10/04/07

Lynchland

Não vale a pena acordar e abrir os olhos. Fechamos os olhos e continuamos dentro das imagens, como continuamos dentro do sonho de onde acabámos de acordar. Falar sobre a experiência, escrever sobre a experiência sensorial a que somos submetidos em INLAND EMPIRE, restringe o campo das interpretações e reduz as possibilidades da obra continuar a persistir em nós enquanto experiência estética transcendental. Como se a sala de cinema fosse um prolongamento natural da realidade de onde acabamos de sair - ou a realidade para onde saímos fosse uma extensão do sonho que acabámos de viver. Há signos a serem descodificados? Claro que há, abundantes, em torrente, à espera de visionamentos que nunca completarão a leitura definitiva da obra. Há signos suficientes para acharmos a chave do filme? (Como se fossem pistas para o tesouro?) Muito mais que em "Lost Highway", por exemplo, a mais insolúvel das obras de Lynch.
Mas iremos abrir os olhos. E veremos Laura Dern, representando uma actriz, Nikki Grace, em busca de uma realidade que substitua a ficção que encarna nos filmes. Poder-se-á imaginar algo anterior a isto: antes do aparecimento de Dern, já existe Nikki Grace? Qual a ligação entre as primeiras cenas, filmadas com as personagens a falar em polaco (será? interessa a língua?) e o diálogo entre Dern e Diane Ladd, quando o tempo é movido dos seus eixos pela primeira vez ("Se fossem 9.45, já seria amanhã"). O filme avança, acompanhando o coelho apressado (qual é o enigma dos coelhos? Era difícil encontrar pista mais óbvia), através do país das maravilhas, fugindo de Alice, e estamos já no set de um filme que retoma outro que nunca foi terminado. A maldição é um pretexto, entramos e saímos de cenários que são como se fossem mundos onde vivem diferentes personagens. Hollywood é um conjunto de edifícios espalhados por quilómetros ou uma série de realidades paralelas unidas por portas (abrindo e fechando) e buracos (na seda - o cigarro que queima o tecido lembrando fita a arder -, no útero, no abdómen), realidades dinâmicas influenciando-se mutuamente, onde cada acontecimento pode ter repercussões noutro lugar qualquer deste continuum espacio-temporal que mistura o real e o sonhado, alucinação pura, onde cada um dos seus actores (no sentido lato do termo) pode desempenhar diferentes papéis em diferentes tempos e espaços? Logo ao início, Justin Theroux (enquanto Devon Burke, actor do filme "On High in Blue Tomorrows", que poderá ser traduzido como "alucinando com amanhãs tristes") vai procurar no cenário do filme alguém que entreviu e, através de corredores e túneis (o útero), persegue uma sombra. A sombra, vimos a descobrir mais tarde (o tempo continua a fluir de uma maneira muito própria), é Laura Dern, que é Nikki Grace, que é Susan Blue, personagem do filme dentro do filme. Será também mais tarde a actriz morta pelo marido atraiçoado, em "Blue Tomorrows" remake como no original, como na realidade, que na verdade nunca sabemos se acontece: será que o desejo de Grace é satisfeito? INLAND EMPIRE é um hino a Laura Dern e está construído em torno do seu estado mental. Apenas temos acesso à sua mente; mas através dela, conseguimos vislumbrar o mundo, os seus sucessivos planos sobrepondo-se até ao infinito (a imagem da televisão dentro da televisão; a realidade no ecrã de cinema multiplicada; o nosso olhar acrescentando mais um plano ao tecido da realidade, atribuindo consistência à sucessão de imagens do virtual e completando o Todo do filme). Quando Susan Blue morre no passeio (e o sangue cai em cima de uma estrela, uma Dorothy que recorda a que se perdeu na terra de Oz), e o realizador do filme diz corta, outra sequência começa, até à celebração final, já com o genérico final a correr, uma celebração do cinema e dos seus mitos, a sua tentativa de transcender a realidade de onde nasce, até surgir uma nova no seu lugar.
Em Cannes, depois da projecção do filme, alguém perguntou a David Lynch se tudo estava bem com ele. Melhor do que nunca, a julgar pela fulgurante lucidez de INLAND EMPIRE. Se não fosse sempre um desafio cada obra nova de Lynch, eu diria que aqui ele atingiu o seu cume enquanto realizador de cinema. O "Citizen Kane" para esta década. E um dos seus mais compreensíveis filmes de sempre.

[Sérgio Lavos]

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