31/08/06

Memória e poesia

Peguei no livro de Luís Miguel Nava a meio de uma conversa sobre nada - pretendia exemplificar de que modo o Homem se perde no mundo preparando a partida de si próprio. A ontologia do viajante. Al Berto, que deve ter tocado a mesma areia por onde Luís Miguel Nava andou - apesar da inconstância do deserto - talvez nunca se tivesse apercebido da plena posse do seu corpo até a doença o tocar com os seus dedos frios. Nava não. Desde muito cedo se percebe nos seus poemas um rumor de relâmpago, como se a luz que ele evocava tivesse como destino último as entranhas que ele parecia - erroneamente - dispor ao uso do mundo. Num número relativamente recente da revista "Relâmpago" dedicado ao poeta, vários amigos falam da coincidência entre os factos da vida e os factos da poesia. Julgo haver alguém que sugere existir um apelo quase consciente de Luís Miguel Nava no sentido que a sua existência acabou por tomar. Um certo gosto pela marginalidade - e aqui não se pode deixar de censurar tal pensamento: quem lê os seus poemas mais solares entende o poeta de outra forma, distante dessa alusão baixa.
Luís Miguel Nava percorreu desde a infância o caminho onde leva a sombra; a casa onde cresceu era o lugar onde a luz se estendia de modo absoluto. E aproximava-se por vezes de Eugénio de Andrade. Mas a memória não permite que o rio flua com a mesma limpidez que possui na nascente. No texto que transcrevo, a casa está tão entranhada no poeta que tomou conta de tudo. A infância uma sombra cobrindo o presente.
No dia seguinte a esta conversa, reencontrei um colega que não via há longo tempo. E foi como se a infância, em vez de regressar, me assombrasse as memórias puras que dela mantenho. A realidade raramente coincinde com a ideia que dela fazemos. E o passado nunca será tão verdadeiro como a memória que dele temos. A poesia ajuda-nos a perceber estas coisas tão simples.

[Sérgio Lavos]

Regresso

Estou em Viseu, o tempo dá de súbito um salto para trás.
É um filme muito antigo, entre cujas imagens, devolvidas assim à realidade, me movo hipnoticamente, em cada uma das coisas que me cercam pressentindo o sangue que, dentro de mim, durante todos estes anos se nutriram. Cada contorno aqui é um sublinhado.
Vim para vender um prédio, a casa onde cresci, cujas janelas, através das quais primeiro apreendi o mundo, de tal forma então se confundiram com os meus olhos que se me entranharam nos sentidos. Não vai ser fácil arrancá-la agora às profundidades da alma, donde como uma planta parece ter brotado até me submergir na sua sombra.

Luís Miguel Nava

[SL]

30/08/06

As toupeiras

Catalogar as minhas preocupações era o melhor modo de caçar a insónia. Dedicava-me com um certo carinho a esse ofício, construía nas sombras túneis, suficientemente largos para as gordas toupeiras do desassossego se instalarem. E elas não declinavam o convite. Cruzavam a noite a meu lado, presas num desvelo que noutra situação se poderia achar comovedor; não lhes concedia essa fraqueza, contudo. Mas também não lhes ganhara medo, nem raiva, nem despeito. Muito depois, pensei mesmo que no fundo acabara por aceitar a sua presença, a sua familiaridade nervosa e o calor que delas subia. Julgam portanto que conhecia Kafka e os seus terrores nocturnos? Mentira, lamento. As toupeiras, no entanto, sabiam-no de cor; foram muitas as vezes que as apanhei a descansar numa das salas folheando as páginas serenamente, sem pressas. Desconhecia os livros que elas liam. A mim interessava-me encher o meu catálogo de inutilidade e desconcerto, aprendia a não esquecer, como um insecto pousado na pele a sugar o sangue. Morte, alinhada em colunas, avançando pelas páginas que se sucediam no espírito, números multiplicando a sua ferocidade pela minha vida fora. Gente que morreu, gente que morre, gente que irá morrer, sem tréguas. Um dia, aprendi a adormecer. Numa sala longínqua construída em tempos mais felizes, oito toupeiras, alinhadas num círculo imperfeito (tendendo para uma espiral concêntrica), jaziam quietas e viradas para o lado solar da rede de túneis. Mortas, todas mortas, os dentes ainda muito brilhantes no escuro. Mas eu não as via; caíra num sono sem memória da queda no sono, como todos os bons sonhos devem ser.

[Sérgio Lavos]

