30/03/12

Boletim meteorológico

Há quem seja tragado pela mudança das estações. É a melancolia sazonal, o mal de viver partilhado por quem retira da repetição dos dias o conforto possível. Mas, quando a mudança das estações traz o contrário do que deveria? Quando, na passagem do verão para o outono, não vem frio, cinzento, a provisória morte da Natureza? Quando, chegado Outubro, ainda é verão? E se a primavera traz chuva, geada, o regresso às roupas quentes arrecadadas pelo aquecimento global no baú do inverno? Poderá a melancolia trocar as voltas às estações? Precisará essa sombra cinza e taciturna que as estações se confirmem, mudando? Estará sempre, sempre, vigiando, o determinado passo em falso do tempo?

O bom leitor

Andar pelos dias, dias a fio, sem ler uma única linha é como ser levado num barco em direcção ao alto-mar. Quando damos por nós, somos o que resta no mundo.

21/03/12

Tonino Guerra (1920-2012)

"Começou a desligar-se das coisas e dos homens. Olhava o jovem vaqueiro no rio e sabia que apenas podia admirá-lo, em seus gestos com o boi, mas não aproximar-se. Assim como da rapariga que, da árvore, colhia cerejas. Como se o ar formasse um muro diante de si. Então fixou a água, que a seus pés corria, e a água já não reflectia a sua própria imagem."

18/03/12

Blankets, de Craig Thompson

Blankets, de Craig Thompson, é uma novela gráfica publicada nos EUA em 2004 e que agora é traduzida e publicada pela editora Devir, na sua chancela "Biblioteca de Alice"*. Quase seiscentas páginas que demoraram vários anos a serem escritas e desenhadas. Mas valeu e pena. Na badana da edição portuguesa, uma frase de um crítico avança o lugar comum: "Eu chamaria a isso literatura". Como se muitos outros livros de banda desenhada - mesmo a mais mainstream, os comics - não pudessem ser catalogados como literatura. Não interessa agora desenvolver essa discussão, mas a verdade é que Blankets é literatura, independentemente de ter "bonecos" a acompanhar os textos. Mas as palavras escritas são apenas outra forma de contar uma história. A banda desenhada vive da integração das duas linhas da narrativa - o texto e as imagens - e o livro de Thompson consegue conciliar os dois universos de maneira quase perfeita. Uma história sobre o crescimento, um bildungsroman sobre o adolescente cristão que encontra o primeiro amor e  descobre as primeiras perplexidades metafísicas num mundo de certezas religiosas. E a neve, elemento da paisagem que envolve e marca a evolução da personagem. 
Há dois tempos na história: a infância, entre os 7 e os 10 anos, e a adolescência. A amizade - o amor - que unia Craig e o irmão desaparece com a passagem do tempo, e a transição entre as duas realidades é elegante e precisa. E aqui reside a grande força, a vantagem da linguagem da BD em relação a um romance sem imagens: a simultaneidade de tempos é possível quando as duas linguagens coincidem na mesma página. São quadradinhos, pranchas, páginas inteiras onde coexistem o Craig adolescente e a criança. O narrador conta as duas histórias a partir de um presente que nunca chegamos a conhecer, atraindo o leitor para um plano que transcende e subverte os tempos narrativos: o da memória. Algumas páginas chegam a ser luxuriantes, psicadélicas. A cor é desnecessária; até certo ponto o preto e branco reforça a presença da paisagem americana no livro: a neve branca, as árvores despidas, os longos Invernos passados na solidão do Midwest. 
As referências, são as correctas - para a minha geração. Craig cresceu nos anos 90, e aprendeu a afastar-se da educação familiar, do ambiente rural e sufocado pela religião, conhecendo a música certa: Nirvana, Joy Division, Cure, Radiohead, Violent Femmes, Vaselines. E estas referências apenas aparecem nas imagens: estas bandas apenas existem como fundo, no quarto de Raina, a namorada. A geração grunge tem aqui um retrato possível: subtil, apaixonado, nostálgico. Sim, continua connosco muito para além da última página; não há assim tantos livros que se possam gabar do mesmo.

*Inspirada pela frase de Alice no País das Maravilhas: "para que serve um livro, se não tem imagens ou diálogos". 

