30/06/06

O bico ao prego

Vasco Pulido Valente decide escrever sobre futebol. Vou repetir: Vasco Pulido Valente - como muitos dos que estão a ler este texto sabem - decide escrever sobre futebol. E o que ele tem a dizer sobre o assunto? Mal. Ah, admiro a coragem deste homem. Na última página do Público, lá está a palavrinha mágica a saltar aos olhos de um qualquer leitor imprevisto. Futebol. E o que ele diz sobre o assunto? Bem, reparem nas contradições: acha o desporto "muito chato" e não consegue justificar o tempo que perde com ele. Antes que se faça qualquer associação livre ao tema do cinema português, ele prossegue. Diz que lhe é indiferente que Portugal ganhe ou perca. Irrita-se com o estendal montado das bandeiras, com o Marcelo, com o circo mediático. Mas vê. Não perdeu mais de meia dúzia de jogos, o que acaba por ser mais do que aquilo que a maioria dos que se dizem amadores da coisa vêem - falo de mim, claro, o problema dos jogos em canal codificado é inultrapassável; nada de urros em locais públicos, cheiro de courato frito ou sambinha dos brasileiros a cada finta, passe ou traque de Ronaldinho e C.ª. E, imagine-se, Vasco Pulido Valente resigna-se à pressão da "atmosfera" e confessa que não lhe interessa ficar à parte do entusiasmo universal. Esperem! Li bem? O último dos gauleses sai da trincheira e junta-se ao Império? O amargo, pessimista, cínico vedor das causas da decadência dos povos lusos concilia-se com o mundo e abraça calorosamente os milhões que javardamente celebram o vazio do espectáculo futebolístico? É esta a razão? Para cavalgar a onda? Um desporto, repito, "muito chato", que não vale o tempo que se perde com ele? Pacheco Pereira, se estivesse morto, estaria neste momento a dar voltas na tumba. Só nos resta então o historiador ubíquo, pobres de nós, só nos resta ele. Aprisionado na sua implacável farda de intelectual blasé de inspiração saxónica e liberal, vociferando para o resto de nós (Pulido Valente incluído) o quão ignóbeis somos. Baixos. Medíocres. Indignos da cabeça gigantesca que o encima.
O que Vasco Pulido Valente tem a dizer sobre o futebol? Mal, apesar de passar horas em frente ao aparelho a ver os jogos do Mundial. A ver o pré, o durante e o pós desafio, as nauseantes reportagens televisivas, as inacreditáveis entrevistas aos jogadores, técnicos, apanha-bolas, populares de garrafão de vinho tinto às costas, aos empregados de restauração e às camisolas dos jogadores, às mulheres e aos bifes que vão ser consumidos pela comitiva - "então, acha que o jogador que está prestes a ingeri-lo tem hipótese de jogar no Sábado?" "e depois da digestão feita, vai assistir ao jogo?".
Enfim, safam-se as bicadas em Marcelo - como comentador de futebol um cruzamento entre Gabriel Alves e o Horácio Caramelo que nos fala de Ontário, no Canadá - e fica a faltar a referência menos velada ao achado que foi convidar o Dr. Paulo Portas para escrever sobre futebol. Bem, se formos a ver bem as coisas, faz algum sentido o convite do... (nem sei bem em que pasquim Portas escreve). Coerente com a pose postiça de Portas na vida, um pouco como a falsa tartaruga de sopa de Lewis Carrol; falso jornalista de direita, falso liberal, depois falso conservador, falso líder de um partido católico, falso católico, falso político populista, falso ministro de Estado, cabelo falso, bronzeado falso, dentes falsos, falso membro do PP na reserva, falso comentador neutro de televisão. O último degrau na escada deve ser o que acede directamente ao comentário futebolístico, imagino. A um passo do elevador que desce a grande velocidade ao oitavo círculo do inferno, aquele que acolhe com prazer quem já só consegue viver da imagem na televisão ou no espelho, o político feito de vidro baço e vácuo, quase nada.
Ah, Dr. Vasco Pulido Valente, se não fosse o gozo que me dá ler as suas crónicas e os seus livros de História, escreveria um texto a dizer mal de si, juro que o faria. Mas respeito-o. Respeito.

[SL]

29/06/06

A Crítica

O romance da Fátima Lopes? Amar depois de amar-te? Se é bom, é isso que pergunta? Se dizem que sim, é porque deve ser. Dizem, dizem. Na televisão. Dizem. É giro. O prémio da APE? Tenho de ler, foi premiado. Se recebeu um prémio, é giro. Ainda ontem o Marcelo, no intervalo dos seus pré-claros apontamentos sobre a bola, falava de um livro qualquer de um autor qualquer editado numa editora qualquer. Compramos? Claro. Prémios, felicitações, bicos de pés, luzes pálidas incidindo sobre as letras. Preciso de ajuda. A sério, necessito que me ajudem. Tenham a bondade de me auxiliar. Anseio por consolo e orientação. Penso positivo. Ouço o que os outros ouvem, leio os que os outros lêem, procuro nas livrarias obras com títulos que me puxem para cima, "pense positivo", "ajude-se a si próprio" "compre o meu romance" "polémico", "conspiração templária" "a 4ª cruzada" "delírio na cerimónia de entrega do prémio literário". Gostava que me ajudassem a ouvir a verdade no meio do ruído. Compra. Vai. Pega em mim e leva-me para casa. Acarinha-me com amor, toma conta de mim até adquirires o próximo descartável. A minha opinião? Quer saber qual é a minha opinião? Pergunte-me. Política? Eu percebo. Economia? Sou especialista. Sociologia? Domino na perfeição. Cultura? Ninguém melhor que eu. Arte? Sou eu o entendido. Futebol? Oh, pá, cá estou eu, de dedo no ar. Vida sexual da lesma asiática? E encontra outro conhecedor neste país de gigantones e zé-robertos? Ajudem-me, por favor, que as férias ainda vêm longe. Deixem-me sentir na pele o entusiasmo que há tanto anda afastado de mim, trata-me como se não houvesse amanhã e estivesses presa comigo num elevador parado entre dois andares. Com um livro na mão e uma esponja na outra. Grudada ao metal frio e ao espelho quente. Preciso de ajuda.

[SL]

Sobre os leitores

"O público, dizíamos, abdicou uma vez por todas dos seus poderes de verificação e de controle, conformou-se, resignou-se como um animal doméstico a viver num cinzento quotidiano, a agarrar humildemente o que lhe dão sem procurar razões."

Julien Gracq

[SL]