27/08/06

Marilyn

Mais que dizer Marilyn, dizer mulher. Não seria assim o verso de Ruy Belo, nem interessa agora evocar o poema tantas vezes repetido. No mês em que Marilyn Monroe morreu, ainda bem que o 2º canal decidiu fazer um ciclo de filmes com ela. Falta talvez o mais simbólico, "Quanto Mais Quente Melhor", provavelmente a melhor comédia de sempre, mas compreende-se o critério. Seria necessário ver e rever todos os filmes em que Marilyn entra para perceber que ela não era apenas a "mulher mais bela do mundo"; era uma excelente atriz de comédia, que assumia o risco da auto-paródia e da repetição de papéis de loura bela e burra que os produtores gostavam de lhe dar, era também uma profissional que, a partir de certa altura, começou a aventurar-se noutros registos, apesar das reticências dos patrões da indústria. Não se podia queixar, de resto, das agruras de Hollywood; o seu percurso, de pin-up de calendário ruiva a estrela de uma época marcada pela guerra do Vietname e pela iminente revolução sexual, seria um sonho tornado realidade - e depois pesadelo. Em Mulholland Drive, David Lynch constrói uma abstracção à volta do sonho de Hollywood, e de como ele atrai, como um abismo, quem se aproxima. Marilyn, como Betty (Davis?), não resistiu ao vórtice. No filme de Lynch, a posição do corpo de Betty/Diane depois de morta, apesar do horror, transmite uma serenidade trágica. Como Marylin, podemos imaginar. Mas recuemos no close-up, regressando a Lynch. Hollywood é uma quimera de histórias à espera de serem filmadas; o veio que Lynch aproveitou é abundante. Em "Paragem de Autocarro", Marilyn não se abstém de fantasiar sobre a sua própria condição, sobre a sua própria história. Cherie, nome imaginário (interessa saber qual o verdadeiro?), traça no mapa o seu percurso em direcção a Hollywood, vinda de uma terra perdida nos confins da América. Encontramo-la num bar de quinta categoria, servindo bebidas a cowboys e cantando um número de cabaret canhestro e paródico, depois de ter ficado em segundo lugar num concurso de talentos (atrás de um conjunto de malabaristas com garrafas de leite vazias). Como Betty em "Mulholland Drive". Marilyn sabia cantar e dançar, mas Cherie não. É apenas um "anjo", descoberto por um cowboy de modos rudes, mas ingénuo, que pretende laçá-la e levá-la para casa, como se fosse um bezerro. Ela acaba por ceder, quando ele mostra ser mais do que o bruto que aparenta - e o amor é, apesar de tudo, genuíno. Na vida de Marilyn, a realidade não imita (esta) ficção. Ninguém conseguiu domesticar Marilyn. Não interessa saber porquê, talvez seja difícil amar alguém que se pode chamar apenas "mulher". A perfeita encarnação do arquétipo.
Marilyn, em "Os Homens Preferem as Louras". O número da música "Diamonds Are a Girl's Best Friends". E a sua pálida cópia mais tarde no filme, por Jane Russell. O original, com Marilyn, é perfeito. Sensualidade despontando em cada canto do cenário, do corpo, da voz. A maior parte dos filmes com Marilyn são maus. Mas o milagre de cada aparição vale a pena. Em vez de marilyn, Mulher.

[Sérgio Lavos]

25/08/06

O mal dos blogues (2)

O ponto mais interessante do conjunto de questões colocadas por Carlos Leone é o ponto 6, onde é referida a pouca profundidade que uma análise aos blogues na actualidade pode ter, consequência normal da natureza do fenómeno, muito recente e ainda em progresso. É difícil saber o que irá acontecer no futuro, mas podemos tentar imaginar, como Carlos Leone faz. Parece-me que os blogues se podem inserir numa revolução mais vasta ao nível da comunicação entre pessoas, em primeira instância, assim como nos próprios media tal como os conhecemos. Não será necessária muita imaginação para pensarmos num futuro sem imprensa escrita, em que a informação circula apenas na Internet e na televisão, sendo que a segunda será um prolongamento natural da primeira, como aliás já começa a acontecer. Tenho lido na blogosfera, nos últimos tempos, alguma reflexão, principalmente de jornalistas, a propósito da mudança a que se assiste no meio mediático, mas tudo o que li esquece o essencial: a prazo, os jornais e as revistas irão deixar de existir. Contudo, também não será difícil imaginar a resposta de quem controla agora os meios de comunicação social à mudança: restrições e controlo da informação. A verdade é que a Internet, nos seus primórdios, já foi muito mais livre do que é actualmente, e a tendência irá no sentido de um acesso mais dificultado à informação e mais ruído na comunicação estabelecida. Exemplos? O controlo estatal dos conteúdos do Google na China e noutras ditaduras e a perseguição feroz a quem infringe os direitos de autor na Internet. (Diga-se que apenas se pode concordar em teoria com isto. Neste caso, posso lembrar Agostinho da Silva e o seu desprendimento em relação à obra produzida e aos direitos de autor; haverá acto mais livre do que este?) O monopólio da Microsoft é outro sintoma desta “liberdade restringida” que a Internet permite. Não devemos ter portanto ilusões acerca disto: o futuro trará uma Internet controlada pelos governos, no caso dos regimes autoritários, e pelas grandes corporações, no caso das democracias. Tal como acontece actualmente nos media tradicionais.

Os blogues, seja qual for a forma tomada no futuro, irão ser um meio fundamental de produzir, acima de tudo, opinião. E a opinião é, em todas as suas variantes, uma forma de participação. E um prolongamento natural dos meios de comunicação tradicionais. Perigoso para estes e para as regências clássicas na relação entre pessoas. Os blogues, actualmente, servem muitas vezes de naturais vigilantes da informação produzida pelos media e da opinião emitida pelos comentadores. Com todos os excessos que este facto pode implicar. O “marialvismo” e o “caceteirismo”, o espírito de clube não são mais do que a imitação da realidade fora dos blogues. O que antes pertencia apenas à esfera privada passou a ter uma maior visibilidade no espaço público. A Praça Pública, da SIC-Notícias, ou o fórum da TSF são êmulos do “caceteirismo” que existe na blogosfera. É de notar que estes aspectos negativos da blogosfera acontecem sobretudo em blogues de conteúdo político, o que não é pura coincidência. Há uma vontade de grande parte da opinião pública de participar mais activamente no processo político, de transcender as limitações que a democracia representativa não consegue ultrapassar. Pena é que quase sempre esta vontade de participar imita os piores excessos da política e seja o espelho claro do nível de literacia que existe no país. Sobre este assunto, queria apenas acrescentar que o debate entre os blogues "Dicionário do Diabo" e "Blogue de Esquerda" foi bastante vivo e interessante até determinada altura, quando se pisou a linha que separa a polémica do insulto gratuito. Mas aconteceu esporadicamente nos blogues como acontece na política e na elite cultural. Em alguns meios, o gosto polémico é inclusive valorizado – veja-se o caso do saudosismo – que eu partilho – em relação a uma figura como Luiz Pacheco. Um mundo sem polémicas, diatribes e ódios de estimação padeceria da doença mais grave da existência: o tédio.

