31/10/11

Ponto de fuga

Uma ideia. A caminho do sul
fomos os dois ter contigo.
Tu não esperavas,
mas por vezes não gosto de falhar
ou admitir que falhando dou sentido ao que faço,
quando o que eu faço, o que todos nós fazemos,
pouco sentido tem.

(Não escrevo qualquer sentido porque parti,
eu com ele, ao teu encontro, e quando te vi senti o
mesmo que ele, cedi a uma divindade de existência duvidosa, amor.)

Uma ideia. Simples. O sul, ponto de fuga
que não entrava nos nossos hábitos,
uma imagem inventada por poetas
ou o longo plano afastado de Minghella naquele
filme que tu juravas nunca vir a amar.

Mas vieste a encontrar o fio que nos unia
na malha tecida de outra história de paixão e
infortúnio.

Ou talvez tenhas cedido;
o jogo de derrotas fáceis
é determinante para compreender
as razões de nos mantermos juntos.

E chegámos, e tu vieste ter connosco, e perdemo-nos.
Depois fomos de carro até ao fim do mundo,
e parámos a tempo. Iremos parar sempre a tempo,
é essa a minha ideia. Eu, tu. Mais
de um mundo esboroado que apenas ele,
com as suas reconhecidas qualidades de engenheiro,
soube reconstruir, apontar o sul.

(Ou o oeste, tanto faz, o oeste por onde um dia havemos de passar).

A minha ideia. E eu sei que entendes.

29/10/11

Alexandria

                                  "Quando de repente, à hora da meia-noite, se ouvir         
                                                                                              passar a turba invisível
                                                                                   com músicas requintadas [...]
                                               
                                               K, Kavafis, «O Deus abandona António»
                                    
I


onde se perderam aqueles cadernos a que
teimosamente tornavas para escrever
de novo e de novo as mesmas frases
descalços pés apoiados na arcada da varanda
o sol dando-te no rosto cadernos onde
teimosamente ensaiaste alguns
gestos um verão inteiro atrasando-te
onde estão esses cadernos que não 
chegaste a rasgar e a costurar de novo
onde com ténues fios brancos e estreitas
agulhas apenas alinhavaste frases
esses comprados em estações 
de autocarro furtivamente guardados 
em gavetas de armários com chave
(...)

Tatiana Faia, in Lugano, edição Artefacto

28/10/11

The sense of an ending, Julian Barnes

A história contada por Julian Barnes em The Sense of an Ending (que vai ter o título em português de O Sentido do Fim*) é uma história de enganos e descobertas. Reencontrar o fio perdido de uma memória de juventude, de um acontecimento que surpreendeu e marcou um grupo de amigos, em particular o narrador do livro, Tony Webster. O avanço da narrativa faz-se na incerteza. O narrador não sabe o que aconteceu, nem porquê, e vai descobrindo à medida que o leitor descobre. A técnica usada não é especialmente inovadora mas é eficaz a vários níveis: serve a ideia da história e conduz o leitor a um caminho de percepções erradas e ideias construídas e desfeitas, um caminho em que o equívoco pode levar ao desastre e actos impulsivos à tragédia. 
O tema do romance evoca Expiação, de Ian McEwan, no seu pressuposto narrativo, mas a resolução do problema acaba por ser diferente em Barnes. Enquanto McEwan investe no pathos, criando uma personagem, Briony, cujo lastro de culpa que um acto ingénuo, uma errónea interpretação da realidade - normal numa criança de 12 anos - leva a um desespero apenas mitigado pela doença da esquecimento, Tony acaba por ser apenas um peão do destino, e o conhecimento tardio das razões que levaram ao suicídio de Adrian, o amigo de juventude, é um fantasma que o assombra - e assombrará, dado que o livro termina no vazio; da vida de Tony, a conclusão de um percurso de passividade e desistência. A aceitação da calma burguesa, que contradiz os ideais de uma juventude forjada nos swinging sixties, é o espelho invertido do brilhantismo de Adrian, derrotado pelo seu próprio tumulto.
As frases elegantes, a cadência realçando o modo como o narrador olha para o mundo, o domínio perfeito do suspense que qualquer boa história deverá exibir, fazem deste livro um cúmulo na obra de Barnes, que acabou por ser premiado com o Booker. Se mereceu ou não, pouco interessa; o resultado final oferece-nos algumas perfeitas horas de leitura, e isso é suficiente.

