31/01/10

Um profeta



Jacques Audiard, o realizador de Um Profeta, não se cansou de dizer, nas entrevistas a propósito da estreia do filme, que este pretendia ser um retrato da França actual. Costumo desconfiar de intenções moralizadoras e de filmes cujo objectivo seja retratar a actualidade; é por isso que não gosto da obra de Alejandro Inãrritu ou de certos filmes de consciência liberal que a indústria americana por vezes produz. Não é uma questão de resultado final, mas de vontade: quanto mais um realizador se esforça por trazer para o ecrã as suas preocupações de ordem ética mais corre o risco de esquecer a forma. As excepções são sempre obras-primas, e penso em alguns filmes de John Ford (As Vinhas da Ira, O Vale Era Verde) ou em O Couraçado Potenkin, de Eisenstein, ou no acto de contrição de Elia Kazan depois da traição à classe que se chama Há Lodo no Cais - devo confessar que eu seria um dos que aplaudiriam Kazan naquela cerimónia dos Óscares em que a metade liberal da Academia se manteve quieta, mas percebo a razão desta.
Pensar a sociedade francesa actual, imagino que será uma tarefa difícil - portanto, entrei na sala de cinema na expectativa. O filme é um drama passado na prisão e acompanha um jovem delinquente magrebino, El Djebena (Tahar Rahim), quando este é sentenciado a quatro anos. O mais interessante é o que o filme não tem de denúncia social - a relação que Djebena mantém com outro condenado, Luciani (Niels Arestrup), mafioso corso que o inicia e o passa a proteger depois de o obrigar a matar alguém que lhe é incómodo. O pai ausente renasce em Luciani - o olhar que nos é oferecido é o de Djebena: onde nós vemos crueldade ele vê algum afecto, mas cedo começa a perceber que Luciani olha para ele como um criado, um objecto das suas maquinações criminosas. A candura inicial de Djebena vai desaparecendo, há uma evolução que nos vai mostrando de que modo nasce um criminoso; ou, a leitura mais interessante, Djebena simplesmente abraça o seu destino - ele é o Profeta - e a ingenuidade do início é aparente, uma forma de conseguir sobreviver à vida em clausura.
Se é verdade que Audiard é bem sucedido no que toca à caracterização das personagens - existe uma evolução de Djebena, o cliché do delinquente não está sequer em causa - há, contudo, certas ratoeiras que bem podiam ter sido evitadas: na prisão, apenas vemos magrebinos, africanos subsarianos, ciganos e corsos. Dei por mim a pensar se não existirão brancos do continente condenados em França. Eu sei que é um pormenor, mas é também uma espécie de paternalismo incomodativo, como se a realidade francesa de integração dos imigrantes, que passa pelo crescimento de guetos fora do espaço habitado pelas classes mais abastadas, tivesse perfeita demonstração na obra de Audiard - o país que este pretendeu retratar será tão separador de águas como a obra por ele criada. Audiard mostra não ter sentido verdadeira empatia pelo universo que decidiu criar, e isso foi para mim muito mais evidente ao rever Casa de Lava, de Pedro Costa, pouco tempo depois de ter visto Um Profeta - é indesmentível (e confessado em entrevistas) o amor que Costa tem aos cabo-verdianos, aos imigrantes e aos desenraizados que acompanha em registo quase documental - Costa foi um habitante do bairro das Fontainhas enquanto lá filmou Ossos e No Quarto da Vanda, foi um irmão de Ventura em Juventude em Marcha. Audiard limita-se a ser um simples observador das mudanças que vão ocorrendo. É pouco.

(Publicado inicialmente no Arrastão)

28/01/10

J. D. Salinger (1919-2010)

A segunda morte do mais perfeito contista americano. Nove Contos, publicado em Portugal pela Difel, é um dos meus livros de sempre.

