14/06/09

A revelação

Andar em contraciclo e contra as modas obriga a uma férrea disciplina, e por isso leio Budapeste, de um Chico Buarque que nunca, nem como músico, me interessou por aí além. Agora que saiu Leite DerramadoItálico, descubro o tal assombro de que falam. Ah, mas músico sabe escrever? Mas celebridade pode escrever, se expressar em mais de um meio, e sempre de forma excelente? Parece que Chico Buarque pode, e Budapeste está a ser uma revelação que possivelmente vai fazer com que a férrea disciplina seja quebrada. Agora, não me peçam para ler Montanha Mágica, nesta nova tradução e tal e tal. Haja paciência. Espero encontrar Hans Castorp num futuro mais ou menos longínquo. Talvez quando finalmente traduzirem Finnegan's Wake, a impossibilidade em letra de forma.

08/06/09

O espectáculo das eleições

A impossibilidade de olharmos para qualquer acontecimento exterior de modo inocente torna inevitável a construção de uma narrativa. Mas quando entre nós e o mundo se interpõe uma barreira, o conhecimento passa a ser ilusório, puro engano dos sentidos. Se essa barreira, mais do que ser opaca, é um espelho que distorce a realidade, quanto daquilo que vemos é passível de ser real?
O problema não é aceitarmos a inevitabilidade desta verdade, mas saber até que ponto é mais útil não saber nada do que se passa fora dos limites daquilo que não controlamos.
Olhando para a cobertura mediática da noite eleitoral, apercebemo-nos das narrativas que as televisões vão construindo. Da expectativa anterior às primeiras sondagens à boca da urna, prevendo um resultado num determinado sentido, até aos resultados definitivos, um longo caminho foi percorrido. Os comentadores, analistas, comendadores de serviço, debitaram quilómetros de opiniões, especulações, num festivo bombardeamento dos sentidos. Cada nova informação contribuía para que o espectador se afastasse mais da realidade. Dos erros das sondagens à surpresa da derrota, tudo parece ter sido preparado para que um grande espectáculo fosse assistido pelo maior número possível de pessoas. As marcas de uma obra de ficção estão à vista de todos: o suspense do fecho das urnas, os primeiros resultados, a expectativa sobre uma sondagem para as legislativas, os numerosos directos das sedes dos partidos com jornalistas ampliando os minutos de espera dos derrotados em marcação cerrada e mantendo a emissão numa euforia expectante enquanto os vencedores não entram. O mistério - políticos que abandonam as sedes partidárias -; o melodrama - políticos que choram no enfrentar das adversidades; a comédia - juventudes partidárias em encenadas celebrações; os diversos climaxes - o discurso de vitória, dedos no ar e punhos em riste, as pausas para que o público se manifeste. Indícios de um grande espectáculo, do outro lado do ecrã, para uma audiência de milhões. As narrativas que daqui saem mostram as sedes dos partidos vencedores cheias e eufóricas e as salas vazias dos vencidos depois do esvaziar da festa.
Depois de tudo ter terminado, resta aos jornalistas mais uma previsão, o preparar do terreno para a próxima perfomance do grande circo da política. Análises balofas, adivinhações, truques de ilusionismo que escondem derrotas, sobrevalorizações de resultados esperando mais vitórias.
E nós, do lado de cá do espelho, o que poderemos fazer para além de aceitar a realidade que nos oferecem?