*Não concordo com esta tradução. Literalmente, poder-se-ia traduzir por "A sensação de um fim" ou, mais livremente, "O sentimento de um fim". É esse o significado da expressão. Mas é claro que Barnes também tentou dar outra dimensão ao título, e neste caso a palavra "sentido" parece bem aplicada. Contudo, o artigo usado em inglês é o indefinido, "an" e não o definido, "the". E quem lê o romance (ou novela) percebe que "fim" é usado no sentido de "closure", resolução. O enigma de um suicídio, a razão que vai para lá da frase de Camus. A grandiloquência da solução encontrada não se justifica.

Nota: a capa da edição portuguesa (da Quetzal, a sair em meados de Novembro) não é totalmente falhada. Mas por que é que não usaram a da belíssima edição original? Mistérios...

O último segredo (de Polichinelo)

"uma imitação requentada, superficial e maçuda"

"abrir com grande estrondo uma porta que há muito está aberta"

"É impensável, por exemplo, para qualquer estudioso da Bíblia atrever-se a falar dela, como José Rodrigues dos Santos o faz, recorrendo a uma simples tradução. A quantidade de incorrecções produzidas em apenas três linhas, que o autor dedica a falar da tradução que usa, são esclarecedoras quanto à indigência do seu estado de arte."

Tenho quase a certeza de que foi José Tolentino Mendonça, poeta mas também hermeneuta dos textos bíblicos, quem redigiu a nota do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura a propósito da mais recente besta célere de José Rodrigues dos Santos e da pomposa cretinice com que veio anunciar ao mundo que "Jesus não era cristão" e "Maria não era Virgem". O tom indignado da nota, de resto, não era necessário: o ridículo de tais "revelações" de Rodrigues dos Santos não merece troco.

22/10/11

Trêsporcento/Elefantes azuis

O rock português tem vivido nos últimos anos um fulgor que ultrapassa, de certo modo, o dos anos 80, considerada a década de ouro do género em Portugal. Das bandas da editora Flor Caveira e Amor Fúria a projectos que reúnem músicos que vêm da década de 90, tem havido muito por onde escolher; e ouvir. É verdade que na maior parte dos casos, o som está demasiado colado às influências, mas há alguns projectos que têm conseguido ser minimamente criativos, afastando-se do modelo original quanto baste.
Mas a música também é também corrente de influências, e um dos maiores prazeres de um melómano (estamos a falar de pop/rock, mas usemos o pretensioso termo) é descobrir acordes antigos em novas músicas, melodias de bandas de que gostamos numa canção de um novo projecto. Os Trêsporcento conseguem ser um objecto musical que cruza as duas particularidades - a criatividade e o gosto por referências acima de qualquer suspeita - de modo significativamente estimulante. Este é a primeira música deles a rodar intensamente nas rádios, graças à Antena 3, e é retirada do álbum "Hora Extraordinária". É excelente.

(Devo evidenciar que o facto do Lourenço Cordeiro, benfiquista dos sete costados, pertencer à banda, não me influenciou minimamente na escrita deste post.)

Pequenas derrotas

As pequenas cobardias do dia a dia são como pedras moendo devagar; o coração acaba por se transformar num animal encolhido, tremendo de medo. E somos mais depressa derrotados.

18/10/11

Barnes/Booker

Os prémios pouco têm a ver com literatura, mas isso não significa que The Sense of an Ending não seja uma grande novela. Uma belíssima e serena reflexão sobre os equívocos da juventude, sobre o declínio e sobre as subtis mudanças que sofremos à medida que vamos envelhecendo. Um grande livro de Julian Barnes. Esteja ou não satisfeito com o reconhecimento, merece os parabéns.

A Casa é Infinita/Tomas Tranströmer

Primavera de 1827, Beethoven
iça a sua máscara da morte e parte.

As rodas continuam a girar nos moinhos da Europa.
Os gansos selvagens voam para Norte.