Não gostaria de prolongar muito esta entrada, mas responderei a todas as questões levantadas pelo post de Carlos Leone noutros textos que se seguirão. Esclareço apenas que a distinção que fiz entre os nomes que refiro nada tem a ver com política. Teria mais a ver com visibilidade, mas aqui falhei no nome de Luís Rainha, ao incluí-lo no segundo grupo. O segundo grupo inclui nomes que já antes tinham bastante visibilidade, tendo sido os blogues apenas um prolongamento dessa visibilidade, com toda a liberdade formal que esta realidade permite. Agora, Rui Tavares deve muita da sua notoriedade (e do êxito do seu livro, porque não?) ao blogue em que participou, na altura campeão de audiência. Quanto a João Pedro George, ele próprio com certeza admitirá que o blogue lhe permitiu uma liberdade crítica que não tinha em mais nenhum lugar – o exemplo terá sido a censura (?) que ele sofreu quando escrevia na revista “Os Meus Livros”, relatada numa entrada do blogue, primeiro, depois publicada em livro. Quanto a Carlos Leone, posso admitir o que será talvez uma falta minha: não o conhecia, nem aos livros que – agora sei – já tinha publicado. E aí, dou-lhe razão. Os blogues não permitem uma legibilidade, antes uma visibilidade que outros meios não têm. E isso é mau?

(Continua)

[Sérgio Lavos]

23/08/06

A janela virtual

"There is an idea of a Patrick Bateman; some kind of abstraction. But there is no real me: only an entity, something illusory. And though I can hide my cold gaze, and you can shake my hand and feel flesh gripping yours and maybe you can even sense our lifestyles are probably comparable... I simply am not there."

Filmes como O Psicopata Americano levam-nos a pensar que alguns termos genéricos como “maquiavélico” deixam de fazer sentido, perdem a sua força. O filme de Mary Harron vale pelo romance que adapta e pela personagem de Patrick Bateman (Christian Bale). A personagem encarnada por Christian Bale está para além do Bem e do Mal, longe do maniqueísmo tradicional. Na verdade, Bateman é uma verdadeira entidade pós-moderna na mais pura acepção do conceito: a identidade da personagem não tem uma linha divisória entre exterior e interior, entre corpo e consciência, enquanto espectador do seu próprio corpo, corpo-máquina, controlado. Destaco a excelente cena em que Bateman, ou melhor, Bret Easton Ellis (os méritos recaem no cinismo deste) descreve a rotina diária de higiene pessoal com uma sucessão de cremes, loções, hidratantes, esfoliantes, cada um com uma função bem definida mas todos trabalhando para o todo, o corpo virtualizado. A máscara de menta refrescante diz tudo: corpo asséptico. Mas, além destes rituais de limpeza, deparamo-nos com o exercício físico, o fortalecimento dos músculos, o bom gosto gastronómico, etc. Ele optimiza o corpo físico para simplesmente passar o dia na inércia física, sentado no escritório - aqui o corpo não é senão uma janela virtual (Zizek desenvolve este conceito em Lacrimae Rerum a respeito do ciberespaço). Esta virtualização do corpo é também evidente no final, quando Bateman, não suportando o peso da consciência, peso superior ao mal-estar do corpo, conta ao advogado todos os crimes cometidos incluindo Paul Allen (Jared Leto). O advogado não pode acreditar na brincadeira dele porque encontrara Allen em Londres e ele não estava morto. O advogado, e outras cenas durante o filme repetem esta ideia, não identifica o nome a um corpo; os yuppies diluem-se na repetição, são uma lista de nomes, não de rostos ou identidades. Não há corpo de Paul Allen ou de Patrick Batemann, só nomes. Normalmente, esta cena teria uma carga psicológica fortemente trágica, de descrença nos valores morais ou do próprio sujeito, mas, para Bret Easton Ellis, ela é um hilariante elemento pós-moderno.

[Susana Viegas]

O crítico responde

Não é todos os dias que um (hipotético) visado por um pequeno texto que, a meu ver, trata do aleatório - as tão discutidas, e discutíveis, estrelas -, deixando o essencial completamente de lado, decide responder directamente à interpelação, explicando-se. Luís Miguel Oliveira, crítico do Público, insurge-se com algo que nem merecia o trabalho do post - o gosto do crítico. Não vale a pena discutir se Os Piratas das Caraíbas é melhor ou pior do que Miami Vice. O crítico, parece-me, tem sempre a seu favor um princípio inabalável: o seu gosto pessoal. Isto é intocável, por duas razões principais: não há pensamento crítico que não se funde neste princípio; e o gosto individual, numa democracia mediática, torna o espaço de opinião plural. Quem procura o gosto do crítico nos jornais sabe que vai encontrar diferentes vozes e diferentes modos de pensar o cinema; há quem goste sobretudo de cinema americano - independente ou o produzido pelos grandes estúdios -, há quem prefira o cinema europeu, há quem seja intransigente na defesa da produção nacional, há quem a despreze, há de tudo para todos os gostos. E quem se dá ao trabalho de ler os críticos sabe disso. Sabemos o que esperar. Há surpresas, claro, de que "Miami Vice" será o exemplo mais recente. Como escrevi numa entrada anterior, a unanimidade da crítica levou-me à sala de cinema para ver um objecto que, à partida, não me interessaria. Não confirmei as expectativas, Michael Mann só sabe fazer filmes de meias-tintas, a meio-caminho entre a obra-prima e o filme de autor falhado. Eu posso dizer isto sem problemas no meu blogue. É uma opinião, é um gosto estético. Mas o crítico, é claro, também pode. Ainda que a crítica se possa confundir com publicidade. A crítica é publicidade, quase sempre. Negativa ou positiva, mas publicidade, porque é produzida para fora, para o Outro, pelo crítico que sabe que o que escreve pode influenciar o êxito da obra criticada. O jogo da crítica é assim mesmo, qualquer objecção que ponha em causa o jogo é conversa de café improfícua. Eis a distinção fundamental entre crítica jornalística e teoria crítica. A complexidade da segunda torna-a ao mesmo tempo absoluta e discutível em termos de fundamentos; a teoria crítica, quando bem feita, rejeita o gosto crítico de primeiro grau e pensa a obra estudada. A crítica jornalística não tem tempo nem espaço para o fazer. O seu principal suporte é o gosto estético imediato, e o seu primeiro fundamento outros objectos artísticos comparáveis. Não precisa da teoria para nada - contudo, esta distingue os bons críticos dos outros. Em conjunto com o próprio texto e o prazer que provoca no leitor, a arte de bem manusear as palavras - com toda a subjectividade que esta ideia pode esconder.

