30/05/08

Berlim (excertos) #5

Foto: Sérgio Lavos

É uma daquelas verdades que se tornam reais quando por elas passamos: em Berlim, a história susteve o seu impulso durante algum tempo, deixando marcas nos edifícios, nas ruas, sobretudo nas pessoas.
Não são só apenas os museus ou os monumentos; ao caminhar na rua, podemos deparar com um sinal de outro tempo, uma placa de metal incrustada no passeio, em frente a uma casa, assinalando a vida de um judeu proeminente que terá ali vivido e que acabou morto num campo de concentração. Duas linhas paralelas atravessam grande parte da cidade, duas linhas irregulares que avançam pelos passeios, pelas ruas, cruzando jardins e parques, duas linhas dolorosas que são como uma cicatriz no tecido urbano - o vestígio que resta do Muro de Berlim. Ninguém poderá escapar à tragédia. Para um turista ela tem um significado apenas pitoresco, para um imigrante nada pode significar; mas um berlinense dificilmente escapará aos ecos que se repercutem no presente. O rigor alemão e o amor à ordem, que poderão ter conduzido o país no passado a becos sem saída, transformaram a cidade de Berlim num gigantesco memorial, numa memória viva - oitenta por cento da cidade foi erigida depois da destruição da Segunda Guerra Mundial, e existem áreas da cidade que não têm mais de quinze anos, edificadas depois da queda do Muro.
A cidade é simultaneamente passado e presente, memória do caos e presença viva da ordem; a geometria regular repete a cidade de outros tempos, provando que o espírito de um povo é imutável. A linguagem da técnica pode conduzir ao horror mas também sobreleva aquilo que de melhor tem o ser humano; o equilíbrio precário manter-se-à até quando?

[Sérgio Lavos]

28/05/08

Todas as coisas

É difícil estar simultaneamente de bons termos com Deus e com o baixo-ventre.

Etty Hillesum

A humanidade

Comprei o Diário de Etty Hillesum (editado pela Assírio & Alvim) por razões que nada têm que ver com as razões de muitos dos que compram (ou vão comprar) o livro. O que me atraiu na história desta judia holandesa vítima da perseguição nazi na Segunda Mundial foi o sentido absoluto de purificação do corpo para redimir os pecados da alma. O diário evolui de um registo entre a nevrose aguda e um deslumbramento com as propriedades mágicas do desejo sobre o corpo para um conjunto de meditações sobre um despojamento apoiado numa crença que não admite a dúvida. O Deus de Etty é verdadeiro porque lhe permitiu reencontrar um caminho no interior do caos; ela recusou a fuga, entregou-se ao sacrifício, por razões tudo menos espirituais (como sucedeu com Santo Agostinho). Que o tenha feito durante um período no qual o tempo humano se suspendeu, reforça a força da sua entrega. No coração do seu fervor místico, da sua loucura religiosa, pulsava a humanidade no seu estado sublimado. Será talvez por isto que conseguimos sobreviver ao Holocausto.

[Sérgio Lavos]

26/05/08

My Blueberry Nights

Quanto vale um filme imperfeito de um realizador responsável por um percurso quase sem mácula? Vale o que vale My Blueberry Nights.
Estamos no cinema de Wong Kar-wai, mas o território é outro. A câmara desloca-se para a paisagem americana, e como já foi assinalado por vários críticos, deslumbra-se. Para além disso, o realizador aproveita para visitar as referências pictóricas habituais (para quem filma a América): Edward Hopper, Cindy Sherman, William Eggleston. Depois da ruptura com o director de fotografia Christopher Doyle, Kar-wai convidou Darius Khondji, que já trabalhou em filmes como Delicatessen, Se7en ou Zidane-Um Retrato do Século XXI. Teria sido arriscado afastar-se de Doyle, grande responsável pela criação de um mood cénico no qual as personagens habitam. A Hong-Kong de Wong Kar-wai é tanto dele como de Doyle; o grão manchado pelos néons, as transições entre sombra e luz, a criação de vazios urbanos dos quais a luz natural está praticamente ausente (é sempre noite nos filmes de Wong Kar-wai, chove e chove), tudo contribui para definir o contorno das personagens, passageiros naufragados da cidade.
O caminho de Khondji é outro; a principal marca autoral é o estilismo camaleónico, que se adapta ao estilo dos realizadores com quem trabalhou, o que deve ter facilitado o processo. O resultado final é uma colagem a todos os clichés da paisagem americana: os diners, as montras, as janelas do voyeur, a estrada, as cidadezinhas do interior, Las Vegas. Um empregado de balcão que vê passar milhares de vidas pelo restaurante, captando o momento em que o contacto acontece. Pormenores aludindo a um retrato íntimo; as chaves na taça, a conta por pagar, o jogo de poker por terminar.
Os clichés estão lá, mas não importa; a elegância de um reconhecimento inevitável salva o filme. No fim de contas, Wong Kar-wai sempre filmou a América; mais, sempre filmou o cinema americano, recriou imagens anteriores ao seu cinema. A distância de Hong-Kong à América é puramente mental. O cinema cria mundos que exigem ser olhados, criados.