Aqui é o Norte, aqui é Estocolmo
piscinas apalaçadas e condomínios.

Os toros na lareira Real
desabam de Alerta! para À Vontade.

A paz prevalece, vacinas e batatas,
mas os poços da cidade respiram profundamente.

Pela noite, canhões são levados em segredo pela Ponte do Norte,
como se fossem paxás sentados em cadeirões de veludo.

O pavimento de pedra fá-los vacilar
donzelas mendigos cavalheiros.

Implacavelmente quieta, a placa
com o negro fumando.

Tantas ilhas, tanto para remar,
os invisíveis remos contra a corrente!

Os canais são transitáveis, Abril Maio
e o mês de Junho, doce e gotejante como mel.

O calor chega às ilhas mais distantes.
As portas na aldeia estão abertas; menos uma.

O ponteiro do relógio-cobra lambe o silêncio.
As encostas rochosas brilham com a paciência do geólogo.

Aconteceu assim, ou quase.
É uma obscura história de família

sobre Erik, derrotado por uma maldição,
inutilizado por uma bala disparada directo à alma.

Foi à cidade, encontrou um inimigo,
e regressou de barco, doente e cinza.

Fica de cama todo aquele verão.
As ferramentas na parede estão de luto.

Ele jaz acordado, ouve o esvoaçar felpudo
das mariposas, as suas companheiras ao luar.

A sua força esvai-se, tenta lutar em vão
contra a armadura de ferro, o amanhã.

E o Deus das profundezas grita das profundezas
"Entrega-te a mim! Entrega-te!"

Todo o movimento à superfície se volta para dentro.
Ele é despedaçado, recomposto.

O vento levanta e os arbustos
de rosas selvagens ondulam à luz fugidia.

O futuro floresce, ele olha
para o caleidoscópio auto-giratório

e vê trémulos e indistintos rostos,
rostos de familiares ainda por nascer.

Por engano, o seu olhar apanha-me
enquanto eu passeio aqui em Washington

por entre casas imponentes sustentadas
por colunas alternadas.

Prédios brancos que parecem crematórios,
onde o sonho dos pobres se transforma em cinza.

A suave encosta descendente torna-se mais íngreme
transformando-se subtilmente num abismo.


(Versão a partir da tradução de Robin Fulton para inglês, incluída no livro New an Collected Poems, ed. Bloodaxe Books.)

16/10/11

Laços

Reencontro familiares que já não via há perto de vinte anos. Os rostos envelhecidos espreitam-me de um sonho. Os meus recorrentes sonhos sobre a infância e a adolescência, os sonhos dos lugares a que não poderei voltar - sabemos que ao passado não se pode regressar. Há contudo uma alegria, uma breve percepção de alegria, no reencontro: a pele gasta e as rugas não escondem a expressão que eu conhecia. Volto a vê-los e é como se os vinte anos tivessem sido um sonho. E as vozes, são também as mesmas. Fantasmas vivos, que conversam, ouvem e riem.
Não sei ainda se fiz mal em me afastar deles ou se fiz bem, para os poder recuperar numa idade em que finalmente consigo valorizar os laços de sangue. O amor, mais ou menos manso, que nos ensinam desde o nascimento.

Constanza style

Toronto, 15 de Outubro de 2011. Foto de Graeme Bacque encontrada no Facebook.

15/10/11

Uma fábula

A estupidez é uma forma de violência
que impõe a sua lei num país de cobardes e oportunistas,
gente que aceita a sua condição de moeda de troca
menos valiosa do que os escravos que vinham de África
- ao menos sabiam da sua condição, eram mais lúcidos -
e mais depressa descartável, porque nem a força do trabalho
serve num tempo em que tudo se joga no vazio,

a crise financeira abateu
os corações e tornou o povo fraco
derrotado ordinário sereno e feliz
acomodado ao conforto burguês dos
bens hipotecados, dos empréstimos a prazo,
da esperança que regressa na próxima mudança de governo,
da sensação de fim, da pacífica eutanásia

de um vigor de que não se tem memória,
de uma força há tanto desaparecida
que apenas se prolonga na falsidade
da literatura, em verso ou em prosa,
escritos de antigos heróis cujas estátuas povoam
as nossas rotundas -
a modernidade chegou com uma inauguração autárquica

e com o aplauso geral das senhoras de estola (aquelas
que pensávamos ser apenas figuras de ficção)
e dos mafiosos príncipes da desolação,
chupando fálicos charutos e sorrindo para as câmaras
de televisão, rindo na cara do povo que lhes deu o voto
e lhes desculpa o roubo, a cara-de-pau, a ostentação,
e tudo mais que dali venha, pois o respeito