05/06/09

Siri Hustvedt

No outro dia sonhei encontrar Siri Hustvedt e Paul Auster. Não era realidade, e eu sabia (no sonho). Eu sabia que sonhava pertencer a um livro e os encontrava a meio de um enredo austeriano. Auster regressara da Noruega e trouxera com ele aquela mulher belíssima, provocando a admiração de todos os homens. Contudo, a confiança que uma mulher deslumbrante poderia trazer era estranha a Auster. Ele olhava em redor, procurando o espanto alheio ou a até mesmo a inveja, como se fosse possível a um homem invejar outro por uma conquista amorosa, por mais bonita que seja a mulher. Seria um homem crente de que uma mulher bonita é mais caprichosa, e portanto disposta a ser levada por um vento diferente de modo mais fácil? Ou era ele apenas um fraco representante da raça masculina, incapaz de reunir poder a partir de uma conquista? Eu queria acreditar na segunda hipótese, e por isso fui-me aproximando dos dois provido de uma fé desrespeitosa. Pensava seduzir aquela beldade pálida e imaginar-me num filme de Hitchcock. Nem a diferença de alturas iria deter os meus avanços. Auster fraquejava e afastava-se, acudia a uma solicitação de outro leitor ou fugia de mim, deixava-me avançar no terreno de batalha. Ainda faltava saber que táctica utilizaria na aproximação. Inclinava-me para uma aproximação directa - não sabia se a devoção seria suficiente para o interesse de alguém inacessível. Pensei em frases de engate, fracas, inertes - o amante dela era escritor. Pensei em usar a franqueza de um bruto - mas ela era demasiado inteligente para tal coisa. Seria então a inteligência a arma que me serviria. Aproximava-me, e Auster era apenas uma miragem, um vulto entre uma multidão de leitores que faziam o meu trabalho sujo, distraiam-no o suficiente para que eu pudesse dar a estocada final. Ela estava sentada e sentei-me ao lado. Sussurrei a minha deixa ao ouvido; foi a última coisa que fiz, antes de acordar.

Kung Fu (David Carradine 1936-2009)


Há actores que valem mais pela presença do que pela técnica, pela adequação a uma personagem, ou pela composição de várias personagens próximas, construindo uma imagem que associamos de imediato a um corpo. Actores que não ganham Oscares (o pai dele, John, conseguiu um em Vinhas da Ira, de Ford)  - mas deixam uma marca para a eternidade. É claro que David Carradine é um mito da minha infância. Na série Kung Fu, o herói que vagueia pelo Oeste não cavalga nem usa um revólver - caminha e usa as mãos e os pés enquanto medita. O zen cool deverá ter sido a razão pela qual Tarantino escolheu Carradine para o papel de Bill; o corpo envelhecido, a crueldade controlada, a piedade; sobretudo, a voz, pausada, cava, uma dicção extraordinária. A presença é essa tranquilidade que o transporta na tela. Restará isso.

03/06/09

A obscenidade dos comboios

Aquela última sequência da Intriga Internacional, de Hitchcock, quando vemos um comboio a entrar num túnel, imediatamente a seguir ao beijo de Cary Grant e Eva Marie Saint. Não mostrar dizendo tudo. É assim que funcionam os sonhos: sublimam a realidade e substituem-na por símbolos. Freud teria razão. Sonhar com comboios apenas pode ser o óbvio.
Limitemo-nos à vida acordada. O prazer de viajar de comboio associa-se aos mistérios de infância. Recordo que vivia a poucos quilómetros de distância da linha do Oeste, e havia certas noites, quando o silêncio dominava, em que o ruído dos comboios nocturnos se podia ouvir, longe. Convenhamos que, para um adolescente assombrado pela insónia, aquele som vago, de origem incerta, podia ser aterrador. Não acreditava que os comboios pudessem circular à noite. Era tão simples como isso. Mas assustava-me a sério. E punha em andamento a máquina da imaginação criando sonhos inquietos.
Agora, o comboio é um utilitário. Usado diariamente, perde o halo misterioso que tinha. As viagens de longa distância, no entanto, continuamItálico a associar-se ao prazer, mas de outras coisas. Ler um livro numa viagem de Lisboa ao Porto, olhar a paisagem do Oeste, lembrar outros livros, como O Crime no Expresso do Oriente, passados em comboios. A razão do prazer: é como se fosse uma casa em movimento. Nós estamos lá parados, e já nos movemos. Sem darmos por isso, vamos de um ponto ao outro em pouco tempo. Paradoxos da relatividade. (Não nos podemos esquecer que o exemplo habitualmente utilizado para demonstrar a teoria da relatividade restrita tem a ver com andar de comboio. Porquê: a suspensão do tempo num comboio é quase palpável).
Lamento não ter feito o inter-rail, principalmente depois de ver o filme Antes do Amanhecer e o rosto absolutamente belo de Julie Delpy. Mas uma obra de arte é sempre uma possibilidade remota, e não há romantismo que possa salvar dessa miragem estatística que é conhecer alguém como Delpy numa viagem de comboio.
Entre lamentações e declínios, talvez já não acredite em interpretações psicológicas; em comboios e em tudo o resto. Mas o prazer continua a existir. Sublimado ou não.

