03/12/07

Livros

Da primeira vez a que assisti a uma queima de livros, não consegui salvar nenhum exemplar para a minha biblioteca pessoal. As capas já tinham sido rasgadas, milhares de corações amontoavam-se a um canto do armazém, esperando pela sua vez, aguardando que os atirassem para a pira infernal. Curioso, as palavras que outros produziram dão uma bela fogueira intelectual, fumo negro e tudo. Nas mãos dos funcionários diligentes, as páginas de Shelley, Shakespeare, Milton ou Henry James, ganham um valor combustível nada desprezável. Tudo arde - Hitler provou-o a seu tempo. Há aquela história do escritor a morrer de frio, que utiliza o manuscrito de 900 páginas do seu único romance para atear o fogo que o mantém vivo - quem disse que a literatura não pode salvar o mundo?
Os livros que eu vi morrer, sem possibilidade de intervenção, eram ingleses. Restos da editora Wordsworth que não tinham sido vendidos, clássicos em fase acelerada de desaparecimento. A editora faliu, mas por Inglaterra ainda se encontram à venda em muitas livrarias. Na altura, custavam, salvo erro, 500 escudos, duas libras. Não fiquei com nenhum exemplar, queria mais do que o miolo sem capa de um livro - não julgai o livro pela capa, é verdade, mas um livro a que falta uma das suas partes é um livro coxo, uma mulher sem atractivos físicos que a evidenciem do resto do género. Com o papel que ardia, morriam as minhas hipóteses de ler uma porção muito pequena daquela parcela de livros que Almada Negreiros dizia nos caber em vida. E vale sempre a pena acharmos que ainda vamos encontrar o livro que nos vai mudar a vida; começamos a ler cativos dessa fé.
Em Inglaterra, está a ser construído o maior depósito de livros não lidos no mundo; todos os livros esquecidos, assim como jornais e revistas, num só espaço, selado para todo o sempre. Em A Sombra do Vento, de Carlos Ruiz Záfon, há um equivalente ficcional a este espaço. O cemitério dos livros esquecidos, edições inteiras de inutilidades ou restos de preciosidades descatalogadas pelo gosto dos leitores. Entre destruir livros e armazená-los num não-lugar para todo o sempre, uma linha que se quebra. A notícia do Guardian é exaustiva: milhares de quilómetros no meio do nada, acumulando o nada que o resto do mundo não quis ler. A dimensão material dos objectos armazenados e a enormidade do conhecimento que o objecto livro guarda, somadas, criam uma espécie de buraco negro da sabedoria humana. Conhecemos bibliotecas assim - mas estas são regularmente ressuscitadas por quem consulta os tomos arquivados. Mas o armazém estará inacessível ao público, serve apenas de depósito para as sobras de livros, jornais e revistas da Biblioteca Nacional Britânica, uma das maiores do mundo. O edifício tem uma escala gigantesca - comparável à grandeza do que lá vai ser guardado. Túmulos para livros, como é comentado neste texto. Tanta palavra, para nada.

(Obrigado ao Armando pela dica)

[Sérgio Lavos]

2 comentários:

João Ventura disse...

Se Vila-Matas lesse este post diria que aqui se encontra a prova de que a realidade supera a ficção. Que abismo mais profundo sobre o abandono, a ocultação, o exílio dos livros não lidos que esse monstruoso armazém de Londres, cuja versão ficcionada encontrámo-la primeiro no outro lado daquele umbral imaginado por Zafón em Barcelona?

Sérgio Lavos disse...

caro joão,

imagino que devam ter existido antes outros depósitos de livros esquecidos - a ideia é tão boa que algures no passado já deve ter sido aplicada por alguém. nem toda a literatura é comestível; mas toda pode ser reciclável.