[Sérgio Lavos]

21/08/06

Uma proposta

O primeiro passo para uma solução talvez consista então no reconhecimento deste bloqueio radical: por definição, nenhum dos campos pode ganhar: os Israelitas não podem ocupar todos os territórios árabes (Jordânia, Síria, Líbano, Egipto...), pois o aumento de território é acompanhado por uma vulnerabilidade proporcional; os árabes não podem destruir militarmente Israel (não só devido à sua superioridade em termos de armas convencionais, mas também porque Israel possui a arma nuclear: temos aqui o regresso em força à velha lógica da Guerra Fria fazendo pairar o risco de uma destruição mútua assegurada). Mais ainda: pelo menos por ora, uma sociedade israelo-palestiniana pacífica e mista é impensável. Em suma, os árabes terão não só de aceitar a existência do Estado de Israel, como também a existência do estado judeu de Israel no meio das suas terras, como uma espécie de intruso indesejável. E, segundo todas as probabilidades, esta perspectiva abre também a via à única solução realista do impasse: uma "kosovisação" da região, isto é, a presença temporária na Cisjordânia ocupada e nos territórios da faixa de Gaza das forças internacionais (e, porque não, da NATO?) que suspenderiam simultaneamente o "terror" palestiniano e o "terror de Estado" israelita, assegurando assim as condições para um Estado palestiniano e para a paz em Israel.

Slavoj Zizek, incluído no seu (pertinente) livro, recentemente traduzido pela Relógio d'Água, Bem-Vindo ao Deserto do Real.

[SL]

19/08/06

Nada, Carmen Laforet

Influenciada pela minha visita a Barcelona, li o impressionante romance Nada de Carmen Laforet, a que foi atribuído o prémio Nadal em 1944. A autora tinha então 23 anos e essa juventude está presente em todo o livro. Andrea decide ir viver com uns parentes para Barcelona com intenção de estudar letras na Universidade, mas esta intenção cedo fica ensombrada pela escura e suja casa que encontra quando, já noite, chega a casa da avó e dos tios. Não se trata da mesma da qual se recordava. A casa da rua de Aribau é uma das principais personagens deste romance, à qual acresce a restante família, brilhantemente criada por Laforet, uma casa sem privacidade ou limpeza, de móveis velhos e partidos onde todas as discussões e sussurros são ampliados. As diversas situações que se geram entre a família ou entre os amigos tornam Andrea uma verdadeira heroína urbana para a qual não basta responder “nada”. Também impressionante é a condição da cidade de Barcelona posterior à guerra civil, dividida entre o presente franquista e o desejo de liberdade, entre a pobreza e o vício do Bairro Chinês e a riqueza dos artistas de Montcada. Hoje, a identificação com Andrea e a loucura da família é imediata. No entanto, lamento não ter lido este livro na minha adolescência - seria imediatamente um livro marcante, como aconteceu com A insustentável leveza do ser. Quando o Nada e a tristeza da existência faziam tanto sentido.

[SV]

18/08/06

Miami Vice

Aí está um filme que me teria passado completamente ao lado se não fosse o esforço entusiástico da maior parte da nossa crítica. Quem se interessa pelo lado mais negro dos anos 8o terá motivos sinceros para se deslocar a uma sala de cinema, desembolsar cinco ou seis euros e sentar-se descansadamente, olho no grande écrã e memória perdida nas tardes de Sábado afundadas no sofá devorando série atrás de série. No meu caso, preferia esquecer que alguma vez gostei de David Hasselhoff e do seu fiel Kit, mas provavelmente vou ter de esperar até que o tempo faça isso. Azar. Don Johnson, disse?
Pois é, Don Johnson. Vinte anos depois, reciclamos o homem e temos um Colin Farrell hirto e simiesco passeando um charme chunga e oleoso por uma Miami brilhante e de alta definição, captada em toda a sua decadência tropical pela câmara de Michael Mann. É pouco? Queria dizer que não, mas é. A banalidade da história e os constrangedores momentos de intimismo protagonizados pelo cepo Farrell mancham irremediavelmente a pintura. Gong Li, entrando na curva da cativante beleza dos quarenta, consegue, apesar de tudo, salvar muitas cenas. Apesar do sotaque, apesar da inverosimilhança das situações, apesar do seu ar frágil, tão distante do mundo dos cartéis de droga como o filme está de ser uma obra-prima. Jamie Foxx também anda por lá, e consegue ser discreto, o que acaba por ser uma virtude; consegue o feito de repetir quase palavra por palavra a mesma deixa duas vezes no filme. E não me parece que seja um efeito voluntário do argumento - não, não é, de certeza.
Os críticos, então. O que lhes deu? Chegar ao ponto, como fez João Lopes, de escrever um texto a justificar a classificação dada ao filme? Potencialidade plena do digital? O que me parece é que apenas a fotografia beneficia do toque granulado das câmaras digitais. Os tons quentes da cidade, os néons de noite, o sol de dia, uma tempestade eléctrica, a curta panorâmica espreitando por cima do ombro de Foxx a determinada altura, tudo notável, sem dúvida. Mas apenas isto. A profundidade de campo atingida em algumas cenas não é uma figura de estilo, como acontece por exemplo em Orson Welles, mas sim um pormenor quase acidental. Os cenários enchem-se com os primeiros planos; dos rostos, dos corpos, das armas, do sangue salpicando dos vilões. Até nisto, imagine-se, até nisto. Apenas estes morrem. Plano, sem intensidade nem pathos.
Os críticos, portanto. Terá sido a presença de Ana Cristina Oliveira numa breve (e fulminante) aparição, logo no início do filme?

