Qual era a pergunta? Se Control fosse um filme sobre um zé-ninguém em vez de ser um biopic sobre Ian Curtis, seria tão bom como dizem?
Primeiro, existirá algum juízo estético que seja virgem, separado de pré-conceitos e da experiência de quem escreve? Esqueçam, era apenas retórica.
Eu fui ver Control porque sim, os Joy Division, e em especial Ian Curtis foram decisivos no meu percurso pessoal. Eu, eu, eu. Não há capacidade, nem vontade, para escapar à aleatoriedade das escolhas. Se o Ian Curtis retratado por Anton Corbijn fosse próximo daquele que eu conhecia (imaginava), gostaria do filme; se não, não gostaria. Aconteceu o mesmo com Last Days - o Kurt Cobain tinha perdido, para mim, a aura que se criara em vida. Porque a criação de um mito tinha ficado irremedivelmente ligada à adolescência - e a idade adulta obriga-nos a matar os nossos ídolos. Kurt Cobain morreu muitos anos depois de ter colocado o cano da espingarda na boca - mas morreu. A diferença está na distância em relação ao tempo em que Curtis viveu. Nunca precisei de o matar porque nunca foi o meu ídolo. O que eu admiro é apenas a arte, a poesia e a música criada em conjunto com os outros Joy Division (mais os outros, parece, e a prova é a continuação como New Order).
Li alguns textos de gente que nem tinha uma especial admiração pela figura. Ajudam a distanciarmo-nos do impacto do realismo que perpassa do filme. Contudo, sabemos que o realismo é uma falsa questão. A intenção de Corbijn é, acima de tudo, esconjurar uma obsessão. Ele sim, teve de matar o seu ídolo (confessa-o em entrevistas). A frieza era improvável, a reflexão irónica impossível (ao contrário do que acontece em Last Days). O exorcismo envolve sempre uma carga emocional intransponível. As dificuldades de Corbijn passavam sobretudo por transmitir a emoção de uma memória em forma de imagens em movimento (as fotografias encenavam uma realidade, criavam o mito - e isso suspeito que Corbijn não queria). O método não se fundou numa recusa do percurso conjunto de Corbijn e Ian Curtis (reforço o nome do músico, o filme é sobre ele, a banda é mais uma peça do enigma, o enigma que cada Homem é sempre); a imagética está lá - o preto e branco urbano-depressivo, a gabardine, os cigarros, as ruas cinzentas de Manchester e Macclesfield, a poesia em voz-off (sim, sabemos que as letras de Curtis eram poesia), a loucura controlada da Factory. Mas o filme consegue elevar-se acima do poster de quarto de adolescente - há vida, sangue e tripas, choro e traição e amor. E acima, de tudo, confusão e perda. Irrealidade, alienação do mundo. Ian Curtis era isto? Sabemos que sim, são essas as nossas expectativas. Corbijn também conhecia as nossas expectativas. E com isso em mente, esforçou-se por destacar o homem da imagem que o mundo tem dele. O facto de ter decidido adaptar o livro de Deborah Curtis, a viúva atraiçoada, foi o clique que lhe conferiu a credibilidade necessária; haverá fãs que não lhe perdoaram. Fez muito bem, ninguém conhecia melhor Curtis do que a sua namorada de adolescência.
Não falei de cinema. Mas existem pormenores soberbos, claro, toda a gente sabe quais são: o traveling inicial; a simultaneidade de acontecimentos nos planos de conjunto (quando Ian e Deborah se conhecem, a entrevista com Annick); a paisagem devastada por onde Curtis passeia o seu desespero, a incrível sequência do suicídio, tensa, tensa até ao limite do insuportável, porque sabemos, sabemos, o que vai acontecer, e porque Samantha Morton é uma actriz fenomenal, e está muito bem acompanhada por um Sam Riley em esforço camaleónico de interpretação. O plano final, o fumo sobrepondo-se ao fundo natural, ali tão perto, tão perto do cimento cinzento do subúrbio. Factos que definem o filme, e que compensam um ou outro cliché a que Corbijn não consegue (ou não pode) fugir.
O filme consegue superar as intenções iniciais: é um biopic, mas tem uma ideia de cinema. As soluções encontradas não são circunstanciais, intensificam as ideias do autor. Sem referências, com pouca cinefilia, resta saber se Corbijn consegue criar uma marca de autor, como criou nos vídeos e nas fotografias. Por enquanto, Control chega. E sobra. Faz juz à singularidade grandiosa de Ian Curtis.