é bonito, e aprendemos a ser homens aceitando
o eterno constante, o que aprendemos na escola,
a admirar ao longe os feitos de uns barbudos
revolucionários que trouxeram a "liberdade" à pátria,
ou então aprendemos a desdenhar
e a culpar esses barbudos revolucionários
pela decadência agravada.

Imagens do presente que repetem
derrotas do passado, e o desassombro
permanente, a satisfação de aceitarmos o cansaço,
de sabermos que pouco podemos fazer para mudar
a epidemia geral da estupidez, a sua carantonha feia,
habituados e tristes, fodidos e anestesiados,
mal pagos pelos criminosos que escolhemos

para decidir as nossas vidas,
abraçamos de bom grado o que aí vem,
e nenhum fervor provisório, nenhum terramoto,
nos resgata do estado de estupor a que decidimos
submeter aquilo que somos, aquilo que achávamos ser,
o que em tempos julgaríamos alcançar.

Ainda há tempo?

14/10/11

The sense of an ending (em eco)

O sentimento de um fim. O título do livro de Julian Barnes rima estranhamente com o estado do país. O dia de ontem, acabado de passar, anuncia tragédias iminentes, o desastre absoluto. Oficialmente em depressão, a nação parece caminhar em direcção ao abismo. A Europa afunda-se, e nós com ela. Resta-nos confiar na História; nos seus ciclos e na sua provisão, aceitar que não é apenas o bem estar económico que traz felicidade. A palavra que se tornou tão desprezada em determinados círculos continua a fazer sentido. A história não vai acabar.

13/10/11

The Sense of an Ending - na companhia de Ulysses (5)

Julian Barnes preparou o terreno até chegar à primeira surpresa do livro, mas eu não percebi. O que era, até certo momento, uma desapaixonada memória de juventude transformou-se numa reflexão sobre o sentido da vida a partir da célebre primeira frase de Camus: "O suicídio é a única questão filosófica".
Não me interessa resolver agora esse problema - ainda há quem se atreva a tentar? - mas antes realçar a perfeição do efeito. Os sinais, subtis, de que a narrativa iria sofrer uma inflexão dramática - como a vida, lá está, como a vida - foram semeados pacientemente por Barnes, sem nunca deixar de cativar o leitor  com episódios mais ou menos picarescos da história das personagens. Curiosamente, a tal questão filosófica é um tema que terá mais a ver com as pretensões da juventude do que com a sabedoria da velhice. Mas apenas o desenrolar do fio do romance poderá confirmar esta intuição.
Entretanto, em Dublin decorre o funeral de Paddy.

11/10/11

Ulysses (4) - na companhia de Julian Barnes

Sair do caos da Dublin joyceana para a memória ordenada de Julian Barnes. 
O título do seu mais recente romance, The Sense of an Ending*, contém uma promessa de revelação. Melancólico e banal, poético e coloquial. Depois da leitura de Nada a Temer, apeteceu-me voltar a Barnes. A mulher dele entretanto morreu. Pat Kavanagh, uma das protagonistas de uma querela literária no meio britânico com Martin Amis, de quem era agente. Amis e Barnes eram amigos, e também eles se afastaram depois da zanga.**
A sombra da mulher, cairá sobre a novela? As primeiras trinta páginas parecem ser a típica narrativa de um escritor a entrar na idade crepuscular. Há aqui e ali alguma ironia distanciada - sobretudo na descrição que o narrador faz das tolices de juventude - mas a carga humorística característica de Barnes parece ter-se esvaziado.
As dores da velhice pesam; mais no corpo do que no espírito, como Stephen Dedalus ainda não sabe. Nem Joyce saberia quando estava a escrever o seu Ulysses. A vitalidade transbordante da epopeia dublinesca nada tem a ver coma serenidade desiludida de Barnes. Por isso, vou continuar a ler os dois em paralelo. Até ver.