[SL]

O mal dos blogues (1)

Qualquer texto sobre o tom dos blogues e o tom da crítica ou da escrita jornalística, depara logo à partida com um intimidatório paradoxo: como publicar uma reflexão minimamente fundamentada no espaço de velocidade absoluta de um blogue? A reflexão exige um tempo e uma lentidão que não se compadece com o ritmo acelerado e diarístico a que blogues recorreram desde o seu aparecimento. Essa é uma das dificuldades no empreendimento de pensar a blogosfera a partir de dentro. O esforço louvável de Luís Carmelo no seu Miniscente é uma excepção, e ainda por cima inquinada a partir de determinado momento, quando o autor decidiu publicar os textos tendo como fim a publicação em livro. Pode-se falar em cedência ao maior poder comunicativo do livro impresso, mas a principal razão será a intuição – julgo que correcta – de que a mensagem não estava a passar como devia. Afinal, quem, de entre os leitores habituais de blogues, se dignou a ler todos os textos da série, do princípio ao fim, com a atenção devida a tal empreendimento? Mas dever-se-á censurar a distração e o cansaço dos leitores? Claro que não, simplesmente a leitura de um blogue não é a mesma coisa que a leitura de um livro, e a distinção não é apenas superficial, é de fundo. O prazer físico de folhear o objecto, riscar, sublinhar, saltar páginas, voltar atrás, levar na mala para qualquer lado é uma barreira inultrapassável. É mais fácil pensar com um livro nas mãos do que com um monitor de computador à frente. E Luís Carmelo sabe disto, daí a decisão tomada.

Mas a conversa não pretendia tomar este caminho. Questiona-se Carlos Leone no seu blogue, Esplanar, e na entrevista ao suplemento do DN, 6ª, sobre a verdadeira valia dos blogues para o espaço de intervenção crítica em Portugal. As dúvidas facilmente se podiam estender ao mundo em geral, e existem já dezenas de obras interessantes sobre o assunto, mas limitemos a questão ao meio intelectual português. Os pessimistas afirmam que o espaço de reflexão – e uso este termo em substituição do mais indefinível “crítica” de modo pouco inocente – se tem vindo a reduzir drasticamente. Carlos Leone insiste mesmo que o problema não é de agora, é de séculos, e os blogues, ao contrário do que hipoteticamente defende Pedro Mexia, não vieram mudar radicalmente o panorama. Não se reflecte nos blogues como não se pensa nos jornais nem nos suplementos culturais, como não existe verdadeira crítica ensaística publicada, salvaguardadas as excepções da ordem. Mas o que se poderá exigir da blogosfera, que salve algo que, na realidade, já não existia em Portugal há muito, ou que no limite nunca existiu? Uma reflexão viva, plural e fértil, em que as polémicas sejam mais do que fogachos breves e os grupos mais do que confrarias de amigos é uma utopia desejada desde sempre pelos poucos que se destacam na Cultura portuguesa. As desvantagens do meio são sistematicamente evidenciadas por quem ainda não aderiu ao fenómeno, mas também por quem já aderiu mas mantém uma saudável e irónica distância de tudo. Carlos Leone alinha nisso também, e acaba por ser difícil não lhe dar razão. Mas a verdade é que, no meio de tanta mediocridade blogosférica, acaba por haver uns quantos espaços de absoluta democracia, liberta das amarras de grupos de interesse ou de chefias editoriais, espaços que, de outro modo, não estariam acessíveis ao público que ainda se interessa por mais do que sound-bytes e tops de vendas na sua busca de informação ou cultura. Lugares que, sim, são de reflexão, provavelmente como há muito não se via em Portugal. O que acaba por parecer uma fraqueza – o excesso de opinião, cadinho da mais pura ignorância ou da mais ignominiosa má-fé – torna-se força, ponderados os vários ângulos do problema. E a prova já está aí, à vista. A nova geração de intelectuais move-se à vontade neste meio ou começou mesmo aqui, e penso em Rui Tavares, João Pedro George ou até mesmo no próprio Carlos Leone. Ou, noutro sentido, Pedro Mexia, João Pereira Coutinho, Luís Rainha. (O exemplo extremo no grupo mencionado será o historiador Rui Tavares). Mas o mais interessante, imagine-se, é que não se trata de uma questão de força de pressão ou de amiguismo, mas sim de inquestionável mérito. Que começou, ou teve maior expressão mediática, em quase todos os nomes referidos (e deve haver outros de que agora não me quero lembrar) na blogosfera.

(Continua)

[SL]

17/08/06

O verdadeiro tema do dia

Será que MEC tem mesmo um blogue? Se não tem, parabéns ao mistificador - excelente manobra de marketing.

(Aquela conversa de suicídio, no entanto, é o rabo que denuncia o gato. Demasiado juvenil, meu caro. But then again...)

[SL]

Arte e capitalismo

Pensava escrever um texto sobre a criação, os subsídios e as leis do mercado, motivado pelo artigo de João Fiadeiro, ontem no Público, mas entretanto descobri que já não vai estrear em Portugal o filme de Richard Linklater que adapta o conto de Philip K. Dick, A Scanner Darkly. Por razões comerciais, claro - o filme parece estar a falhar no mercado americano. Adiei o texto. O mercado tem razões que a própria razão desconhece. Pode ser cego, burro e sem alma. Entre criador e circuito de produção ou distribuição, apenas há uma hipótese de escolha. É difícil escrever contra o primeiro - apesar de tudo.