28/06/06

Futebol

Caro Rui,

compreendo o que escreves, entendo os teus argumentos, percebo onde pretendes chegar. Concordo em quase tudo porque não posso discordar de um gosto pessoal. E, para dizer a verdade, também me escapa a razão da euforia patriótica que toma conta do país nestas alturas, principalmente desde o Europeu de há dois anos atrás. Quer dizer, sei porque aconteceu. Como me dizia um brasileiro no outro dia, Scolari conseguiu colocar um povo a amar a bandeira sem vergonha, conseguiu unir uma pátria em torno de um objectivo comum. Tinha de ser um brasileiro, de resto. O futebol é a alma do Brasil, o que melhor espelha as características de um povo. Parte desta identificação étnica foi trazida por Scolari quando fez o apelo às bandeiras há dois anos. Ajudou também o jargão guerreiro, o discurso motivador a funcionar junto dos jogadores e ao mesmo tempo a estender-se ao resto do país, esse eterno animal arrastando o focinho pelo chão, na lama da crise duradoura. Por isso vemos seres humanos absolutamente normais durante o resto do ano, gente que nem olha para a televisão quando dá bola, cidadãos sem clube, maus chefes de família e intelectuais tristes transformarem-se em selvagens, belos e sentimentais, como escreveu Javier Marias, durante o tempo que dura o Mundial. E, cúmulo do cúmulo, as mulheres, de olhar fixo nas pernas dos jogadores a emocionar-se ao lado do namorado, do marido, retirando ao homem a possibilidade de este usufruir de um dos poucos gestos permitidos pelo tabu sexual: o abraço ao companheiro do lado aquando do golo. Elas não percebem nada, é verdade, mas dão beleza a um desporto de brutos - reveja-se o Portugal-Holanda. Para dizer a verdade, os únicos que não conseguem aceitar a onda de alegria são os adeptos ferrenhos dos clubes, portistas à cabeça, os coitados que sofrem com os penosos jogos do campeonato nacional e discutem ad absurdum as minudências de cada jornada; já ouvi dizer, da boca de um benfiquista, que a selecção é nada, discorrendo de seguida sobre a meia equipa encarnada que não foi convocada por Scolari e sobre as razões porque Simão e Petit devem jogar em vez de Costinha e Ronaldo. Não ligo, apesar do meu confesso benfiquismo.
Podemos discutir: não existe uma parolice nesta euforia em torno da selecção? Claro que sim, é como as sardinhas e Fátima e os santos e a javardice dos pedreiros quando passam raparigas nas ruas. Mas existe também um sentimento único de pertença a qualquer coisa que quase sempre parece intangível. Ter orgulho do país onde nascemos, e mesmo sabendo que isto é um facto acidental, ajuda-nos a firmar raizes no mundo. Ninguém quer ser apátrida, como ninguém deseja ficar órfão. Ama-se a pátria como se ama a família a que se pertence: por uma fatalidade e por renúncia à nossa natureza mais profunda - o egoísmo. Aprender a aceitar este amor burro torna-nos seres sociais, mais em paz com todas as contrariedades e incongruências que a vida tem para nos oferecer.
Mas o que isto tudo tem que ver com futebol? Absolutamente nada. Ninguém te pode convencer a gostar do jogo. A estética do desporto, que nada tem a ver com a clubite aguda ou o patriotismo passageiro, é inexplicável. Podia falar aqui do rigor dos passes de Deco, da vertigem das fintas de Ronaldo, da força admirável de Figo enquanto jogador e pessoa, da emoção que é ver Miguel pegar na bola cortando um passe para Robben e desatar a correr por ali fora, como se não houvesse amanhã, em direcção à baliza adversária, e no final, oh, beleza suprema, falhar o golo. Podia descrever cada pormenor que foi estudado antes pelos jogadores a ser aplicado em campo, ou então ver tudo de pernas para o ar, a desordem total, e ainda assim esperar a qualquer momento um sprint de Simão, um drible para o meio, aquele disparo que sempre se espera quando Simão finta para o interior do campo, porque o jogo é caos que nasce da ordem do treinador. E que volta ser ordem apenas na repetição televisiva. Quando tudo corre bem - isto é, quando a nossa equipa ganha - os defeitos e o sofrimento desaparecem do passado, como se nunca tivessem existido. Semelhante à guerra? Supera-a, porque nenhum combate é real, tudo é simbólico, saído da imaginação de quem joga e manda jogar. Perfeito como a Arte. Arte.

[SL]

26/06/06

Até os comemos

Venha quem vier, cá estaremos. Mérito de Scolari, que contra os críticos e os poderes instalados conseguiu transformar o habitual grupo excursionista de outros Mundias num conjunto de guerreiros que deixam o suor, a pele e a carne, se necessário for, em campo. Agressão de Figo? Não brinquem; depois do duplo abalroamento de Ronaldo e da incrível falta de fair-play dos holandeses depois da bola ao chão, Figo agiu como sempre: um líder em campo e o melhor jogador português desde Eusébio.

[SL]

25/06/06

A Literatura no Estômago

Disperso-me do futebol. Não vejo, estou fora. Assisto com pouco ânimo ao jogo de logo à noite. Há excitações tão breves que nem valem a pena. Há entusiasmos tão tocantes que me deixam a pensar no tempo que perco com as breves excitações que por vezes me transportam.
Um livro em duas partes brilhantes, o prefácio de Ernesto Sampaio e o texto de Julien Gracq: A Literatura no Estômago. Não é uma novidade, um livro recente, um clássico em nova tradução, um autor inédito em português ou uma poderosa revelação. Não é um livro que fale de uma conspiração secreta, nem do amor nos tempos modernos, nem de uma figura esquecida da nossa História que urge recuperar, não é um livro que fale do estado da crítica em Portugal. Bem, talvez seja. Esta última hipótese. Um panfleto feroz contra o situacionismo da literatura francesa em 1950, digo, e tentarei explicar já de seguida o que este assunto tem a ver com o nosso burgo em 2006.
Julien Gracq pagou a ousadia, mas teve a última palavra. Afirmo (seguindo Ernesto Sampaio): o combate de Gracq contra os poderes ocultos do establishment cultural francês da época, contra o coma em que estava mergulhada a literatura francesa desde a revolução do manifesto surrealista de Breton, contra os nomes que decidiam o gosto do público, desde os comunistas aos anti-comunistas, e Gracq tem a coragem de os convocar todos - Camus, Gide, Malraux, etc. - teve como imprevista consequência a atribuição, dois anos depois, do mais prestigiado prémio francês, o Goncourt, trazendo na cola a quase mortal frase de um dos membros do júri: "Um surrealista que escreve como um professor - ora aí está o laureado ideal." Touché? Não, Gracq recusou o prémio. O livro? O fabuloso "Le Rivage des Syrtres", que li há uns anos numa tradução de Pedro Tamen (ed. Vega).
Leio num jornal (interessa saber que é o Público?) a resposta de um desses críticos ubíquos que se queixam da exiguidade do espaço mediático a uma inventiva de outro crítico que se reclama defensor do último bastião de pureza e independência do pensamento cultural português. A mesquinhez faz-me uma certa impressão, lembra-me sempre as matanças a que assistia na minha infância, quando o porco era dependurado pelos pernis com uma corda e lhe abriam a barriga de alto a baixo, escorrendo para fora sangue e tripas, fígado e estômago e pâncreas, os vapores digestivos espalhando-se em redor numa nuvem nauseabunda. O meu pai dizia-me para estudar com atenção as entranhas, não porque possuíssem estranhos poderes divinatórios, mas porque no corpo do porco poderia descobrir o meu próprio corpo, modo ancestral de aprender anatomia. Eu observava então a autópsia do animal com uma curiosidade comedida, entre o nojo e o respeito a uma sabedoria que eu intuía verdadeira.
Os blogues por vezes também discutem as mesmas miudezas a que se atiram circunstancialmente os críticos. É um assunto que vai e volta, como a carreira que João César Monteiro tomava todos os dias. Sugeria então a quem se interessa pela espuma dos dias que lesse o livro de que falo, A Literatura no Estômago, editado pela Assírio e Alvim em, veja-se lá, 1987, de modo a perceber o mecanismo quebrado da História. Os ciclos que se repetem. Gracq insurge-se contra a busca fácil da novidade, e duvida do critério de gosto do leitor, habitualmente guiado pelo gosto do crítico. Resta a dúvida: valerá a pena discutir o carácter de quem habita esses espaços privilegiados que decidem o critério estético do leitor? Nunca o leitor saberá reconhecer em si um gosto estético firme, se não dispuser das ferramentas para o estabelecer. A verdadeira questão é: estará o leitor disposto a isso?

Um excerto:

"Desde que existe um público literário (quer dizer: desde que há uma literatura) o leitor, colocado diante de uma grande variedade de escritores e de obras, reage de duas maneiras: por um gosto e por uma opinião. Instalado diante de um texto, vai produzir-se nele o mesmo clic interior que sentimos, sem regra e sem razão, quando encontramos alguém: "ama" ou "não ama", sente ou não sente, à medida que vai virando as páginas, a sensação de ligeireza, de liberdade pura, embora suspensa, que se pode comparar à sensação dum galope sobre um cavalo de raça."

E o prefácio do tradutor, Ernesto Sampaio, é exemplo de uma utilização da língua portuguesa rara, de tão exemplar. Pudessem dez por cento das novidades editoriais serem tão essenciais como este livrinho e o buraco onde o país se encontra por certo já estaria um pouco mais raso do que está. Quase perfeito.