*Belíssima capa, a da edição inglesa. Hardback Jonathan Cape, elegante e sóbria, com estilo e graça. As editoras portuguesas continuam a não seguir os bons exemplos porquê?

**Será que depois do desaparecimento dela, em 2008, eles restabeleceram a amizade? Estas histórias paralelas dos escritores começam a interessar-me como nunca até agora. As biografias sempre me passaram ao lado, e apenas recordo de ler com bastante proveito a escrita por Nicholas Shakespeare sobre Bruce Chatwin, um tijolo de 1000 páginas que li durante dois, três meses de um verão da década passada - ou talvez da anterior, não sei; mas foi no verão, isso é certo. A vida de Chatwin - um dos meus heróis literários dos vinte anos - foi uma história mais bem contada do que qualquer uma das suas novelas. Apenas os relatos de viagem - Na Patagónia, Canto Nómada - conseguem ir mais longe na efabulação, na invenção.

09/10/11

Este não é o verso

Não nos ensinaram a perder.

Tanto tempo passado e os mesmos pulhas
lixam-nos a vida, e não é a mãe, não é o pai -
são os pulhas lá fora que nos tramam,
à nossa vulgaridade burguesa,
a necessidade de controlar o tédio,
de pertencer a um mundo tão fragmentado
que nenhuma imagem o poderá remendar.

E perdemos amigos verdadeiros
para ganharmos amigos que nunca iremos conhecer;
perder, perder, perder,
antes de naufragarmos na velhice
e então esquecer a sério os amigos que perdemos,
e a memória dos amores que não iremos recuperar.

Lixam-nos a vida com a permissividade que
nos leva a sentir menos o sofrimento dos outros,
e nós deixamo-nos lixar, felizes
na nossa pacífica derrota, isolados num mundo a que
dizemos não pertencer - mas como pertencemos!

Tudo o que nos ensinaram foi
a saber como ganhar; todas as lições erradas,
e agora submetemos os nossos filhos
à mesma dança envenenada, o testamento
deixado a uma vida que não espera,

porque nada tem a perder.

Ensinaram-nos todas as coisas erradas; e é tão
inútil, a alegria de aqui estar.

06/10/11

Ulysses (3)

Como ser popular sem deixar de ser erudito? Como retratar a alma de uma cidade e dos seus habitantes, de todas as classes e proveniências, criando uma obra de arte que transcende de algum modo tudo o que foi feito antes? Como soar a Pogues nunca abandonando o caminho da epopeia de inspiração homérica? Uma viagem em circuito fechado, urbana, que tem a respiração de uma longa jornada de regresso de casa, marítima.

Tomas Tranströmer

Não correu como eu desejaria, mas não deixa de ser uma boa surpresa.

LISBOA

No bairro de Alfama os eléctricos amarelos cantavam nas
subidas.
Havia duas prisões. Uma delas era para os gatunos.
Eles acenavam através das grades.
Eles gritavam. Eles queriam ser fotografados!


"Mas aqui", dizia o revisor e ria baixinho, maliciosamente,
"aqui sentam-se os políticos". Eu vi a fachada, a fachada, a fachada
e em cima, a uma janela, um homem,
com um binóculo à frente dos olhos, espreitando
para além do mar.


A roupa pendia no azul. Os muros estavam quentes.
As moscas liam cartas microscópicas.
Seis anos mais tarde, perguntei a uma dama de Lisboa:
Isto é real, ou fui eu que sonhei?

(Tradução de Luís Costa, encontrado aqui.)

04/10/11

C'est si charmant...

... que não resisto.

Stereolab

Os Stereolab são uma daquelas bandas tão elegantes que nada vão perdendo com o passar do tempo. Pop de luxo, com a voz maravilhosa de Laetitia Sadier planando sobre sintetizadores alienígenas e violinos melancólicos. Uma combinação que comove o coração, de tão perfeita. E o vídeo é excelente, inspirado em Jean Cocteau. Não queria que o que eu vou escrever a seguir soasse mal, mas... já não se faz música assim; beleza pura. 