17/03/12

QOTSA

Música com punch massacrante, bateria a rasgar e um baixo denso e pujante, guitarra ácida. Melodias sacadas aos Beatles. Os Queen of the Stone Age são os herdeiros pop dos Kyuss, a primeira banda de Josh Homme. Parentes afastados do grunge mais pesado, via Mark Lannegan, o líder dos Screaming Trees, uma das bandas citadas por Kurt Cobain, e via Dave Grohl, baterista no álbum Songs for the Deaf. Há quem prefira Rated R, e eu percebo: é um álbum mais equilibrado e mais descontrolado, com adrenalina, anfetamina e coca à mistura. Mas "Songs" tem as duas melhores músicas dos QOTSA: Go with the flow e No one knows. Canções cumprindo o cânone pop dos três, quatro minutos, variações de ritmo fantásticas, o imediatismo de um refrão matraqueado até não sair da cabeça. Precisamos de exorcizar a calma com que estamos a encarar esta merda de país, esta merda de capitalismo. Precisamos de violência. Pode começar na música? Não sei, mas tem de começar por algum lado.

Ora foda-se

O Filipe Nunes Vicente tem toda a razão. Eu até gosto da poesia do Miguel Martins, mas... "foder é revolução e paz"? "O referencial e o auto-referencial argamassam o texto"? "Verdadeiro ethos escorre liberto"? O que é isto? Isto é crítica que dá mau nome à poesia, à boa ou à má poesia. Os poetas estão-se bem a lixar para o mau nome, mas um crítico não pode escrever para uma entidade qualquer que sim, está mais próxima de "um letrado de Alcabideche" do que... não, não vou falar do cabrão do João Gaspar Simões, há por aí gente a escrever em jornais que ainda faz coisas de jeito... mas isto? "Seguindo por entre fendas que ficaram em aberto"? A sério? "Entre a urgência e o coma"... há mais poesia e inteligência na porra de um combate de boxe do que em mil "interstícios" florescidos no pantanal da crítica de poesia nacional.

15/03/12

Sarcasmo

Raramente compreendo a boa ironia à primeira. Acabo sempre por apanhar o sentido - julgo eu - mas há qualquer coisa que se perde naquela suspensão do tempo. Foi a partir deste pressuposto que comecei a refinar o sarcasmo - sou um bruto entre finuras e subtilezas. Sobrevivo.

Frios

Algumas coisas que se perderam podem voltar; mas quando voltam, alguma coisa se perdeu. Entre a reconquista e a perda, acabamos sempre por ceder ao mais fácil, a idade torna-nos fracos, cínicos e frios.

Blankets

Grande literatura aos quadradinhos.

07/03/12

...

Vale a pena escrever, aproximação e fuga, efeito Doppler, o movimento da escrita, vai e vem, e depois não volta. A culpa, cristalina.

03/03/12

Half a person

Seis anos depois, ainda resiste, o blogue. Agora a música dos Smiths faz algum sentido, ela que ao longo da semana andou a assombrar-me as horas?

Call me morbid, call me pale 
I've spent six years on your trail 
Six long years 
On your trail 

Call me morbid, call me pale 
I've spent six years on your trail 
Six full years of my life on your trail 

And if you have five seconds to spare 
Then I'll tell you the story of my life: 
Sixteen, clumsy and shy 
I went to London and I 
I booked myself in at the Y... W.C.A. 
I said : "I like it here - can I stay? 
I like it here - can I stay? 
Do you have a vacancy 
For a Back-scrubber?"

She was left behind, and sour 
And she wrote to me, equally dour 
She said : "In the days when you were 
Hopelessly poor 
I just liked you more..." 

And if you have five seconds to spare 
Then I'll tell you the story of my life : 
Sixteen, clumsy and shy 
I went to London and I 
I booked myself in at the Y... W.C.A. 
I said : "I like it here - can I stay? 
I like it here - can I stay? 
And do you have a vacancy 
For a Back-scrubber?"

Call me morbid, call me pale 
I've spent too long on your trail 
Far too long 
Chasing your tail 
Oh... 

And if you have five seconds to spare 
Then I'll tell you the story of my life : 
Sixteen, clumsy and shy 
That's the story of my life 
Sixteen, clumsy and shy 
The story of my life 
That's the story of my life 

01/03/12

O banqueiro editor

Notícias do grupo editoral do banqueiro Teixeira Pinto, este mês na revista Ler:
"Tem neste momento alguma calendarização sobre a ordem porque serão publicados os inéditos?
AL - Não. É preciso um plano e um editor. Porque este editor não me dá garantias nenhumas. Nenhumas. Ter começado uma edição da opera omnia que interrompe durante ano e meio o que é que significa? Há qualquer coisa que não está a jogar bem.
O que é que significa, no seu entender: desinteresse?
AL- Sim. Porque eles não são livreiros, são especuladores de negócios. Têm os vícios da banca e das sociedades financeiras."
Excerto da entrevista a Alberto Luís, marido de Agustina Bessa-Luís. Quando entregam o negócio dos livros a azeiteiros, é natural que tudo seja tratado a martelo. Mesmo uma autora como Agustina. É o que temos.