23/01/10

O trabalho da memória

Dois dos livros que li recentemente surgiram em sequência - a leitura do segundo como complemento do primeiro. O caminho faz-se quase sempre em ziguezague – não gosto de impor programas, ordem, às minhas leituras – mas acaba por haver um ponto de contacto ao longo do percurso. Despertou-me primeiro a atenção Ernestina, de J. Rentes de Carvalho, agora mais conhecido por cá, depois dos merecidos artigos em jornais aproveitando a republicação da sua obra pela editora Quetzal. Dele já lera um livro ou outro e fui sendo leitor fiel do seu blogue, que leva o título de um dos seus volumes memorialistas, Tempo Contado. Um mestre pouco conhecido, para não dizer desconhecido, apesar de cada livro por ele publicado na Holanda (país onde vive desde os anos 60) vender o suficiente para continuar a ser editado. Não sei se a falha será colmatada – seria bom que o fosse, que o reconhecimento é sempre bem-vindo.
Ernestina é um livro de memórias que acompanha os primeiros anos de vida do escritor e termina na adolescência, um período de tempo que vai desde antes do seu nascimento, em 1930, até aos anos 40. O mais notável no livro é a descrição, viva, hábil, fluida, de um tempo de transição no país. Esqueçamos, no entanto, implicações políticas; Rentes de Carvalho conta apenas a sua história – se acaso aparece uma ou outra referência aos tempos conturbados que se viviam, é por meras razões de ordem biográfica. Nascido numa aldeia de Trás-os-Montes, Estevais, e tendo partido cedo para viver com os tios em Vila de Nova de Gaia, Rentes de Carvalho conseguiu ultrapassar as barreiras da ruralidade e da pobreza, para “chegar longe”, expressão que não é apenas um lugar-comum mas um mote para a sobrevivência do povo transmontano.
A consciência subtil de que uma vida é uma superação de vidas anteriores, dos pais e dos avós, é também um dos temas principais de As Pequenas Memórias, de José Saramago, o ponto seguinte no meu percurso de leitor. Saramago nasceu em Azinhaga, aldeia do concelho da Golegã erguida da lezíria do Tejo, à beira do Almonda que no rio maior vai desaguar. Aos quatro anos de idade foi viver com os pais para Lisboa, mas as visitas à aldeia onde nasceu eram regulares – o livro vai saltando de episódio em episódio, na cidade e no campo, ao ritmo incerto da memória do escritor. O estilo é o de sempre – um primor clássico que me parece inultrapassável na literatura portuguesa contemporânea, apesar de Mário de Carvalho – e Saramago quase nunca cai naquele tom moralmente opinativo que lhe é característico. Poder-se-ia esperar que, tendo crescido no meio da pobreza – quartos alugados para três em Lisboa, casas de chão de terra no Ribatejo -, Saramago optasse por um ponto de vista vagamente influenciado pela ideologia que lhe é cara; assim não sucede. Não há romantismo na infância, e a principal força do livro reside na fragmentação temporal – não há uma continuidade temporal na narrativa, o livro tenta imitar o funcionamento da memória. Em duas passagens deliciosamente metaficcionais, Saramago chega a corrigir factos que antes tinha enunciado, pedindo desculpa pelas imprecisões cometidas.
De Ernestina, nome da mãe de Rentes de Carvalho, à avó de Saramago, a distância é curta. Mais curta do que o caminho percorrido pelo comboio que leva Rentes de Carvalho à sua aldeia – horas e horas a levar com a fuligem da locomotiva a vapor e o cheiro da comida das gentes que também regressam à aldeia. Mais curta do que a distância que vai da Azinhaga a Santarém, a pé e levando uma vara de porcos para venda numa feira, a viagem que Saramago e um tio fizeram para trazer algum dinheiro mais à família. O tempo que agora parece fugir durava mais antes – os dois escritores, de outro tempo, sabem bem medir, distorcer, a vida que por eles passou. E servir o resultado a nós, leitores, de forma primorosa. Aprisionar o tempo.

(Texto originalmente publicado no Arrastão)

