-me efabular sobre o desconhecido
a quem nunca guardei, e acreditar que na recusa,
e  na vergonhosa metáfora de um poema,
vencerei a morte e a sua finta, jogador medíocre
a quem a sorte soube dar o merecido destino.

Não tenho direito a gravar nesse nome a minha cruz -
a luz de um novo encontro é breve, e a manhã tarda.

04/12/11

Melancolia (mas da parva)

Lars von Trier conseguiu. Outra vez. Criar um mastodonte pretensioso, caricato e obcecado com o seu próprio umbigo. Melancolia é tudo isto em tons sépia, como convém num filme sobre o fim do mundo - ou lá o que é -, uma obra sobre cortar os pulsos que quase nos impele a isso. Desprovido de subtilezas - mas o realizador nunca se preocupou com isso -, repetindo temas anteriores, um grito na cara do espectador com a densidade filosófica do correio sentimental da revista Maria. 
Em tempos, gostei de Ondas de Paixão - mas admito que, se eu o revisse, talvez mudasse de opinião. Dogville é excelente, por conseguir chegar a um nível de abstracção que o transforma num objecto que reflecte sobre a sua própria importância, um ensaio metaficcional sobre o mal e as suas consequências, uma obra conceptual sobre os limites da artificialidade e do naturalismo da representação cinematográfica. O contrário de Dogville é Melancolia: indigesto e farto, depósito de citações de pintores - Pré-Rafaelitas, Românticos alemães -, uma espécie de paródia involuntária ao cinema da contemplação metafísica - como se fosse um Malick de quinta categoria ou um Tarkovsky superficial, sem espessura - e manifesto da neurose pessoal do realizador dinamarquês. Só se safa mesmo Kirsten Dunst, que parece ter conseguido fazer melhor figura que outras mártires do cinema de von Trier, como Björk ou Charlotte Gainsbourg (fraquíssima, o que é uma pena tendo a conta a linhagem da qual descende). 
A polémica do último festival de Cannes - o elogio provocatório e infantil a Hitler - é uma nota de rodapé, perante o desastre preguiçoso e auto-contemplativo que é Melancolia. Prémio de Melhor Filme Europeu do Ano? Não quero saber quem seriam os outros concorrentes...

Passarinhos e melancolia

Virginia Astley, From Gardens Where We feel Secure. É o único álbum em casa. Piano, flauta, oboé e sons da natureza. Coros virginais. O chiar de um baloiço. Balir de ovelhas. Música melancólica para dias cinzentos, não tão perto do new age que não justifique o incondicional amor. 
Os sons recriam imagens, ligações do inconsciente. O filme de Peter Weir, Piquenique em Hanging Rock. As meninas do colégio privado que se perdem na Natureza. Sinos na distância, a chamada para a missa de Domingo. A igreja de infância? Não, essa era clara, caiada, plena de Verão; arraial com foguetes e alegria. Igrejas inglesas, perdidas na neblina. Os Cinco no campo inglês. Os contos de Arthur Conan Doyle, especialmente o Cão dos Baskervilles - english marshes. A outra Virginia, a de As Ondas. As caminhadas de Sebald no meio de ruínas. A perda e o esquecimento. A recuperação da memória, emergir do passado. Um pulmão de aço. Como na música dos Radiohead. Ordem no caos.

02/12/11

Sudden

Jeff Wall em Santiago de Compostela. E eu não estou lá.

Deriva

Andar à deriva poderá parecer uma imagem poética, ou pior, o destino de um romântico. Mas na realidade é um lastro pesadíssimo. Terá de haver método na viagem, uma perda estruturada, uma certeza. Uma deriva com um rumo traçado.