[SL]

O Caso Thomas Crown

Há outros filmes como este. É um dos mais belos pretextos para contar uma história de amor - todas as comédias screwball se alimentavam deste truque. Recentemente, tivemos o caso de Mr. Smith e Mrs. Smith, que veio a redundar em Mr. e Mrs. Brad Pitt. Mas John McTiernan, em O Caso Thomas Crown, remake do original realizado por Norman Jewison em 1968, com Steve McQueen e Faye Dunaway, consegue desempenhar a função superiormente.
O filme arranca com um roubo de um milionário enfastiado (e psicanalisado por uma Dunaway em quase-cameo), e com uma mulher-fatal pouco convencional perseguindo o criminoso. Pierce Brosnan, lamentavelmente, limita-se a ser um James Bond no filme errado. Mas Rene Russo reequilibra a questão. A artificialidade fatal da personagem é desarticulada por dois ou três pormenores inteligentes do argumento - Rene Russo a beber uma cola, a engolir uma mistela vegetariana depois de uma noite mal-passada, a idade. E esta é a principal arma do remake; enquanto que no original o canastrão estiloso McQueen andava às voltas com uma Dunaway virginalmente jovem, aqui Brosnan atrapalha-se com o charme balzaquiano da investigadora. Deixámos o reino fantasmático de Hollywood, com os seus homens maduros exibindo uma masculinidade irresístivel para mulheres vinte anos mais novas - mito aliás evocado na relação de Brosnan/Crown com a loura nórdica que se vem a revelar apenas uma figura filial - e caímos numa realidade de quarentões desencantados, D. Juans e femme-fatales em declínio, procurando a tranquilidade de uma vida doméstica. A cada um a sua metade perdida, e no filme de McTiernan isso significa o gato encontrar o rato e comê-lo - com a preciosa colaboração do rato, claro; todas as migalhas estão à vista.
Que John McTiernan consiga contar esta história com um rigor formal notável, não surpreende. Pena é que não tenha acontecido ao realizador o que aconteceu a James Cameron com o seu mastodonte "Titanic": a consagração dentro do sistema. Ambos expoentes máximos de um género - o cinema de acção sofisticado -, mas McTiernan menos imediatista, mais trabalhado, que Cameron. Basta comparar "Assalto ao Arranha-Céus" com "Exterminador Implacável II". O primeiro leva a palma, de longe.
Um dia, McTiernan há-de fazer filmes como Clint Eastwood.

[SL]

Areia

Ah, gosto deste tempo em que os dados são atirados ao ar e caem nas mesas erradas, este tempo desprovido de certezas e em que a cada dia o certo se pode tornar errado, e o errado certo, o tempo em que o cinzento é uma cor baça e o preto e o branco vão trocando de rosto sem aviso. Que delírio é ver esquerdistas serem acusados de anti-semitismo, direitistas defendendo causas de esquerda - o estabelecimento de uma pátria judaica segura - conservadores idealistas e idealistas ex-revolucionários afirmando-se, de pés bem-assentes no chão, conservadores. O deleite que é assistir a revoluções ditadas por bombas limpas que eliminam ao milímetro e invasões lançadas por bombas cegas que arrasam terroristas e inocentes. O prazer que me dá ouvir proclamações de vitória de ambos os lados de um conflito mitigado por - imagine-se - fervorosos (e falsos) pacifistas com interesses evidentes em desfechos rápidos. O gozo que sinto lendo colunistas reafirmando o seu apego à paz no mesmo parágrafo em que defendem a guerra, comentadores apelando à resistência armada no mesmo fôlego em que se fundam como pacifistas dos sete costados. A caturrice que é assistir de cadeira a moralistas revelarem que também pecaram, que à juventude tudo se pode perdoar, até a militância extremosa em organizações pouco estimadas. Tudo revolteia e se tece em doce ideologia, a tese e o seu contrário confundem-se num bailado de sombras e cortinas de fumo escondendo o teatro lá ao fundo, onde verdadeiros actores representam para a extensa plateia os seus dramas diários, virtuais protagonistas que vivem e morrem apenas para que milhões de linhas sejam diariamente escritas e publicadas em jornais, blogues, televisões, livros. Como não gostar deste tempo em que cada assunto morre ao bater na areia da praia, onda após onda desfazendo-se num novelo de espuma e esquecimento, o voraz instrumento da História?

[SL]

16/08/06

O holocausto

Quando um jornal faz um reparo a um artigo de opinião - que, para cúmulo, é uma resposta a outro artigo de opinião -, chamando a atenção para um pormenor relacionado com o uso de maiúsculas, será exagerado considerar o caso um abuso de poder da direcção. Mas algumas palavras carregam uma carga emocional que não desculpa a intervenção. Será Holocausto ou holocausto ou, como já vi escrito, "holocausto"? A chamada de atenção da redacção do Público não serve outra coisa senão a defesa de uma tendência, ténue, da sua direcção editorial. A opinião de uns colaboradores conta mais do que a de outros - para mais, escrevendo Isabel do Carmo excepcionalmente para o jornal, no âmbito do (julgo eu) pluralismo que se forjou à volta da intervenção do exército israelita no Líbano.
Esquecendo a grafia com aspas, existirá ou não uma gradação de sentido na passagem da caixa alta para a caixa baixa no termo "holocausto"? Não seria necessário repetir que a resposta será irrelevante. O que Isabel do Carmo pretendia ao grafar a palavra em caixa baixa não deve ser preocupação da redacção do jornal, apenas dos leitores. Matéria para o provedor do jornal tratar.
Mas tudo pode servir de arma de arremesso. O que conta não é a opinião de Isabel do Carmo sobre o conflito, mas sim a nota de rodapé relevando um detalhe que, de outro modo, passaria despercebido à maioria. Quase-polémica, como lhe chama Carlos Leone, ou nem isso, um sintoma apenas de modo de travar o "combate cultural" publicitado pela nova direita que emergiu nos últimos quinze anos. Que, coincidência ou não, cheira a velha esquerda reciclada. O politicamente incorrecto, movimento beto de rebeldia controlada, é um derivado bolorento de uma juventude militante em movimentos de extrema-esquerda, agora tão energicamente repudiados. Mas o moralismo das antigas companhias não desapareceu - é o que se chama crescer. A estes antigos esquerdistas junta-se uma geração que aprendeu no Independente a mal-comportar-se de forma controlada, à maneira de um Miguel Esteves Cardoso com menos tino.
É uma atitude estética, e isso é notável. Quem se importa com os velhos barbudos que aparecem nas fotografias de cravo na mão e punho fechado? Ou com os jovens barricados nas ruas de Paris clamando por revoluções de pavio curto? Eurico de Barros, na sua crítica ao recém-estreado filme de Phillipe Garrel (sem link), Os Amantes Regulares, mostra como se faz. Fazer crítica com ideologia, cartilha estalinista bem-estudada. De invejar o mais emperdenido patrulheiro (outro termo acarinhado pela nova direita betinha) da esquerda saudosista. Será que viu o filme, sequer? Que interessa que cheire a mofo do Maio de 68, se for bem feito? Uma pose, acima de tudo, irritante pelo chico-espertismo que denota. O armar ao pingarelho no seu esplendor moderno. (Sobre a barbaridade do crítico, ler também este texto de Alexandre Andrade).
Admirável mundo velho.