[Sérgio Lavos]

23/05/08

Um aniversário, dois conselhos e um regresso

Parabéns ao Henrique Fialho pelos três anos de Insónia; três anos a escrever, à margem do circuito habitual da literatura e da crítica literária, e sempre bem; é obra.

O melhor blogue do momento é o Vontade Indómita, de Pedro Duarte Bento; viver em Nova Iorque facilita bastante, mas deve-se dar algum crédito ao estilo, caramba.

A não perder este texto, e este, do João Galamba, no Cinco Dias. Desmontar o que parece ser fácil de desmontar pode exigir bastante argúcia. Cutucar o vespeiro é complicado. Galamba atreve-se às duas coisas.

Ainda bem que o André Moura e Cunha voltou. Para Nunca Mais partir, espero.

[Sérgio Lavos]

22/05/08

Berlim (excertos) #4

Foto: Susana Viegas

As primeiras cerejas, chegaram. Não vale a pena lamentar o fim do hábito de esperar pela fruta da época; continuemos a fingir que durante o ano inteiro não foi possível encontrar cerejas à venda.
Em Berlim, bancas de fruta e legumes encontram-se nas estações de metro, nos terminais de comboios; por trás da banca, raparigas polacas ou ucranianas vigiam quem passa e esperam que quem passe pare e compre os morangos, os espargos, as cerejas. Meio quilo custa quatro euros - muito mais do que por cá, contrariando a tendência de preços da cidade. O ruído dos comboios, contínuo (passa um de dois em dois minutos), o movimento das pessoas, mais lento do que se poderia esperar, as raparigas de olhos azuis vincados pelo excesso de maquilhagem remexendo na fruta, acondicionando os montes, colocando as maçãs dentro dos sacos, moeda passada de mão em mão.
E as cerejas, brilhando sobre tudo; uma rapariga de lábios da cor da cereja que trinca, relógio da estação no meio-dia, o barulho de um comboio a parar.
Há um ritmo certo para as estações; um ciclo natural para as cerejas. Em Maio, as mãos das raparigas esperam que o tempo curto a que a cereja tem direito seja prolongado para além do razoável. Mas nenhum artesanato pode contra a decadência da casca, da carne, o cheiro a podre que virá. Dentro de alguns horas, a estação fecha, o resto das cerejas vai para o lixo, a rapariga parte no último comboio da noite. Terá de ser assim.

[Sérgio Lavos]

Berlim (excertos) #3

Foto: Susana Viegas

Na minha bagagem, tenho por hábito levar um livro de algum modo relacionado com a cidade que visito. Conhecer os lugares através da literatura sempre foi mais fiável do que usar um guia turístico. Vila-Matas e Montálban acompanharam-me nas viagens que fiz a Barcelona, Virginia Woolf foi comigo para Londres (e Nick Hornby, em espírito). Mas Berlim era um problema. A língua um escolho, o desinteresse pela literatura alemã (excepto a poesia) uma montanha. Parti sem lastro, sem livros. Mas, compensando, levei muitas imagens. E de quem? Haverá Berlim que não seja a de Wim Wenders, a cidade de Asas do Desejo, de Tão Longe, Tão Perto? Um anjo da Vitória a um metro de distância, a meio da cidade, no centro do Tiergarten, o anjo da panorâmica sobre a cidade, o anjo que Damiel não quer ser, sombra vigilante pairando sobre os edifícios de uma cidade a preto e branco, ainda antes da queda do Muro. A memória atraiçoa a memória, no entanto. Já lá vão anos desde a última vez que vi qualquer um dos dois filmes, e pouco me lembro da história; mas recordo o fascínio, o primeiro fascínio do primeiro filme que vi de Wenders. Não há filme imperfeito que não possa captar a perfeição de um lugar. A paisagem precisa do olhar deslumbrado do estilista; a viagem confirmou a impressão deixada pela câmara de Wim Wenders.
Não precisei de literatura, levei as imagens na bagagem. Berlim pelos olhos de um anjo.