[SL]

23/06/06

New Order

Não serei original se disser que os New Order acabaram por ser aquilo que os Joy Division poderiam ter sido acaso tivessem resistido à desolação do Inverno. O álbum Substance prova isso mesmo: do negrume decadente e minimal das primeiras faixas, ainda contaminadas pela doença da melancolia de Ian Curtis, até aos alvores luminosos de True Faith e Bizarre Love Triangle, existe um percurso de purificação rigoroso, desembocando na paz de espírito que apenas o Verão pode trazer. Continuando na metáfora de gosto duvidoso, a banda passa agora pelo seu declínio outonal, programático e nada original, mas ninguém lhes exige nada; o que fizeram em conjunto com Curtis e o modo como se libertaram da canga pesada deixada em herança depois da morte daquele - no filme 24 Hour Party People é tocante a cena em que os sobreviventes Joy Division ensaiam a sua nova incarnação em estúdio, a voz de Bernard Sumner dançando sobre um fio finíssimo que separa a idiossincracia da dissonância, o resto da banda acompanhando como pode o esfoço do vocalista, mas estou a falar apenas de um filme, divago -, dizia, o modo como conseguiram contornar a importância de Curtis já lhes tem garantido um lugar lá no éden onde mora Ian Curtis - lado a lado com os outros mártires da causa musical. A música que se vai poder ouvir aqui nos próximos tempos é uma espécie de acto de pacificação com o passado; e uma das melhores dos anos 90: Regret, do álbum Republic. Chegámos ao Verão.

[SL]

The joke is on you

Na última hora entretive-me a rever dois ou três videos no YouTube (se o leitor quiser, pode procurar ) de Stephen Colbert, colaborador do Daily Show, de Jon Stewart - vocês sabem do que estou a falar - e dei-me conta de uma coisa: os liberais na América têm muito mais sentido de humor que no resto do mundo. A nossa esquerda, de inspiração francesa, está quase sempre encerrada num moralismo que restringe a liberdade de rir e fazer rir, e mesmo quando tenta imitar o modelo americano apenas consegue arrancar um sorriso amarelo e rancoroso. Basta passar por alguns blogues de esquerda para perceber isso. Com a única ressalva de Rui Tavares, mas quase que nem vale a pena insistir no elogio; a sua crónica ao Sábado no Público foi das melhores coisas que aconteceram nos últimos tempos.
O desvio foi feito, regresso à batata quente: o humor liberal americano. Acerta quase sempre porque não é cego. Tem em mira não só as contradições do pensamento conservador americano mas também a demagogia da ideologia de esquerda. Tanto pode fazer um gag com as parolices de Bush como a seguir gozar com o humilhado Al Gore ou a ameba mediática John Kerry. Os jornalistas (?) do "Daily Show" procuram, acima de tudo, o provincianismo e a burrice que abundam, tanto na direita como na esquerda americana. Encontram contradições, ignorância, e exploram um filão inesgotável de piadas e sketches que partem muitas vezes das próprias situações em que os políticos se vêem envolvidos. George W., nesse aspecto, tem surpreendido. Conseguiu fabricar uma personagem que não se importa de passar por comediante involuntário, uma caricatura de um presidente. Os humoristas que andam há seis anos à pesca da próxima gaffe viram-se substituídos na função pelo objecto da paródia. O.K., já percebemos que Bush Jr. convence como palhaço, mas será que serve como presidente?
Por cá, o único espaço que se aproxima desta liberdade crítica da trupe de Jon Stewart é o Inimigo Público. Quem achava José Manuel Fernandes apenas um director de jornal neocon com mau gosto para fatos e uma tendência para se emocionar ao ver o derrube de construções simbólicas, deve ter ficado surpreendido quando o suplemento surgiu, vai para dois anos - penso. Mas cedo se percebeu a razão da escolha: não existe uma tendência política clara nos colaboradores do Inimigo. Basta ver as vezes que Eduardo Prado Coelho já foi gozado para se perceber isto. O corte a eito que o suplemento faz não divide direita e esquerda, mas releva a cretinice e o ridículo a que as figuras públicas se podem submeter - voluntariamente ou não. O mérito dos humoristas passa pela perspicácia que revelam na escolha do ângulo, equidistante de campos políticos marcados. O que é satirizado é a situação, não a personagem. O humor bem feito vive disto.
Camaradas (já se percebeu que sou de esquerda?) da nossa praça, tenham isto presente ao tentar fazer humor: o ridículo não tem ideologia. E é um dos maiores símbolos da liberdade de expressão, esse chavão imundo que qualquer bom moralista gosta de repetir até esvaziar o verdadeiro significado da frase. O sátiro é um ser verdadeiramente livre. (Desde Nietzsche).

[SL]

22/06/06

Data

apresento-te a vida: parto do princípio
de que não gostas da sua feia carantonha,
nem dos seus modos ínvios de agir.
Parece-me por vezes que ela se assemelha a
uma história contada por alguém que se esqueceu
do fim e tenta com grande esforço improvisar à medida
que vai contando. Será isto. Podemos, tu e eu,
disfarçar. Esconder por trás do espelho
a fresta por onde entra a sombra;
de noite, quando dormimos na suspensão do tempo,
cremos sonhar enredos distintos dos filmes a que assistimos,
mas quando acordamos tudo se mantém,
o mesmo sol se levanta lá fora,
a luz que mudou sem mudar ou o vento
que regressou acendendo de imediato a imagem
da tempestade antiga – cada lapso de tempo
é apenas a memória de um tempo anterior; quando
me aproximo de ti sabendo de cor o espaço
a que pertences, conheço duas coisas apenas:
a linha de realidade que nos cabe e a sua extensão
para lá do espelho que nos espreita. Por outras palavras,
amar-te é existir em dois tempos simultâneos.
Num, ainda hesito entre oferecer-te um copo mais
ou convidar-te para casa, no outro sou puxado de
volta à terra e mergulho a fundo na experiência
de reconhecer um corpo, sabes: procurar nele
o tecido que envolve a manhã atrasada pela
insónia, cerzir à minha pele a tua – e não quero com esta imagem
equivaler o procedimento a um acto cirúrgico e desapaixonado –
e no fim dormir profundamente e sem sonhos,
a manhã resgatada à nossa porta.

Apresento-te a vida: aceita o seu belo
rosto, não precisas de gramática nem retórica
para a compreenderes. Eu ensino-te.

(Para S.)

[SL]

20/06/06

Gonçalo M. Tavares

Palavra de comerciante de livros: Gonçalo M. Tavares publica demais. A sério, é o que dizem, saem demasiados tomos dele para o mercado, moda de verão, moda de inverno, meia-estação, etc. E em várias colecções, cadernos pretos, cadernos brancos, poesia; existe um projecto editorial que ultrapassa os limites de qualquer editora: os cadernos de Gonçalo M. Tavares. Extra colecção da editora - a Caminho cria duas séries para ele, a Relógio d'Água edita a "Poesia 1" num formato em tudo igual à linha gráfica da colecção regular dedicada à lírica (ainda se usa?) mas com a impressão digital do escritor no fim, a marca do homem: Cadernos de Gonçalo M. Tavares. Os editores, respeitosos de tanta prolixidade, aceitam tudo - julgo. O vendedor de livros reclama. É que Gonçalo não sabe que o mercado não se compadece deste excesso comunicativo. Um livro mata o outro, que pergunte de forma séria aos editores, caro Gonçalo. Chegam a estar dois ou três expostos nas mesas de novidades, tirando o lugar a outras obras que mereciam estar no seu lugar - há muito Dan Brown aí à espreita, esperando a sua oportunidade no mundo-cão da produção de livros.
E não se pense que isto é uma subtil inventiva contra o mercantilismo do produto cultural. Não, nada disso. Tento usar a ironia com a parcimónia que um assunto deste calibre merece. Os críticos, pasme-se, também estão insatisfeitos. Não há recensãozita, ensaio curto ou crónica folhetinesca que, ao referir-se à obra de Gonçalo Tavares, não oponha ao elogio um "mas", um "porém" , um penalizador "todavia". Comedimento, Gonçalo, publique menos. Que os seus livros até são, e assim de memória (ou inventando, tanto faz), "interessantes, "acutilantes", "inovadores no panorama inquinado da literatura portuguesa", "certeiros e cruéis", "sarcásticos e cortantes na sua compreensão do mundo moderno", quando não mesmo "o exemplo perfeito do modo de escrever pós-moderno, paródico, intertextual, percorrendo vários géneros sem se fixar em nenhum, textos ora eivados de um fôlego dramático, ora miniaturas buriladas pelo cinzel da linguagem". É - será - isto, mas modere-se, homem, tem tempo para publicar, um livro por ano é bom, dois passa, mais de cinco é um colossal exagero.
Que interessa o valor individual de cada obra, se o conjunto excede em muito o razoável que se pode esperar de um grande escritor? Pense mais em autores que tanto admira, como Borges, que conseguiu ter uma obra que cabe em quatro volumes apenas - nem um romance para amostra, muitos contos, todos pouco extensos, ensaios que raro ultrapassavam a dezena de páginas. Ou pense em Karl Kraus, sem obra sistematizada, ou em Kafka, inconcluso e imperfeito, ou em Musil, que andou uma vida inteira a escrever uma obra inacabada. Bom, é isso; se quer ter o favor sem reservas da crítica, deveria começar a publicar textos por terminar, deixados a meio, apenas esboçados, tem de esquecer o rigor e a perserverança que aplica aos seus livrinhos. Esboce, apenas, escrevinhe umas palavras, umas quantas páginas e deixe tudo em aberto, não vale a pena levantar tão cedo de manhã para escrever tanto, levante-se tarde, leve uma vida desregrada, a glória espera-o. Convença-se, vivemos em Portugal, país de génios incompreendidos, adoramos quem cultiva de modo sábio a preguiça, palavra feia que, por vezes, substitui o helénico ócio. Olhe, fale com o Luiz Pacheco, que ele ainda tem muito para ensinar nesse campo.
Não diga que vai da minha parte.