[SL]

14/08/06

Questões

Até onde é sensato o apoio a uma ideia, ou a uma decisão política? Até onde ou, para ser mais preciso, o que se deve apoiar, o político ou a sua decisão? O que distingue a ideologia da asneira, o apoio crítico e bem-fundamentado da acefalia seguidista e cega? E qual é a extensão do poder da opinião pública, com as suas flutuações e aferições desprovidas da regulação de cada indivíduo? A acção do político, regula-se pelo pulso de cada indivíduo ou por um esforço imaginativo que compõe um ideal que, na realidade, não existe? E que interessa o grande plano quando o plano aproximado desagrada e horroriza? Se se afirma cada ideia em função de um combate contra a ideologia do adversário, que valor pode ter essa ideia? E, o essencial, até que ponto a realidade, forçosamente mediatizada, é real, ou corresponde, no mínimo, à verdade? Que valor (absoluto) rege a Realidade?

[SL]

O som

A arte contemporânea, empobrecida e reduzida à sua expressão essencial, consegue provocar o espanto ou a contemplação estética recorrendo a artifícios que nascem do quotidiano, retirando os objectos do seu meio original e recontextualizando-os no espaço privilegiado de sempre, o museu. Um som de sirene, durando três minutos, ouvido no meio de um conjunto de visitantes da exposição "Vinil", no Museu de Arte Contemporânea de Barcelona. Podia ser uma sirene de bombeiros, primeira impressão, ou, mais dramático, o som avisando um bombardeamento iminente. Reiner Ruthenbeck joga com as duas possibilidades, mas aposta claramente na segunda. Quem entende aquele som como aviso de guerra automaticamente, e quase apenas por instinto, soma uma série de elementos que constituem um conjunto que nada tem a ver com a arte. Reiner Ruthenbeck é alemão, e a experiência de guerra mais documentada e mediatizada a que temos acesso é a que assolou o mundo em 1939-1945. Quem ouve não sabe onde foi gravado aquele som, mas por momentos sente a inquietação e o medo de uma entidade construída e inacessível - a vítima de um bombardeamento aéreo. Reformulando o que foi antes afirmado, terá isto então nada a ver com arte, ou terá tudo?

[SL]

11/08/06

I'm From Barcelona



A música ideal para este verão, ainda que haja gente que afirme o contrário. Atente-se nos la, la, las, nos uh, uh, uhs, nas deliciosas harmonias vocais ao estilo de Beach Boys, como se estes tivessem decidido mudar-se das praias da Califórnia para os albergues de Barcelona e para o Mediterrâneo flat e quente que banha as praias da cidade. Suecos em busca de um paraíso pop ou a melhor forma de conseguir transmitir a essência de uma cidade em três minutos quase perfeitos.
Mais informação aqui.

(Obrigado, Rita.)

[SL]

10/08/06

Turistas e viajantes

O turista julga entender a alma do lugar que visita por alguns dias apenas, o viajante sabe que nunca conseguirá compreender o que sente um povo. Nascemos com a nossa terra no sangue, e nem que passemos anos fora perderemos essa marca de nascença.
Podemos fingir, cedendo um pouco à ilusão de conhecer. Em Barcelona, passeando entre "tourist spots" apinhados de gente com máquinas numa mão - digitais, que se perdeu para sempre a imagem do turista japonês de Nikon ao pescoço - e guia na outra, deparo com um breve (e ilusório) lapso da vida de quem pertence àquele lugar. Num parque com rampas para skaters, entalado entre prédios de cimento pouco típico e muito proletário, destaca-se um grupo, dois adolescentes e um homem mais velho. De início, não reconheço o objecto que o mais velho traz nas mãos. Dispõem-se em campo, o mais velho e um dos adolescentes frente-a-frente. O segundo saca do bolso uma bola de ténis e lança-a ao outro, que maneja o bastão de modo para mim inaudito. Coloca-o na vertical, amortecendo a pancada da bola, que ressalta e bate uma vez no chão antes de chegar às mãos do remetente inicial. Jogam cricket, entre muros, e o terceiro observa-os. São todos asiáticos, paquistaneses ou indianos. Em volta, os adolescentes catalães usando roupas largas e penteados trendy saltam nos skates, jogam à bola contra a parede do fundo, alguns com camisolas de Ronaldinho, Deco, Eto'o, vestidas. Os asiáticos, passado algum tempo, desistem do passatempo. E juntam-se a um grupo, começam a chutar uma bola de futebol de pé para pé, com mais ou menos talento para o jogo.
Ao afastar-me preferi não dar demasiada importância ao hiato de tempo que transcorreu naqueles breves minutos de actividade desportiva. Primeiro, o jogo dos pais e dos avós, a herança deixada pelos colonos que ocuparam o país durante 400 anos. Depois, o jogo do país onde nasceram, ou do país que os adoptou, tanto faz para o caso, acolhendo no seu património genético a nova terra que se entranha.
A conversa de integração não faz sentido nesta história. Eu era apenas um turista a caminho de mais um museu, sem qualquer desculpa para estar ali, na margem da cidade que visito.
Hoje, o grande tema é mais uma ameaça terrorista. Há canais de televisão que dizem que os suspeitos são jovens britânicos islâmicos, provavelmente asiáticos, como os do atentado no metro londrino, quem sabe como os adolescentes que vi jogando cricket em Barcelona. Não há espaço para moral nesta história. Os caminhos de um Homem são quase sempre um insondável mistério.

