20/07/10

No One Knows/Queens of the Stone Age



Muitas vezes, a música pop é feita de transições na vida de uma banda que incluem saída e entrada de músicos, acasos que redefinem o som e muitas vezes a própria história da música.
Em 2002, os Queens of the Stone Age já tinham dois bons álbuns publicados, Rated R e o primeiro, homónimo. Os Foo Fighters eram uma das grandes bandas rock de época. Certamente que o êxito não seria suficiente para David Grohl, vocalista e guitarrista do projecto que sempre foi mais dele do que dos outros músicos que foram aparecendo nos álbuns e nos concertos, a ponto de no primeiro álbum ter tocado todos os instrumentos. Por um destes acasos, Grohl interessou-se pelos QOTSA e juntou-se a Josh Homme (que já nos anos 90 tinha estado numa banda marcante, os Kyuss, e a Mark Lannegan, antigo membro de outro projecto dos anos 90 que definiu o som da época, os Screaming Trees. O resultado desta cadeia de acasos foi um dos mais poderosos álbuns rock da história, Songs for the Deaf.
Aos riffs ácidos da guitarra de Homme juntou-se o baixo speedado de Nick Oliveri (membro fundador da banda) e a guitarra melódica de Lannegan. Já seria muito bom, este line up, mas o ingrediente que elevou o álbum a níveis estratoféricos foi a bateria de Grohl. Há quem fale de John Bonham como eventual competidor de Grohl. Eu acrescentaria também Keith Moon e Reni (Stone Roses) e não deixaria de gostar bastante do minimalismo de Stephen Morris (nos Joy Division). Mas sem dúvida (e talvez por ter crescido a ouvir Grohl nos Nirvana) que o duvidoso frontman de uma banda que nada de novo trouxe à música rock (os Foo Fighters) está neste Olimpo por mérito próprio, e muito à conta do seu trabalho neste magnífico álbum dos Queens of the Stone Age. Os riffs são certeiros e deslumbrantes e os solos são estonteantes - e todos os outros instrumentos vão atrás do trabalho do baterista. É claro que as melodias vocais de Homme e Lannegan, contrastantes com o som cru das guitarras, procuram, sobretudo nos dois singles mais conhecidos (No One Knows e Go With the Flow), a perfeição pop e a consequente consagração das tabelas. Mas o segredo do álbum (que não voltou a ser repetido nos que se seguiram) é a secção rítmica liderada pelo génio de Grohl. Passávamos bem sem um Grohl vocalista e guitarrista, mas se são os Foo Fighters que temos de suportar para ouvirmos estas aventuras de vez em quando, menos mal.

(Texto publicado inicialmente no Arrastão).