(Versão melhorada de um texto publicado no Arquivo Fantasma)

02/06/09

A ocupação dos dias

A ocupação do tempo é uma coisa séria. Tão séria que desafio quem me vier falar em passatempo a um duelo nas minhas condições: que leve uma resma de palavras cruzadas, sopas de letras, selos e moedas, as suas armas, eu levarei as minhas, um ou dois filmes e alguns livros mais; ou apenas uma folha. Uma folha e uma caneta – dêem-me papel e tinta, e eu em troca oferecerei o mundo (se o mundo quisesse ser oferecido por mim). Não, não é de uma arrogância indesculpável eu achar que ocupo melhor o tempo a ler um livro do que a preencher quadradinhos com números, grelhas com cruzes e borrões; pode não ser melhor, mas é pelo menos mais estético (se até Oscar Wilde falou disso, é porque de ve ser). E mais do que baixar o nível, eu estou a levantar a moral dos filatelistas e numismatas que me lêem – amigos, o vosso passatempo é tão importante como o meu; ambos servem o mesmo propósito, ocupar o tempo. Esse sacana que ri nas minhas costas é assim mesmo: não é exclusivo, aceita ser cheio por qualquer um ou de qualquer coisa. O tempo é como um terreno vazio num município com presidente corrupto (e assim descrevo muito mais de metade das cidades do país), à espera do loteamento que virá. Pode acontecer que seja construído um belo edifício com fins culturais, uma obra de um arquitecto moderno de um ateliê nórdico, uma marca essencial na paisagem urbanística. Mas também pode suceder que seja construído um qualquer monolito de cimento para habitação social que depois é pintado de várias cores para disfarçar o puro horror da desarmonia geométrica. (Bem, não é uma boa comparação; quantas vezes acontece a primeira situação?) Seja como for, a ideia é essa: se do ponto de vista da utilidade do tempo, é tão inútil ler um livro como coleccionar bules de chá, por que razão escolher a primeira opção em detrimento da segunda? Ah, mas a culpa é da sociedade! A sociedade empurra alguns mortais para o abismo da pretensão, para o flagelo da Arte. E pior que um esteta consumado é um criador que julga que, ao escrever, está a enganar o tempo; não há força alguma que consiga transformar a natureza do tempo, que é ser uma espécie de espaço em aberto – não é contradição nem jogo de palavras; se pensar bem, chegará à conclusão que recordar o que passou depende apenas de um movimento (imaginário) no ar, um estender de mão milagroso. Ainda hoje lamento não ter avançado muito na colecção de selos iniciada aos treze anos. Aquela caixa cheia de papel e tinta de algum modo sorri para mim, lá longe no tempo (vêem?) A ocupação do tempo é uma coisa séria, e por isso se tivesse continuado (sem terminar, o coleccionador nunca dá por terminada a sua obra) eu seria alguém acima de qualquer suspeita, não o pretendente a um trono vazio na minha família: aquele que recusou a seriedade da vida e trocou-a pela Arte. Perdi-me.

01/06/09

Ontem como hoje

«Foi um "danado da terra" nas Vinhas da Ira de Ford-Steinbeck, no papel de Tom Joad. Aprendia com a família e com John Carradine o que era ser humilhado e ofendido. E, no fim, largava os seus para ir lutar por quantos vira serem injustamente expoliados. É noite e a mãe (fabulosa Jane Darwell) acorda ouvindo-o sair. Das razões dessa levada fala Fonda no mais comprometido e menos demagógico de quantos discursos semelhantes ouvimos em cinema. E diz que "enquanto polícias baterem", "enquanto houver gente com fome", "enquanto houver crianças que riem e acreditam", "I'll be there". Se quem não viu Grapes of Wrath pensar que é um fadinho, vá vê-lo e depois venha-me contar. John Ford era um conservador, Henry Fonda um liberal. Mas nenhum crente progressista, nenhum neo-realista italiano conseguiu jamais metade da verdade e metade da força. Saímos do filme com a certeza de que "we will be there" também, "seeing his face in some nice place". Nesse papel, estão as raízes perdidas das indomináveis convicções.»

João Bénard da Costa, em Muito Lá de Casa, ed. Assírio & Alvim