Primeiro, existirá algum juízo estético que seja virgem, separado de pré-conceitos e da experiência de quem escreve? Esqueçam, era apenas retórica.
Eu fui ver Control porque sim, os Joy Division, e em especial Ian Curtis foram decisivos no meu percurso pessoal. Eu, eu, eu. Não há capacidade, nem vontade, para escapar à aleatoriedade das escolhas. Se o Ian Curtis retratado por Anton Corbijn fosse próximo daquele que eu conhecia (imaginava), gostaria do filme; se não, não gostaria. Aconteceu o mesmo com Last Days - o Kurt Cobain tinha perdido, para mim, a aura que se criara em vida. Porque a criação de um mito tinha ficado irremedivelmente ligada à adolescência - e a idade adulta obriga-nos a matar os nossos ídolos. Kurt Cobain morreu muitos anos depois de ter colocado o cano da espingarda na boca - mas morreu. A diferença está na distância em relação ao tempo em que Curtis viveu. Nunca precisei de o matar porque nunca foi o meu ídolo. O que eu admiro é apenas a arte, a poesia e a música criada em conjunto com os outros Joy Division (mais os outros, parece, e a prova é a continuação como New Order).
Li alguns textos de gente que nem tinha uma especial admiração pela figura. Ajudam a distanciarmo-nos do impacto do realismo que perpassa do filme. Contudo, sabemos que o realismo é uma falsa questão. A intenção de Corbijn é, acima de tudo, esconjurar uma obsessão. Ele sim, teve de matar o seu ídolo (confessa-o em entrevistas). A frieza era improvável, a reflexão irónica impossível (ao contrário do que acontece em Last Days). O exorcismo envolve sempre uma carga emocional intransponível. As dificuldades de Corbijn passavam sobretudo por transmitir a emoção de uma memória em forma de imagens em movimento (as fotografias encenavam uma realidade, criavam o mito - e isso suspeito que Corbijn não queria). O método não se fundou numa recusa do percurso conjunto de Corbijn e Ian Curtis (reforço o nome do músico, o filme é sobre ele, a banda é mais uma peça do enigma, o enigma que cada Homem é sempre); a imagética está lá - o preto e branco urbano-depressivo, a gabardine, os cigarros, as ruas cinzentas de Manchester e Macclesfield, a poesia em voz-off (sim, sabemos que as letras de Curtis eram poesia), a loucura controlada da Factory. Mas o filme consegue elevar-se acima do poster de quarto de adolescente - há vida, sangue e tripas, choro e traição e amor. E acima, de tudo, confusão e perda. Irrealidade, alienação do mundo. Ian Curtis era isto? Sabemos que sim, são essas as nossas expectativas. Corbijn também conhecia as nossas expectativas. E com isso em mente, esforçou-se por destacar o homem da imagem que o mundo tem dele. O facto de ter decidido adaptar o livro de Deborah Curtis, a viúva atraiçoada, foi o clique que lhe conferiu a credibilidade necessária; haverá fãs que não lhe perdoaram. Fez muito bem, ninguém conhecia melhor Curtis do que a sua namorada de adolescência.
Não falei de cinema. Mas existem pormenores soberbos, claro, toda a gente sabe quais são: o traveling inicial; a simultaneidade de acontecimentos nos planos de conjunto (quando Ian e Deborah se conhecem, a entrevista com Annick); a paisagem devastada por onde Curtis passeia o seu desespero, a incrível sequência do suicídio, tensa, tensa até ao limite do insuportável, porque sabemos, sabemos, o que vai acontecer, e porque Samantha Morton é uma actriz fenomenal, e está muito bem acompanhada por um Sam Riley em esforço camaleónico de interpretação. O plano final, o fumo sobrepondo-se ao fundo natural, ali tão perto, tão perto do cimento cinzento do subúrbio. Factos que definem o filme, e que compensam um ou outro cliché a que Corbijn não consegue (ou não pode) fugir.
O filme consegue superar as intenções iniciais: é um biopic, mas tem uma ideia de cinema. As soluções encontradas não são circunstanciais, intensificam as ideias do autor. Sem referências, com pouca cinefilia, resta saber se Corbijn consegue criar uma marca de autor, como criou nos vídeos e nas fotografias. Por enquanto, Control chega. E sobra. Faz juz à singularidade grandiosa de Ian Curtis.
[Sérgio Lavos]
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