13/01/10

Mad Men

Há um filão que parece não se esgotar na produção televisiva americana - e a única maneira que temos de beneficiar desta época de ouro é ver as séries, tarde e a más horas, em canais por cabo ou em DVD. Não vale a pena lamentar os enchidos de novelas ao serão em vez de produtos acima de qualquer suspeita; na cabeça dos programadores das televisões nacionais o lucro é sinónimo de oferecer ao povo aquilo que este pensa que quer - velha história. A verdade é que estas séries passam nos E.UA. em prime time, sendo sinónimo de audiência garantida para os canais nacionais americanos - e falamos "apenas" de House, Perdidos ou Flashforward, por exemplo. Não lamentemos, então, e saboreemos em doses mais ou menos homeopáticas o que vai sendo importado.
A RTP 2, lembrando-se de que também tem uma função de serviço público, vai passando diariamente, depois do seu serviço noticioso, uma amostra desta produção. Actualmente, destaca-se Mad Men, às sextas-feiras. A série retrata as vidas de um conjunto de publicitários americanos na transição dos anos 50 para os 60. Os optimistas 50 terminavam, os revoltosos 60 começavam, e tudo estava prestes a mudar. O que é extraordinário é o ponto de partida da série: a estrutura folhetinesca, que por vezes até faz lembrar uma qualquer novela, é de uma simplicidade aparente: os diálogos são inteligentes, a fotografia e os cenários exemplares, reconstituindo a época de acordo com a imagem que temos dela (a imagem criada, é certo) e o trabalho de câmara tem quase sempre uma qualidade cinematográfica - como alguém já escreveu algures, Mad Men é melhor do que 90% dos filmes que são produzidos nos E.U.A. Está lá tudo: os hábitos que agora são considerados politicamente incorrectos - fumar, bater nos filhos, sujar os espaços públicos; o lugar da mulher na sociedade, muito distante do que entretanto já foi conquistado; os conflitos raciais; o aparecimento de uma nova classe burguesa, que precede em duas décadas o predomínio dos yuppies.
Precisamos de conhecer o passado para entender e aceitar o presente. Em apenas quarenta anos, o mundo ficou completamente diferente; os valores não são perenes, como já devia saber quem luta contra a mudança, principalmente quando a mudança pode levar a mais igualdade e justiça. Mad Men é a série ideal para se perceber esta ideia.

(Texto publicado originalmente no Arrastão)

05/01/10

Filmes 2000 #10


Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera, Kim Ki-Duk (2003)

Nem sempre uma sala de cinema é o lugar onde se descobrem grandes filmes. Este vi-o em casa, emprestado por alguém, noite dentro, e deixou-me uma impressão tão grande que teria sempre de fazer parte desta lista. O realizador sul-coreano será mais conhecido por Ferro 3, belíssima meditação existencial sobre a vida moderna. Os dois filmes são contrastantes, e evidenciam a dicotomia campo/cidade que ainda existe na Coreia do Sul. Aos ambientes urbanos de Ferro 3, opõe-se uma cabana à beira de um lago perdido numa montanha, lugar de retiro de monges budistas, primeiro o mestre, depois o discípulo, que por sua vez se tornará mestre. Ao longo do filme, diversos ciclos de vida se entrelaçam e ecoam uns nos outros, numa estrutura de boneca russa: ao ritmo das estações sucede o ritmo dos anos, a passagem, as dúvidas do aprendiz e o regresso, a morte do mestre e o tomar do lugar pelo aprendiz. A câmara de Ki-Duk é tão zen como a história que filma; os planos afastados que mostram a discreta presença humana no meio natural são intercalados por planos próximos nos momentos de intimidade dos amantes. E a história de amor, entre o aprendiz e uma rapariga com problemas que foge da cidade para aquele refúgio idílico, é apenas um intervalo no tempo. A intensidade do amor carnal, o seu brilho, é fugaz, breve. Quando o aprendiz regressa, aprendeu a lição - é acusado de um crime passional e tem de fugir ao mundo. A lição é severa: a carne traz a perdição, a renúncia é a única via. Apenas assim o amor se torna essencial, resíduo de uma memória.

(Imdb aqui)
(Um pouco do filme aqui)

03/01/10

O começo de um livro é precioso

À aldeia chamam-lhe Azinhaga, está naquele lugar por assim dizer desde os alvores da nacionalidade (já tinha foral no século décimo terceiro), mas dessa estupenda veterania nada ficou, salvo o rio que lhe passa mesmo ao lado (imagino que desde a criação do mundo), e que, até onde alcançam as minhas poucas luzes, nunca mudou de rumo, embora das suas margens tenha saído um número infinito de vezes. A menos de um quilómetro das últimas casas, para o sul, encontra-se com o Tejo, ao qual (ou a quem, se a licença me é permitida), ajudava, em tempos idos, na medida dos seus limitados caudais, a alagar a lezíria quando as nuvens despejavam cá para baixo as chuvas torrenciais do Inverno e as barragens a montante, pletóricas, congestionadas, eram obrigadas a descarregar o excesso de água acumulada.

José Saramago, em As Pequenas Memórias

A seguir

A lista de filmes da década passada - e quem não acha que a década já passou, faça bem as contas aos dias que contámos - avança pouco. É muito mais difícil decidir sobre isto do que foi sobre a música. O mês de Janeiro vai ser assim um arquivo para a minha memória, cumprindo-se deste modo a primeira função de um blogue. A passo lento.