[Sérgio Lavos]

21/05/08

Berlim (excertos) #2

Foto: Sérgio Lavos

A sub-população ajuda a justificar o ar limpo e airoso dos transportes públicos; a tradicional eficiência alemã completa a ideia. A verdade é que poderia ter corrido mal noutra cidade qualquer. Mas o modo como a urbe se organiza, de um centro verde, o Tiergarten, para a periferia cortada a meio pelo fantasma de um muro, explica a perfeição da rede de transportes. Os comboios circulam em redor deste centro, cruzando-o uma ou duas vezes apenas, e o metro atravessa diametralmente o círculo sem incomodar o descanso que a paisagem proporciona. E depois é sempre fantástico passearmos por uma cidade que faz lembrar Metropolis, de Fritz Lang, com as linhas de comboio suspensas a alguns metros das ruas, as carruagens deslizando sobre as cabeças, cortando o horizonte verde que espreita a cada esquina. Por duas ou três vezes, vêem-se edifícios ligados por corredores no ar, e parece que a realidade (mais precisamente, os arquitectos que projectaram a estrutura) imita o cinema. De qualquer modo, quem vive em Berlim nem precisa de desfrutar da eficiência da rede de transportes públicos - todas as ruas são dotadas de ciclovias; milhares de bicicletas circulam, e lá se vai a ideia de que viver numa cidade é menos saudável do que viver fora dela.

[Sérgio Lavos]

20/05/08

Berlim (excertos) #1

Foto: Susana Viegas

Na praça Breitscheid, a primeira impressão não foi a melhor; cosmopolitismo sujo, restaurantes de fast-food a espalhar lixo em redor, bric-à-brac de lojas ao melhor estilo de praia, souvenirs e livros de saldo, turistas mais ou menos serenados à procura de um lugar melhor para visitar, freaks de garrafas de tinto na mão a atirar migalhas aos rafeiros que os acompanham, músicos mal amanhados a pedirem meças ao seu jeito desajustado. A igreja Kaiser Wilhem-Gedänichts é uma ruína cuidada no meio de escombros da pós-modernidade. O resto da igreja, o altar que as bombas pouparam, apinhado de pessoas espreitando um princípio da história; a nova igreja em frente - no fundo uma desilusão, com edifício da Bayer e centro comercial Europa à mistura, e o berço do festival de cinema, o Zoopalast, envergonhado a um canto da praça.
Naquele nódulo do tecido urbano, a cidade concentra parte do pior, deixando no entanto entrever, acomodada às linhas planas que se estendem a partir dali, a geometria clara e rigorosa que se ergueu a partir de uma ferida. Uma luminosa cicatriz no mapa da Alemanha.

[Sérgio Lavos]

18/05/08

Nationalizar a indústria

Uma semana fora e o único facto político decente foi o memorável concerto dos The National a que não assisti. Rezam as crónicas que até cegos começaram a ver enquanto ouviam os rapazes tocar e o Matt Berninger gingar pelo meio do público - ouviam mesmo Berninger gingar e gritar, não exagero. Assim, falando de cor, à distância, digo apenas: desconfiem dos milagres. É o que eu faço sempre que ouço falar da IURD ou da recuperação económica do país.

[Sérgio Lavos]

Minguante nº 10

Da revista Minguante também saiu um novo número. Com um conto meu. Sigam este link.

[Sérgio Lavos]

Malagueta #9


Novo número da revista Malagueta. Aqui.

[Sérgio Lavos]

07/05/08

The Last Shadow Puppets



The Age of the Understatement

É notório: Alex Turner e Miles Kane andaram mesmo a ouvir Scott Walker. O primeiro vídeo foi realizado por Romain Gavras.
Kiss me properly and pull me apart.