Ulysses (2)

In long lassoes from the Cock lake the water flowed full, covering greengoldenly lagoons of sand, raising, flowing. My ashplant will float away. I shall wait. No, they will pass on, passing chafing against the low rocks, swirling, passing. Better get this job over quick. Listen: a four-worded wave-speech: seesoo, hrss, rsseeiss, ooos. Vehement breath of waters amid seasnakes, rearing horses, rocks. In cups of rocks it slops: flop, slop, slap: bounded in barrels. And, spent, its speech ceases. It flows purling, widely flowing, floating foampool, flower unfurling.

Pág. 45, ed. Wordsworth.

03/10/11

Ulysses

Falando de pretensão: David Lodge sugeriu-me a leitura de Ulysses. Não sou de ouvir vozes, mas acontece - e nesses momentos, tenho de obedecer, qual seguidor de Charles Manson em busca de celebridades ricas. 
Primeira tentativa. Conheço - conheci, em tempos - quem tenha tentado várias vezes sem êxito. Mas eu tenho uma estratégia (que, se tudo correr bem, vou sabotar): ler um determinado número de páginas por dia, mantendo a média ao fim da semana. Fácil. E tem sido como entrar num labirinto. De frases sublimes, de alusões incompreensíveis, de espelhos que reflectem sombras vagas. Curioso é ter-me deparado com poucas palavras que não conheça. Alguns vocábulos irlandeses, é certo, dos quais um ou outro familiares (demasiados filmes com irlandeses e os Dubliners também ajudam). Citações em latim de que se depreende o sentido. Referências clássicas fáceis de detectar por quem não tenha passado metade da vida a brincar com jogos de computador (mas, esperem, eu passei). E aquela imersão na consciência das personagens que deixa qualquer um ligeiramente aturdido; pela destreza na passagem do discurso indirecto simples para o livre e daí para a stream of consciousness, na primeira pessoa. Orgânico parece ser o adjectivo que costuma ser usado, nestas ocasiões. Uma máquina de escrever orgânica. Pode ser.

A esposa perfeita

Sela Ward.

02/10/11

Trigo

Grãos caindo sobre a secura
da terra,
na ponte
as chuvas cessavam,
as
mãos que
misturavam na cova
sementes
e as enterravam tão fundo
que o deus debatendo-se
aos repelões no sangue
de súbito entrava num
silencioso transe.

Tudo se movia nos seus olhos,
e do futuro vigiava como
um velho o eco dos passos
hesitando em volta dos
cadáveres - a plena podridão.

01/10/11

Noites de Verão

Final insatisfatório

I've seen 4 movies that Clint Eastwood directed: Million Dollar Baby, Changeling, Mystic River, and Gran Torino. IMO all 4 of them shared the same characteristics of being too long and slow-paced, appearing aimless, and having boring scripts with unsatisfying endings. They're the type of movies that have me going "This looks interesting" at first, but then by the end I'm thinking "Maybe this really wasn't the type of story that could be made into an entertaining movie". Yet he's hailed as a director. I don't know a whole lot about film, so I was just wondering how much of this is his fault as the director as opposed to it being the fault of the writer(s), and how much he has a hand in changing things to make the movie better as far as pacing and plot go.

De um utilizador do IMDB. A opinião, não surpreendentemente, define a diferença entre um bom e um mau filme, mostrando como o cinema bem feito se aproxima tanto da vida, "demasiado duradoura e lenta, parecendo não ter sentido, com um argumento chato e um final insatisfatório". É isto.

Trust (2)

Mas o amor, claro, é atirar-se de olhos fechados para os braços de uma incerteza. Arriscar a queda desamparada.

Trust

A confiança comporta-se como uma ponte em plena tempestade: se as fundações são fortes, aguenta-se; mas quando cai, leva tudo atrás. Talvez por isso seja mais cómodo ficar do lado de cá da margem, e pagar de vez em quando uma viagem ao barqueiro do Hades, para nos levar ao Inferno dos outros.