[SL]

19/06/06

Ciência doméstica

Os altos e os baixos dos dias - deixam-me numa confusão louca. É manhã e acordo de espírito limpo. Sem dores, achando que o calor largado pelo corpo que já se levantou é uma emanação mais clara do que senti ontem. Descubro muito tarde que nem sempre assim é. De volta à carruagem repetitiva dos dias, canso os dias que ainda tenho para gastar, uso-os até não serem mais que ganga branca. O que leio, deus, o que eu leio, é preciso inventar qualquer coisa para dizer. Os comentários crescem e multiplicam-se à velocidade correcta: ao contrário da vida, que alastra lenta. Na língua silenciosa da nossa casa apagada irrompe um desconforto que já conheço de outras danças. Acordo hoje quase derrotado, saio para a rua, em direcção aos bairros que conheço. Em território estranho, com um esforço poderia respirar, conhecer de cor o que dirás de seguida: conhecer-te. Mas saio em direcção aos bairros que conheço. Julgo não surpreender ninguém se disser que me preferia perdido.

[SL]


17/06/06

Tem calma, Sérgio

Gostava de poder dizer que consigo controlar nas calmas o misantropo que habita em mim - mais ou menos na zona do pâncreas - mas, lamento, não é assim. Não quando, a um pedido do novo vizinho, simples e directo, respondo não. "Podia me emprestar um banco para montar...?" "Não, estou cheio de pressa, tenho uma coisa marcada, agora não posso." O homem responde com um olhar que tanto tem de incrédulo como de enraivecido, e não o censuro. No lugar dele, ficava a pensar no cromo que me tinha calhado como vizinho. Não será suficiente para lamentar a escolha da casa (e ficará mais feliz quando descobrir as duas brasileiras do rés-do-chão pavoneando-se à varanda, shortinho apertado, chinelo e algodão entre os dedos dos pés enquanto o verniz seca), mas ainda assim imagino o que não lhe terá passado pela cabeça. Bem, talvez nada de muito complexo ou filosófico, tipo "como anda o mundo, as pessoas estão cada vez mais distantes, o anonimato da vida citadina", a treta suburbano-depressiva do costume, pelo menos se me atrever a um julgamento apriorístico inteiramente baseado na aparência da figura: trinta e poucos, ar atarracado, camisa e gravata cor-de-rosa, vagamente bimbo, vagamente imigrante de regresso à terrinha. Mas posso estar errado, claro, quem sabe se o homem não traz com ele a colecção completa dos álbuns de John Cage ou alguns livros de Séneca em latim ou as tragédias de Ésquilo em grego - como dizia a outra, pode-se ler em grego sem conhecer uma letra que seja do alfabeto clássico, paradoxo brilhante que eu, por muito que leia ao longo da vida, nunca conseguirei abarcar na totalidade. Respondi, então, com um rotundo não. E o homem reentrou em casa a coçar a cabeça e eu desci as escadas a caminho da creche onde o meu filho esperava por mim. Assunto esquecido, assunto remoído depois, quando houve tempo para lembrar o sucedido. Susana, sábia, evoca a figura da mulher de Larry David em "Curb Your Enthusiasm" e dá-me aquele olhar. Espanto e comiseração, aquela cabecinha a pensar nas consequências. Eu, tapado como por vezes pareço ser, não prevejo o futuro. Susana, sim. E o que ela vê não me parece nada animador. Favor que não se faz há-de ser favor não devolvido. Chiça! A misantropia dá nisso. A hora em que, numa situação de aperto, tocar desesperado na campainha do vizinho e ouvir como resposta, sorriso enfeitando sarcasticamente os lábios, um redondo não, um cortante não, um fatal não, dar-me-ei conta da mão insidiosa que o destino utiliza para nos chamar à terra, perceberei que os deuses não brincam em serviço e que a menção que fiz algumas linhas acima à tragédia clássica tem uma razão de ser à posteriori. Não, e então entenderei a magnitude da minha tola recusa. Tenho pena apenas de uma coisa, nesta história: que não haja grandeza no meu gesto. Recusei um banco apenas porque fui apanhado de surpresa. Não soube como responder, balbuciei a primeira baboseira que me queimou a língua. Culpo a educação anti-social que tive, portanto. Aí está, percebo Larry. A antipatia não é uma atitude que se possa cultivar, como a sabedoria ou o encanto; é um acaso, fruto maldito da incrível capacidade de esquecer as regras sociais do ameno convívio. Ou, por outras palavras, não sei, nem nunca saberei, improvisar o humanismo, para mim o ser humano é um animal vagamente desconhecido. Que os deuses percebam isto, eis a minha esperança. Podia ser pior.

[SL]

Fim-de-semana (2)

O regresso do rei.

Fim-de-semana

Fim-de-semana, famílias deprimidas na expectativa para o jogo de logo à tarde, famílias frustradas nos seus intentos de gozar uma semana com dois feriados e dois dias de férias pelo meio, praia e sol, pensavam, moscas amolecidas pelo tempo tristonho, cambaleando de encontro às fitas coloridas que resguardam as entradas das caravanas e das casas de fim-de-semana. O torpor matinal a entrar pelo dia dentro, um café para acordar que não faz efeito, churrasco no intervalo da chuva, cerveja para alegrar o jogo da selecção, simulacro de alegria nacional. A Argentina ganhou 6-0, e sabemos que os podemos encontrar mais para diante, discute-se numa retórica pastosa as minudências do sistema táctico de Scolari, a mulher grita lá de dentro, camisola número 7 cravejada de manchas de gordura da carne esturricando sobre as brasas, a mulher grita, a salada em minúsculas, pouco importante, os miúdos saltam e andam de bicicleta, vão e vêm, param no tempo sabendo que o tempo só os apanha se tiverem à perna o desencanto dos mais velhos, por eles não regressavam a casa, mas a lei circular da vida obriga ao vai-e-vem, regresso a casa, à noite, pai e mãe gritando. Fim-de-semana, famílias disfarçando a tristeza - por isso o fado, exorcismo que amenamente se deixou de celebrar - a certeza dos dias, a passagem dos dias atravessando em movimento cortante os acontecimentos do quotidiano, álcool é esquecimento, concretização de um desígnio de vida. A carne crepita sobre o lume, aproximam-se as duas horas de abandono e desistência, expectativa de abismo ou salvação, a nossa fé depositada na caixa das esmolas para nossa senhora de Caravaggio. Fim-de-semana entalado no coração de um estio sem sol e sem calor. À espera. De quê, quem sabe?

[SL]

16/06/06

Ideologia

A ideologia não é uma ameaça. Não devemos recear quem acredita, ainda que aquilo em que acredite seja perigoso. O que verdadeiramente ameaça a ordem humana é a vontade de poder associada à loucura, sabendo que a definição desta última está cativa de um irremediável relativismo. O que irrompe do tecido da normalidade, e contra esta. Por isso, tenho dificuldade em acreditar que não são os homens, mas sim as ideias que matam. Contudo, aceito que apenas estas podem libertar. A única verdadeira liberdade é a liberdade de pensar. Repito. Contra o asco físico que me provoca a ignorância do anti-democrata.