18/07/10

A cultura dos outros

Sabemos como funciona: uma mentira, de tanto ser matraqueada, acaba por se tornar verdade, o público passa a acreditar nela. De cada vez que se fala em Cultura - essa entidade difusa - lá vem o regimento do costume protestar contra a subsidiodependência e chamar de parasita para baixo aos "artistas". Sabemos quem são, mas, dependendo do partido que está no poder, acabam por aparecer novos indignados com a "pouca vergonha" que é a existência de artistas "independentes", que no fundo são dependentes do Estado e que, por isso, não conseguem criar de forma verdadeiramente independente - bela tautologia. A frase (apócrifa?) de Goebbels - "quando me falam em Cultura saco logo da arma" - é um brinquedo nas mãos destes privilegiados que, aposto (?), nunca terão beneficiado desta política despesista que subsidia a criação. Se lhes perguntarem, eles negarão que alguma vez tenham ido ao teatro, nunca entraram numa sala de cinema para ver um filme português (o sociólogo Gonçalves orgulhava-se, numa crónica, de associar sempre o cinema português a uma sessão de tortura), não visitam museus nem fundações e não compram livros editados em Portugal. Se forem coerentes, também não gostam de futebol nem põem os pés nos estádios construídos para o Euro 2004 - afinal a bola é cultura (do povo) e não há memória de subsídio mais oneroso para o Estado do que a organização desse campeonato. Pensando bem, esta gente que sente repulsa da subsidiodependência deve viver num planeta qualquer e apenas sabe do que se passa em Portugal pelos jornais, reagindo pavloveanamente - e, lá está, de arma em riste - de cada vez que o assunto "Cultura" vem à baila.
Talvez não adiante muito ler textos como o de Manoel de Oliveira, no outro dia no Público, no qual ele explicava como se processa a produção de cinema em Portugal. O final da crónica é essencial para percebermos as dificuldades de quem trabalha na indústria cinematográfica em Portugal. "Fazer filmes até morrer". É isso que Manoel de Oliveira deseja, mas não se pense que o quer fazer por amor à Arte. Ele, o nosso maior embaixador nesta área, apenas o faz porque a isso é obrigado - é assim a precariedade absoluta de quem precisa de novo financiamento para fazer o filme seguinte. E assim sucessivamente. Eu sei que quem vive nesse planeta bem pode dispensar o próximo filme de Manoel de Oliveira, ou o próximo de Pedro Costa, ou de João Canijo. O tal argumento repetido até à náusea de que apenas quem quer ver deve financiar esta Arte. Se não se auto-financia, azar, que se acabe com ela. O liberalismo económico é assim que deve funcionar, e enquanto não se estender este princípio a outras áreas da economia, como a Saúde ou a Educação, estes extraterrestres não estarão satisfeitos.
Claro que nenhum país se aproxima desta utopia liberal. Subsídios estatais à produção é prática comum no Ocidente, mesmo nos E.U.A., onde, pela dimensão, existem condições para haver uma indústria cinematográfica, um circuito de museus privados (mas, hélas, sempre com o apoio de dinheiros públicos), e uma oferta teatral que vai desde a Broadway até à off-off Broadway, os pequenos teatros independentes que, imagine-se, também obtêm fundos estatais para continuarem a sua actividade. Na Grã-Bretanha existe uma indústria cinematográfica mas, azar dos azares, também há apoio à produção de art films, através do British Film Institut; o Teatro tem também bastantes apoios do Estado; e os museus, esses que não foram visitados pelos nossos intelectuais de direita que abominam a subsidiodependência, são alimentados por mecenas, entre os quais, vá lá saber-se porquê, está o Estado, quase sempre o parceiro que tem mais peso no orçamento destas instituições. E não é tão bom não pagar entrada na Tate, no British Museum, na National Galery?
Podem vir dizer que estes são países de tradição liberal e... ah, mas não é nos países de tradição liberal que existe menos subsidiodependência? Não é aqui que o Estado não se mete em assuntos de criação e deixa os artistas serem verdadeiramente "independentes"? Pois é, uma chatice quando os factos contradizem os delírios liberais destes intelectuais. Curiosamente, é neste países liberais que os cidadãos menos se apoquentam com os subsídios à criação. A intervenção estatal nas áreas criativas apenas é um problema em países de tradição francófona ou, pura e simplesmente, de tradição tacanha e anti-intelectual, como é o nosso caso.
A mentira repetida - a de que a Cultura é um peso para um país e não deve ser financiada pelo Estado - acaba por ganhar adeptos em tempos de crise, confirmando uma ideia antiga: as elites são as principais culpadas do atraso endémico do país. O que é mais perverso nesta situação é saber que quem produz este tipo de opinião é quem tem - e terá - mais acesso à Cultura. Os outros, as populações fora dos grandes centros urbanos que vão tendo acesso ocasional à produção cultural - companhias de teatro regionais, cineclubes, museus regionais - serão os primeiros a sofrer se existirem verdadeiros cortes nesta área. Mas não se espere qualquer comoção vinda destes atiradores precoces - uma opinião politicamente incorrecta (a panaceia da direitinha liberal e da pseudo-esquerda iletrada que vive na sombra deste Governo) dispensa sempre a verdade e o mínimo de decência.

(Texto publicado inicialmente no Arrastão).

15/07/10

Duas mulheres

She Bangs the Drums/The Stone Roses



Os Stone Roses levaram anos a criar a obra-prima; e demoraram alguns mais a produzir uns dos segundos álbuns mais aguardados de sempre - ou assim me parecia, julgando pela histeria da imprensa inglesa que eu na altura lia, as manchetes do New Musical Express e do Melody Maker em pleno período de euforia britpop. O segundo álbum, Second Coming, deu cabo da reputação da banda e esta acabaria por se separar pouco tempo depois deste ser publicado (1994), em 1996, em consequência da saída do guitarrista John Squire e do baterista Reni. Pelo meio, Slash ofereceu-se para substituir Squire mas Ian Brown recusou - e continuo a imaginar o que poderia ser o som Stone Roses cortado com a guitarra hard-rock dos ex-guitarrista dos Guns'n'Roses.
De um som inspirado nos Who e nos Jam ao groove do primeiro álbum, homónimo, - o resultado desses anos passados. O sussurro de Brown para disfarçar a fragilidade da voz, uma secção rítmica do outro mundo (Reni e Mani), a guitarra entre o blues e o swing de John Squire. E um talento invulgar da banda para tornar cada música num épico, com mudanças de ritmo, crescendos emocionais, variações melódicas e apontamentos psicadélicos de guitarra resgatados à década de 60.
She Bangs the Drums é a perfeita música pop, uma de muitas naquele que é um dos melhores primeiros álbuns de sempre. Como dura apenas três minutos e quarenta e três segundos, só nos resta ouvir em repeat. E é sempre perfeita.

Álbum: The Stone Roses, Silvertone, 1989, produzido por John Leckie.

(Publicado inicialmente no Arrastão)