[Susana]

05/05/08

Um escritor promissor

Carta recebida por L. V. de Camões em 1572:

Exm.º Sr.

recebemos com mui agrado a obra que nos propôs para publicação, e a ela dedicámos atenção e tempo que julgámos ser necessário à fruição devida.
O começo de uma intensa pujança colocou-nos logo de sobreaviso. Longas horas de deleite esperavam por nós, não ouse julgar o contrário, e a perfeita singeleza daqueles primeiros versos não deixavam lugar para dúvidas. Avançámos com confiança e a cada nova estrofe o espanto e a admiração cresciam em nossos corações, tal o labor e a perícia, dignos de um Virgílio ou de um Dante, que sua excelência demonstrava; o ritmo, o labor da construção, a exaltação heróica de um povo, a intromissão da mão divina nos assuntos terrenos, o modo como intercala os mundos conhecidos e os desconhecidos, todos estes predicados nos foram entretendo em tal enlevo que nos fomos mantendo acordados, durante horas e horas de puro prazer estético.
Não chegou uma leitura apenas, confessamos; aquelas páginas, ali pousadas sobre a mesa, continuavam a clamar por nós. Depois de duas leituras, decidimos, no entanto, não ir além com a publicação. Como já deve ter percebido, não se trata daqueles casos muito comuns de recusa por falta de qualidade literária, qualidade que na sua obra é, de resto, indiscutível; mas talvez – e isto se calhar vai parecer-lhe estranho – de um excesso de qualidade; ou seja, cremos que, apesar de a temática da obra ser extremamente actual, a estrutura e a linguagem adoptadas dificultam frequentemente a compreensão da história, fazendo com que o livro não possa ser compreendido no seu todo por um público que não seja suficientemente culto e sofisticado. Talvez as gentes deste tempo não estejam preparadas para um tal avanço nas letras. Como tal, lamentamos o incómodo e agradecemos a profunda emoção provocada em nós pelas páginas por si escritas. Aconselhamos a guardar como o mais rico tesouro a obra que escreveu, para que as gerações vindouras possam descobrir tal manuscrito e assim maravilhar-se com uma relíquia perdida da literatura.

Muito respeitosamente nos assinamos,

(assinatura ilegível)

[Sérgio Lavos]

02/05/08

Via de sentido único

- E se não souberes ler o mapa, o que fazes?
- Podes sempre culpar os teus pais.
- Ou virar o mapa ao contrário.
- Humm...

[Sérgio Lavos]

Maio de 08

Os tempos nunca foram tão bárbaros para a juventude inquieta a que cada geração tem direito. Faltam causas, é verdade. Sobra materialismo e mil e um gadgets para consumir. Imagine-se, os ideais até se podem comprar no e-bay, enquanto se espera que acabe de descarregar aquele álbum daquela banda que alguém ouviu e acha que daqui a seis meses vai ser ouvida por toda a gente que não está na onda.
Instantaneidade e simultaneidade. Tudo agora e várias coisas ao mesmo tempo - menos o sexo, claro, que os delírios de Zabriskie Point já foram há quarenta anos.
Por isso, a juventude de agora, que tem tudo menos carreira, casa e uma perspectiva estável de futuro, alegremente é alimentada pela teta dos pais de 75, que nada querem fazer para deixar de ser os salvadores de um país perdido no nevoeiro do fascismo.
O problema, caro Watson, é claramente este: isso tudo de que falam, precariedade, desemprego pós-licenciatura, novas oportunidades falhadas, desânimo, depressão e horror com pipocas à mistura é um eterno sonho de uma outra juventude: a dos nossos pais, que com todo o amor do mundo desejam que bem estar, paz, pão e liberdade sejam, não uma escolha dos seus filhos, mas o leite da teta que caridosamente oferecem. Não há uma única solução viável para acabar com o labirinto da falta de escolha que se apresenta a esta geração porque a vontade desapareceu há muito; os pais desta geração puxam a rédea de cada vez que ela se tenta libertar, em perpétuo movimento reaccionário. O resultado de uma revolução sem sangue é uma juventude sem pinga de sangue nas veias.
Independência ou morte? Morte a longo prazo, como o lume de uma vela a extinguir-se (enquanto se ouvem as palavras de uma rock star cantando o oposto).

[Sérgio Lavos]