[SL]

A camiseta das brasileiras

Não gosto de João Ubaldo Ribeiro, desde que li há uns anos uma estopada pornográfica que vendeu em Portugal alguns milhares, em consequência de uma proibição de venda num supermercado por parte de um responsável burro. Gostei de ler a crónica dele (sem link) depois do encontro entre o Brasil e a Croácia, onde desfazia o jogo da selecção canarinha, criticando de modo incisivo Ronaldo e Adriano. Não há como os brasileiros para escrever sobre futebol, está há muito provado - excepcione-se talvez Valdano e Javier Marias. Mas não é este ponto assente que me interessa. Claro que é a selecção portuguesa que tenho na mira. Criticada por meio país desejoso do regresso ao abismo acima do qual pairamos durante algumas semanas, por ter feito melhor que há dois e quatro anos, ter vencido sem brilho. Scolari irritou-se, mas já ninguém liga, Costinha e Figo mostraram que os jogadores estão unidos, apesar das críticas e dos disparos que vêm de fora. (Aquela reportagem na, salvo erro, Visão, com Vítor Baía enrolado na bandeira, alguns dias antes do primeiro jogo, é incrível de tão rasca. Se ainda se precisasse de razões que apoiassem o afastamento da selecção, elas ficaram desfeitas com aquele strip patriótico-pimba.)
A Suécia empatou mas já quase passou, claro, a Inglaterra joga mal mas está nos oitavos, a França parece voltar à mediania de sempre, depois de uma geração (e um jogador, Zidane) excepcional ter irritado le Pen vencendo dois campeonatos internacionais seguidos, a Alemanha joga como sempre, feio, feio, e a Argentina vence com uma péssima segunda parte. Tudo certo, campeonato pouco espectacular? Eu não acho. Já vimos golos muito bons - Lahm, o segundo da Argentina, a passe de Riquelme, até o golo de Figo, e equipas a jogar bem: a Itália e a Holanda, a Espanha, e algumas que perderam, como a Costa do Marfim e a Croácia. E volto ao jogo do Brasil. A selecção foi criticada? Engano, não foi. Foram-no, isso sim, os jogadores que actuaram abaixo do normal: Ronaldo e Adriano. E foi também Parreira por não ter retirado mais cedo da equipa os dois atletas. Apenas isso. Fé na vitória? Toda, bastava passar no Domingo na zona da Expo para perceber isso. Os brasileiros vivem o jogo com alegria; não dependem da vitória para recuperar a economia do país, porque convivem há muito com a pobreza, a corrupção e a sem-vergonhice dos políticos, a criminalidade e as novelas. Os campeonatos que a selecção tem conquistado são pretextos para um mês de esquecimento. Cabeça vazia, cerveja na mão, festejando com a mesma alegria que Ronaldinho mostra só de poder jogar à bola. Em Portugal, não. Futebol é um assunto sério. Os colunistas (os "intelectuais") reclamam por tudo e por nada, exige-se o céu a uma equipa que está a um nível apenas de rés-do-chão, pretende-se que a nossa selecção com duas ou três pseudo-estrelas e um profissional (Figo) muito acima da média - repito, profissional - seja favorita a ultrapassar equipas de semi-deuses como Ronaldinho, Kaká, Thierry Henry, Zidane, Totti, Riquelme ou Messi. Exige-se que os nossos mimados pretendentes, Ronaldo à cabeça, acalmem e se tornem de um momento para o outro jogadores tão bons com Robben ou Fernando Torres ou Rooney. E eles, claro, respondem com nervosismo e carinhas de angústia para a câmara mais próxima.
E o pior é que as nossas adeptas não usam a camiseta da selecção colada ao coração, como o fazem as brasileiras. A tristeza que foi ver a mais bela (?) bandeira do mundo, iniciativa idiota, terceiro-mundista, ou pior, de tendência americana (género concurso de enfardamento para entrar no Guiness). Vejo poucas mulheres a apoiar a selecção, e neste confrangedor panorama é natural que sejam poucas as caras que derretem o adepto mais renitente do futebol. O problema é que não há nada que atraia os intelectuais para o futebol em Portugal. Nem decência ao nível dos dirigentes, nem certeza nas exibições, nem beleza em matéria de torcida. Enquanto continuarmos a ser maioritariamente adeptos da sande de courato e da mini isto não arranca. E o país continua a vogar na alta vaga da depressão.
Prognósticos: vamos chegar à final e ganhar 1-0, depois de eliminarmos o Brasil na meia-final com dois golos de Cristiano Ronaldo.

[SL]

13/06/06

Alecrim e manjerona

O problema não é saber o quanto existe de verdade na ficção. O género autobiográfico consegue mexer-me com os nervos, o confessionalismo deprime-me quando é piegas, detestaria saber que um autor não mente ao escrever a sua entrada no diário ou ao preparar a sua crónica semanal para a imprensa. Porque existe esse risco, não me interessam os diários póstumos ou a correspondência dos escritores. Por isso e por achar que o interesse da vida é sempre curto se comparado com o interesse que a ficção pode motivar. Portanto, o problema não é saber o quanto existe de verdade na ficção, mas sim até que ponto podemos dispensar a realidade no nosso dia-a-dia. Pensava no cliché das máscaras que usamos no contacto social, admito, mas lembro agora uma pista mais interessante: não há nada por baixo, a sério. Conseguimos ter menos substância que Terry em "Há Lodo no Cais", sabem, aquele a quem Marlon Brando empresta o corpo e a voz até que a eternidade acabe. E falo de um homem de celulóide, não esquecer. (Aproveito a deixa para lavrar o meu protesto contra o insulto que foi ler a última crónica de João Pereira Coutinho, em que ele compara Al Pacino a Brando. Será que não viu "O Padrinho"?)
Imaginem: o jogo da sedução, o que é? Toca e foge, cada um tentando dar o melhor de si, o que nem de perto nem de longe corresponde ao que se é na realidade, jogo de mostrar e contar o que se gosta, o que se recorda, o que se vislumbra, julgando esconder durante o máximo de tempo possível a vergonha do pequeno defeito, da mania, do hábito nocivo que apenas se confessa quando se chega ao ponto de viragem essencial de uma vida: a partilha de uma sanita sem nojo. (O mau-gosto da última frase é justo e correcto. Aliás, gostava de ler mais crónicas de jornal com este tipo de linguagem suja, imagino o esforço de auto-censura que atinge a maior parte dos cronistas. E não falo do maradona, ou falo?)
Tudo ficção, uma imagem à espera de ser destruída pela primeira voz levantada, o primeiro olhar lateral na direcção de um rabo-de-saia contíguo, ou pior, a característica transmitida desde tempos imemoriais que está inscrita nos genes masculinos, o esquecimento de uma data importante. Quando a relação chega àquela fase em que perigosamente se assemelha a uma guerra - períodos de violência extrema, sangue, suor e lágrimas entrecortados de visitas ocasionais a Saigão para satisfazer os apetites da carne - onde param as máscaras? Estão todas guardadas no baú do adversário, perdão, companheiro; ofertas sem sentido no conflito a que alguns teimosamente chamam de amor. Quem chega aqui esqueceu-se não só da persona que construiu para o outro, como inclusive esqueceu de quem era originalmente. Lamentável.
Fugi do assunto, eu sei. De que falava eu? Da vida e da ficção. E de como a segunda, apesar de se aproximar de forma perigosa da primeira, consegue ser mais verdadeira na sua mentira. Juro, tudo isto é verdade.

[SL]

Paris, Texas

Paris, Texas, obra que deu a Wim Wenders a Palma de Ouro em Cannes em 1984, é um filme feito de paisagem. Entre Los Angeles, Big Bend, Houston ou Paris, a paisagem engole o orgânico devolvendo os humanos no seu aspecto mais árido. Harry Dean Stanton, em excelente osmose com a paisagem, é ele também secura e desidratação, é ele próprio um não-lugar humano, uma não-pessoa sem linguagem e sem estrada.