[SL]

O país de fora

Enrique Vila-Matas, em vários dos seus escritos, fala enfaticamente do clima sufocante que se vivia na sua Barcelona natal durante os anos de franquismo. Diz ele que não era só a ditadura em plena carburação, era algo mais que isso, que a censura, a polícia política ou a falta de liberdade em geral. Era uma sensação de estagnação, de paragem no tempo. Montálban também escreveu sobre este sentimento, e de resto não faltam escritores espanhóis sem vergonha de tratar o tema como ele o merece, sem pudor em relacionar a memória individual com a memória de um povo, o melhor modo talvez de evitar que a História se repita.
Antes de sair deste país por alguns dias, corria subterraneamente - quase só na blogosfera portuguesa - uma polémica sobre a classificação de regimes do século passado. Teria Portugal passado por uma ditadura fascista, semelhante ao regime de Mussolini ou ao Nacional-Socialismo de Hitler?
No regresso ao país que abandonei por alguns dias, percebi a razão do súbito revisionismo miniaturista que acometeu alguns historiadores - Rui Ramos e Vasco Pulido Valente à cabeça. A sua conotação com a direita pouco interessa para o caso, até porque ambos se afirmam herdeiros de uma tradição liberal que pouco quer ter que ver com qualquer tendência revisionista da História. Durante o voo, a 9000 metros de altitude, indícios tenebrosos somavam-se: o fumo dos fogos erguendo-se em direcção ao céu, o horror do desarranjo urbanístico das povoações lusas, o monstro de betão adormecido no pulmão chamado Arrábida, a dois passos de Lisboa. Foi enquanto esperava por um transporte público - e tive bastante tempo para esperar, como quase sempre - que me atingiu com gravidade o verdadeiro significado das palavras dos escritores espanhóis que lera. A opressão, o sufoco, a sensação de país sem futuro, e a nítida certeza que nem o excesso de dramatismo pode salvar o que ainda há para salvar, tudo isso parece repetir-se ainda, trinta e dois anos depois do "regime conservador e católico" que nos quebrou o ritmo do passo durante 48 anos. Aqui ao lado, apenas em Madrid se fazem sentir os resquícios da ditadura, na forma dos velhos saudosistas que se juntam ao fim do dia em cafés onde empregados idosos atendem com maneiras subservientes os senhores de outros tempos. Barcelona parece ter sido catapultada a outra era, que em nada se parece com a cidade que Vila-Matas gosta de recordar nos seus textos. Tudo vive, nela.
O ânimo catalão contrasta tristemente com a melancolia derrotada dos portugueses. Somos um povo feio. Feio, porque vivemos derreados por uma herança de velhas beatas e senhores da terra enriquecendo à custa dos iletrados que nem força têm para se revoltar. A ditadura em Portugal foi amena. Porque amenos foram os que sofreram na pele as suas agruras. Vivemos, passado todo este tempo, no mesmo irrespirável ar. O que sufoca agora é o crédito a pagar ao fim do mês, o emprego mal-remunerado que se tem de manter, a ameaça dos herdeiros da classe que domina o país há demasiado tempo: a burguesia, mesquinha, amedrontada e sem qualquer ideia de rumo para o país. Parafraseando Pulido Valente, leia-se Eça para se perceber isto.
E isto, para quem está fora apenas alguns dias, sente-se. E isto, meus amigos, cansa.

[SL)

03/08/06

Duas horas de avião

Estou aqui apenas de passagem
(sem qualquer leitura metafísica)
a caminho de outro lugar, regressando de três dias de descanso no campo e na praia, preparando a viagem com um livro no bolso e um mapa noutro - aquele, de Enrique Vila-Matas, prepara-me para o coração inacessível da cidade (Da Cidade Nervosa, ed. Campo das Letras); este, apesar da boa-vontade, espero que ajude a perder-me de modo mais concreto e absoluto nas ruas e bairros que já conheço.
Prefiro não saber (não comentar) as actualidades, as notícias, complicar o descomplicado novelo dos dias. Não me gritem, não me chamem, tenho coisas mais importantes que fazer e que pensar.
A caminho do Porto, Camilo Castelo Branco, há cento e cinquenta anos atrás, encontrou por acaso o seu velho amigo António Joaquim e agradeceu-lhe o convite para a liteira. Os pecados do reino serviram durante vinte horas de moldura pícara ao ofício de contar histórias pelo prazer de passar o tempo apenas. (Vinte Horas de Liteira, ed. Ulmeiro). Não é possível repetir essa era de horas lentas, uma viagem joga-se num piscar de olhos sonolento; num momento pisamos terra conhecida, no outro descemos em solo a desbravar, ou a reconhecer. Turistas a uma velocidade inútil.
Contar histórias e viajar. Como se o ritmo pausado das antigas viagens rimasse com a melopeia das palavras entretecendo-se em tranças de som e sentido. Se perdermos a possibilidade de viajar, perdemos tudo - passado, memória e futuro. Escrever e ler isto num ecrã de computador é de uma ironia que podia ser insuportável, se não fosse, tal sentimento, leviano.
Uns dias então, até ao regresso.

[SL]