A fotografia de Robby Müller, complementada pela música de Ry Cooder, capta a cor dos exteriores com uma beleza explosiva, oscilando entre o que parece insignificante e o fundamental, conseguindo mesmo encostar as personagens ao limite do enquadramento para destacar, de um modo hiper-realista e sem pudor, desertos e auto-estradas, motéis e comboios de mercadorias, cabines de peepshows e o corredor aéreo de L.A. que ensurdece os subúrbios. Estes tornam-se as verdadeiras personagens deste filme que criou algumas imagens inesquecíveis e que, nas duas décadas seguintes, influenciaram directamente diversos realizadores independentes americanos como Hal Hartley, David Lynch e Gus Van Sant. A única redenção possível desta não-família (Harry Dean Stanton, Nastassja Kinski e Hunter Carson) é filmada por Wim Wenders num cenário frio e despido de referências, no anonimato último que é um quarto de hotel.

Uma bela dedicatória a Lotte H.Eisner, historiadora e crítica incontornável do cinema clássico alemão.

[SV]

12/06/06

Os empregados de escritório

Susana diz-me que todos os empregados de escritório deveriam ler Robert Walser. O uso do condicional não corresponde exactamente ao que foi dito; o tempo utilizado foi o imperfeito, mas parece-me adequado substituí-lo pelo mais ameno condicional. Deveriam. Eu não concordo, lamento. Conheço o exemplo de Walser, sim, também de Fernando Pessoa e Kafka, ouvi falar da história de Robert Musil, sei que Phillip Larkin e Perec também se mantiveram durante muito tempo à margem de tudo. Coloca-se a questão de saber se terá sido escolha ou força das circunstâncias, mas as biografias que se teceram à volta destes homens em tudo vulgares insistem na vontade férrea de existir fora do mundo. Longe da mundanidade vaidosa do mundo. Regressando ao início, insisto com Susana num ponto simples: ser empregado de escritório, ao contrário do que parece, é quase sempre um fim em si, um beco sem saída na vida dos empregados de escritório. Susana engana-se. Walser, e Kafka, e Musil e Pessoa não eram empregados de escritório escritores. Eram escritores que decidiram limpar metade do tempo a que tiveram direito, como quem limpa uma mesa, para as coisas baixas do mundo; ocupar as horas com o quotidiano eficaz das tarefas repetitivas - a lição fundamental de Heidegger. A noite ficava guardada para a excepção, a criação que diferencia o génio da massa de empregados de escritório que nunca imaginaram sequer o que é viver fora do mundo. Escrevo sem pena, mas também sem soberba. As coisas são como são.

[SL]

11/06/06

Voragem autofágica

Há nomes que são mais do que um programa, são toda uma bibliografia de histórias avulsas. Don deLillo é um deles. O som entra pelo ouvido e enrola-se por ali dentro, é como se o serpentear da língua pronunciando o nome se ligasse ao ouvido médio e de súbito partisse deste uma corrente eléctrica que libertasse por momentos no corpo uma micro-onda de adrenalina pavloviana que, de imediato, induzisse em nós a vontade de ler nem que fosse uma miserável frase do homem. Mas vale a pena, ceder a este instinto básico. Há um livro que pode explicar melhor a relação entre língua e cérebro, som e espírito, e que, coincidência ou não, ele decidiu intitular "Os Nomes". Uma ideia tão subterrânea, tão esotérica, que apenas podia resultar num romance fabuloso. Nem sempre fácil, é certo, mas quem quer coisas que se lêem numa noite? Uma seita secreta de assassinos (ou não) que comunicam entre si numa língua desconhecida. Os destroços de Babel à deriva num mundo que enveredou pelo caminho da novilíngua, eliminando a diferença, esbatendo o que distingue um indivíduo do outro. O nome de Don de Lillo. Paul Auster, amigo e confrade, pronuncia os sons de um modo inimitável. Ouvi eu, há uns tempos atrás, uma voz que parece roubada a um qualquer radialista dos anos 30 contando histórias de invasões de extraterrestres num tempo em que a luz eléctrica falhava demasiadas vezes. Quando o medo ainda não tinha um rosto conhecido e esquivo. A perfeita cadência sonora de Don deLillo deve certamente ter que ver com a igual perfeição das palavras nos romances do autor. A linguagem trabalhada a um limite extremo de economia narrativa, nada redundante, nada em carência. Até que o texto se assemelhe à vida que imita: misterioso, lacónico, sempre um passo atrás do sentido pleno.

(Texto suscitado por este blogue, de alguém a quem eu tinha perdido o rasto. E com um template exemplar. Seja bem-vindo de volta.)

[SL]

09/06/06

A infância

A infância, esse labirinto do qual não queremos sair, existia na sua ilusão incólume de não ser. No intervalo das brincadeiras, de quatro em quatro anos, férias grandes com Jogos Olímpicos. Tardes e tardes isolado da torreira lá fora, sentado ou deitado ou dobrado ou estendido em frente à televisão, em completo enlevo admirando os escolhidos para competir. As modalidades que mais me prendiam a atenção eram a natação e o atletismo. Coisa estranha, para alguém que nunca aprendeu a nadar, o facto daquele desporto exclusivamente de verão ser tão viciante. Talvez funcionasse como um óasis no calor que reduzia os dias a cinzas, sempre preferi o conforto da distância e o prazer das imagens à beleza suja e baixa da realidade. Quanto ao atletismo, o que gosto é daquela sensação de individualismo puro, ver os atletas forçando os seus próprios limites, nesse esforço ultrapassando os adversários, ignorando coisas tão prosaicas como o trabalho de equipa ou as indicações do treinador. É o atleta contra o relógio, contra as limitações do seu próprio corpo. Talvez por isto seja ainda mais impressionante quando, nos desportos colectivos, há um génio qualquer que se liberta do espartilho das regras do colectivismo. O que comove no génio é a sensação de liberdade pura, a transgressão libertadora, a vontade de poder estabelecer o seu próprio paradigma. Depois dele, tudo foi diferente. Poderia aplicar a reflexão ao campo da ideologia, mas seria demasiado redutor. É muito mais estimulante falar da natureza humana. E de quem a transcende.

[SL]

Globalização

Em 1986, teve lugar o primeiro Mundial a que pude dar verdadeira atenção, e lembro, em primeira mão ou por via do bombardeamento de imagens a que estamos sujeitos, os dois golos oferecidos por Deus a Maradona contra a Inglaterra. Vinte anos depois, sei que vou perder muita coisa em directo, porque me recuso a pagar mais por um canal monopolista que, por distração ou falta de vontade da concorrência, adquiriu os direitos do Mundial para Portugal. E há quem não tenha sequer a oportunidade de assistir aos jogos porque se encontra na periferia da cobertura das redes cabo nacionais. É uma coisa pequena, eu sei. Mas que significa algo; a falácia do acesso à informação é exposta pela revelação do outro lado da moeda no processo: tudo se compra, não há almoços grátis. Sem melancolia, é assim que tem de ser. Ou não?

[SL]

Repetição

Calor, bola e incêndios. Entramos num ritmo bianual de euforia e depressão, tudo no espaço de um mês apenas. Que saudades dos verões de infância, quando o calor quieto das tardes se instalava. Sem mundo à volta.

[SL]

07/06/06

The Divine Comedy

Neil Hannon é um dandy relutante, mas isso já sabemos. É também um pistoleiro solitário que gosta de pensar que anda acompanhado de uma banda. É o homem que baptizou o seu projecto musical a partir do poema de Dante sem nunca ter lido a obra. Falo, é claro, dos The Divine Comedy, que regressam passados dois anos com um álbum que rima com o primeiro e renegado trabalho da banda, Victory For The Comic Muse. Para celebrar o regresso, uma faixa do, quem sabe, melhor álbum deles - Casanova -, "Something For The Weekend". Risinhos de donzelas, verões ingleses anormalmente quentes, jardins onde sombras se resguardam do calor, jogos de sedução conduzidos por adolescentes desajeitados enquanto o tempo finge passar. Não liguem à letra, ouçam apenas a música para que não se perca a descrição que acabei de fazer. À distância de um click apenas, ali do lado direito.

[SL]

06/06/06

As Loucuras de Brooklyn

Não me lembro da última vez que li um romance tão optimista, e não sei se isto denuncia algo de suspeito em mim ou se apenas significa que não são muitos os escritores que se dedicam aos prazeres mal-vistos da felicidade. Negro, sombras e devastação, exterior ou interior, morte e amor, amor e morte destruindo, a malvada mão do destino a intervir de forma cruel na vida das personagens, tudo características que jorram de qualquer escrito de autor que seja movido por uma mínimo de boas intenções e bom-gosto avulso. E depois, há também a inquietação e o desespero existencial, divertimento esconso cultivado desde a era industrial por uma nobre linhagem de autores que se inicia em Kleist e acaba em Ishiguro (não me peçam para explicar a consaguinidade), passando por Melville, Walser, Kafka e Beckett. Entre o grupo dos, digamos, sanguinolentos góticos, família que durante muitos anos acarinhei com fervor - recordo Poe, por exemplo, e a fantástica história da queda da casa de Usher, também Nerval ou, na poesia, Rimbaud ou Baudelaire, e a fraqueza de misturar na mesma sopa autores tão díspares tem um origem biográfica; toda a mentira pode ser perdoada se acomodar no seu seio alguma verdade esquecida -, e aqueles que passam pelo mundo rodeados de uma ampola mágica que permite ver apenas para fora, e faço a mim próprio o favor de incluir no rol Fernando Pessoa, na verdade aquele que me iniciou nos mistérios ingratos da ficção, dizia que entre estas duas trincheiras colocadas do mesmo lado da batalha existem mais semelhanças que diferenças. O que os distingue não é a essência, apenas o tom e a forma. Há outra frente, claro, a dos contadores de histórias. Os que conseguem insuflar nas palavras um sopro tão intenso que elas passam a existir por elas próprias, independentes do escritor e dos seus miseráveis sentimentos. Eça, Henry James, o fabuloso Borges, Julien Gracq, Yourcenar, Garcia Marquez e, mais recentemente, Philip Roth, Don deLillo, Ian McEwan e Paul Auster. Tudo isto para dizer que o último romance de Auster, hino improvável a um mundo que acabou no dia 11 de Setembro de 2001, não é um manifesto político nem um panfleto saudosista evocando uma mítica América, ingénua e resplandecente, um país que provavelmente nunca existiu e vive apenas no espírito dos americanos que acreditaram durante 50 anos que o caminho tomado era o correcto. É apenas uma longa história contada num serão de amigos, um conto fixando no tempo uma era. Pessoas e as suas narrativas íntimas e vulgares, eis o material que interessa a Auster. Nunca consigo deixar de me surpreender com o talento inato dos escritores americanos para a pequena História do quotidiano. Talvez o "american way of life" e o elogio da gente humilde que lhe está subentendido tenha alguma coisa que ver com esta qualidade genética. Em "As Loucuras de Brooklyn" somos felizes até ao momento em que as torres gémeas caem. Depois, um ponto final que abriga em si um monstruoso ponto de interrogação. E daqui para a frente, o quê?

[SL]

Melodrama Proustiano

É um belo filme, O Tempo que Resta, o último de François Ozon. Mas não é, no entanto, um filme perfeito. Encontrei mesmo algumas cenas supérfluas (como o bar S.M.), sem continuidade (de volta ao hospital, Romain conta ao médico os sonhos que tem tido), o encontro abrupto com o casal estéril (cena redimida no encontro a três), mas encontrei também uma belíssima homenagem a Visconti e Morte em Veneza. É, de resto, um tema recorrente no imaginário de Ozon a praia, a beira-mar. De um lugar agradável (recorde-se Conto de Verão, de Rohmer, com um Melvil Poupaud contrastante) passamos, em Ozon, a cenário de perda e de solidão, neste filme como em Sob a Areia.

Mas, a cena que mais comove, tendo em conta que tudo emociona nestes últimos dias, acontece na visita de Romain (Melvil Poupaud) à avó (Jeanne Moreau). Apenas nela Romain encontra a compreensão para suportar os últimos dias. Como é dito: apenas ela está também perto da morte.

Na verdade, a Morte é a grande personagem deste filme. Perante a eminência do desaparecimento, ir ao Japão está fora de questão, há-de morrer sem lá ir porque, nessa espera deixa-se de ter futuro, deixa-se de ter tempo para concretizar sonhos ou conhecer sítios novos. Já não se quer conhecer mais nada senão o que se viveu, as experiências da infância, o melhor tempo de todos (Virginia Woolf: o único tempo onde, sem o sabermos, somos felizes). Sem futuro, resta-lhe o passado, é o passado todo o tempo que resta. Neste sentido, o filme é genial pois dá a ver o que diversos filósofos se esforçaram por ensinar. E é genial porque é perfeitamente proustiano, marcação de uma vida por todo o seu passado. No reflexo do espelho, o que se vê é todo o passado, presente sem futuro, como um passado virtual que coabita pacificamente com o presente actual.

[SV]

O fim do mundo

Cumpre-se hoje a profecia anunciada no Livro do Apocalipse, capítulo 13, versículo 18: "Aqui é preciso entender: quem é esperto, calcule o número da Besta; é um número de homem; o número é seiscentos e sessenta e seis." O que de algum modo pode dificultar os planos que tinha para o dia que agora se julga começar mas que verdadeiramente apenas se inicia daqui a umas horas, depois de um sono reparador e, espero, vazio de sonhos. Pois é, lamento mas chegámos ao último dia do mundo. Último dia do mundo. Soa bem, grandioso. E, repare-se na discreta figura de estilo casando mundo com dia. O mundo não tem dias. Pensando bem, o que tem dias? O tempo? Os dias são o próprio tempo. Ponto. Tempo que de mansinho se vai escoando sem darmos por ele. Daqui a pouco, não sei a que minuto, a que segundo. Não me posso esquecer de regar as gardénias, abrigá-las dos ataques furibundos das mariposas que anunciam o fim do mundo. O calor, a moléstia.
No outro dia, descobri o meu bonsai morto. Coberto por uma pestilência pulurenta e castanha, da base aos capilares mais finos. Procurei com minúcia a origem da doença, encontrando ao fim de alguns momentos, num dos ramos que ascendem do tronco, um minúsculo ponto negro coberto de uma pelagem cizenta quase até à transparência. Suspirei, mas não por desespero ou abdicação. Não julguem que tomei o desgraçado fim do vegetal como um sinal daquilo que se avizinha. Não ligo a estas coisas, e ninguém me poderá acusar de excessos metafísicos ou exageros transcendentais, cultivo a modéstia de opinião com o mesmo cuidado que usei durante os anos em que o bonsai se manteve vicejante. Assim aconteceu, portanto. Depois de retirar com cuidado a árvore do vaso, deitei-a sem arrependimentos no caixote de lixo e passei por água o recipiente para futuras utilizações. Lembro-me que depois me sentei pensando nas horas lentas que passei cuidando da minha companheira dos dias vazios, e esta foi a única cedência que fiz à melancolia.
Amanhã, que é hoje já, sairei de casa satisfeito e irei comprar o jornal, como é hábito, ao quiosque do sr. Fernando, e depois entrarei assobiando no café do sr. Martinho e pedirei um galão morno e claro, tão claro e quente como a manhã que transpira lá fora. Como já referi, não sei até que ponto o fim do mundo irá dificultar os planos que tinha para mais logo, pelo facto evidente de não estar determinado o segundo exacto em que acontecerá. O que está previsto é a ordem exacta dos acontecimentos: agora, julgamos ser, de seguida, deixamos de o poder julgar. Não vejo a necessidade de chorar o facto de esta simples sucessão de estados se poder estender a todos os habitantes deste mundo. Será talvez mais simples aceitar a situação, pelo menos para mim foi. Choro mais o mundo sem mim do que eu sem o mundo ou o mundo desaparecido de todo. O que é uma fatalidade inultrapassável é eu já não estar aqui e os outros continuarem. Mas não adianta gastarmos o pensamento em possibilidades improváveis, concentremo-nos nas realidades mais imediatas da existência. Beberei o café, pagarei ao sr. Martinho e irei a casa do sr. Alberto, alfaiate que conheço há longos anos e que consegue transformar qualquer banal pedaço de tecido numa obra-prima. Prometeu-me que o fato que poderia vestir por ocasião da festa em minha homenagem estaria pronto amanhã, por volta das onze horas. E sei que cumprirá, homem rigoroso e sério, apesar do humor que exibe de forma manietada.
Se por essa altura o mundo ainda persistir, encaminharei os meus passos por uma rua apertada perto do rio, onde se situa o restaurante onde combinei almoçar com o sr. Francisco, para tratarmos de pormenores relativos à anulação do meu testamento. Apesar das inquietações do meu advogado, decidi avançar com a decisão tomada; não sei que sentido fará um testamento depois do fim do mundo; parece-me, de resto, uma extraordinária contradição de termos. A quem deixar as minhas posses, se ninguém estará cá para usufruir delas? Deste modo, quando o jovem escriturário Francisco chegar com a necessária papelada, espero que traga com ele a clareza de espírito suficiente para se abster de quaisquer comentários ou inquirições redundantes. O que me parece muito provável; Francisco já mostrou, apesar da idade, possuir um espírito capaz de contrariar uma personalidade nervosa original que a juventude ainda não lhe permite disfarçar na totalidade. Os seus olhos fundos, marcados por uma sombra densa que condensa todas as limalhas de uma alma que adivinho brilhante, conseguem transmitir na perfeição a possibilidade de um futuro radioso. O que me entristece um pouco, sabendo como sei que o dia depois de amanhã será apenas um vislumbre, mais ténue que um sonho sonhado por um louco. Quase que desejo que o dia não acabe antes de me sentar com Francisco a um canto da apertada sala do restaurante, depois de apertarmos as mãos num constragimento breve, e ele retirar da pasta os documentos a discutir durante a refeição. Queria poder resistir a este sentimentalismo macio, mas não consigo. A verdade é que aprecio a eloquência do jovem, e uma última agradável conversa seria o culminar justo para uma existência marcada pelas palavras. Um capricho razoável e prazenteiro, antes que o dia acabe. Natural.

[SL]

04/06/06

Saramago e Pulido Valente

Há uma vertiginosa distância interpondo-se entre as palavras de Vasco Pulido Valente e José Saramago a propósito do Plano Nacional de Leitura. Ambos foram incluídos, sabe-se lá por quem ou como, na Comissão de Honra de mais esta panaceia nacional, coisa que me parece, se nos quisermos colocar no lugar de quem toma estas decisões, escorreita e clara. Um, o prémio Nobel da Literatura a que temos direito, o outro, o terno provedor da alma lusitana, um dos mais habéis produtores do veneno que o país gosta de instilar em si próprio. De resto, o percurso de Saramago levou a que ele próprio cultivasse o bondoso passatempo da auto-indulgência, desde que descobriu haver quem leva tão a sério a militância política como ele levou nos idos de Abril. De Espanha, costuma acenar à pátria de quando em vez na esperança de que alguém ainda o veja. E há quem leve a sério os seus devaneios de escritor em perda. É mais fácil dizer mal que fazer bem, sendo que a primeira nunca poderá ter como ponto de chegada a segunda, sobretudo no que toca ao poder virtual da pena.
Deste modo, Pulido Valente divulgou em público o convite que lhe foi endereçado aproveitando para aplicar o habitual correctivo. Ora, Vasco Pulido Valente tem estilo; e tem, sobretudo, sentido de humor. Se lhe vigiarmos com atenção aquele permanente estado de vigor colérico, notaremos uma certa distância e ironia que lhe permite estar a salvo de qualquer beliscadura. O sacana, porque escreve muitíssimo bem, pode dar-se ao luxo de ignorar olimpicamente as respostas à suas provocações, arrasar figuras públicas, trazer à contenda argumentos falsos ou falaciosos sem correr o risco do contraditório. Há outros que também sofrem dessa qualidade, mas ninguém o faz com tanto estilo como Pulido Valente. Saramago é outra história. O homem, quem o pode negar, tornou-se amargo com a idade. Não que alguma vez tivesse sido a imagem da bonomia; aquele ar austero de agente funerário não engana ninguém, é bom de ver. Mas o passar dos anos azedou o leite onde ainda poderia fermentar alguma esperança de desprendimento. Nada feito, ele é comunista e ninguém o poderá convencer de que este mundo poderá ter alguma espécie de salvação. Caminhamos para o caos da cegueira branca. Poder-se-ia dizer que Pulido Valente se assemelha nos maus fígados, mas se eu ousasse tal coisa lá se ia a argumentação por água abaixo. Para o que der e vier, Pulido Valente não está zangado com o mundo, simplesmente está profundamente amuado com o brinquedo que lhe deram para brincar, este belo país à beira-mar plantado. Onde Saramago é deselegante, ignorante e horrorosamente burro, ao ponto de conseguir que José Manuel Fernandes, esse casto paladino do neo-liberalismo, pudesse ter dito que o escritor é elitista, Pulido Valente é cáustico, verrinoso e profundamente certeiro nas críticas. Ele não disse que a leitura é uma actividade elitista; afirmou que a maior parte da sua geração não lê porque não se dá ao trabalho. Ele não sugeriu que motivar para a leitura é um esforço vão; mas apontou as falhas no Plano, as incongruências, sem precisar de mostar alternativas. O estilo basta-lhe. E isto faz toda a diferença.
Eu sei que será demasiado exigir a um esquerdista que tenha sentido de humor, mas, no mínimo, o que se pede é alguma lucidez. E vergonha. Vergonha de quem cresceu num ambiente rural e apenas conseguiu acabar o antigo liceu, e mesmo assim se veio a tornar um, apesar de tudo, bom escritor. Repito, bom escritor. Nunca de génio, e quem sabe se o seria se por um acaso na meninice um qualquer Plano Nacional de Leitura tivesse sido implementado em seu favor. Mas isto é já sonhar alto.

[SL]

Mudanças

Caro Luís, após ampla - mentira, não foi nem um minuto - meditação sobre o assunto em mãos, intercalada por alguma leitura blogosférica avulsa em busca da "palavra perfeita", neste caso se por palavra entendermos o estilo e tamanho certos, acedemos à sugestão (não ligue ao "nós" majestático) e aumentámos o tamanho do texto, não esperando com esta mudança diminuir em nada o estilo (ou a falta dele) e, por outro lado, manter a absoluta falta de rumo neste blogue. Mais acrescentamos, e agora estendemos a mão à restante audiência (?), que a partir deste momento, exactamente agora, passaremos a contar neste blogue com os préstimos a tempo inteiro de Susana Viegas, quando, como e onde lhe aprouver, sonhando desde já com os tempos idos em que caminhávamos sós em direcção a sítio nenhum. Se por uma desgraçada má-sorte tivéssemos dado em políticos, estaríamos neste momento a negar de forma cobarde a cedência a pressões exteriores na tomada de decisões. Não é o caso. E ainda bem.

[SL]

02/06/06

Tristeza e desencanto

No seu último álbum, Morrissey fala de modo explícito sobre sexo. Horror e espanto? Mentira, ele anda a fazê-lo desde o final dos anos 80. Há, no entanto, uma imagem construída que é difícil desaparecer de um momento para o outro. Depois dos vinte e cinco, deixa de fazer sentido a pose miserabilista tão elegantemente cultivada pelo músico. A tristeza tem um prazo de validade muito curto. O desencanto, por outro lado, pode durar uma vida. Descobrir a diferença de natureza dos dois marca a fronteira entre uma metade e outra do tempo a que temos direito. Há quem não resista à descoberta.

Estar

And when I'm lying in my bed
I think about life
and I think about death
and neither one particulary appeals to me

The Smiths

01/06/06

Uma imagem criada

Em "O Tempo que Resta" (François Ozon), a determinada altura a personagem que vai morrer coloca a mão do amante sobre o coração e pergunta-lhe se ele o sente. Enquanto ainda bate. Olho a imagem criada e penso no meu filho curioso sobre o órgão por onde o sangue circula, descoberta recentíssima, perguntando o que é aquela coisa que tão depressa pulsa ao ritmo dos segundos como a seguir dispara sem rede de segurança. Incontrolável, sem princípio memorável nem fim que se consiga adivinhar. A prova de que a consciência é uma extensão do corpo reside neste motor imprevisível que dita a duração da vida. Ainda bate.