06/02/14

365 forte

Este blogue não será o mais adequado a escrever sobre a actualidade. Ainda pensei continuar por aqui o que fazia no Arrastão, mas faz mais sentido fazê-lo num blogue colectivo. Por esse motivo, aceitei o convite para escrever para o 365 forte. Por aqui, a vida continuará, mas sem política.

31/01/14

"Vergados à sua vontade"


Ao longo da História, o prémio de maior vilão tem sido firmemente disputado entre a realidade e a ficção, e não se pode dizer que haja um vencedor previsível ou definitivo. O mal real, palpável, traduzido em actos hediondos, concorre com o mal ficcional, criado a partir de palavras ou do desempenho de actores.

Mas os vilões da ficção levam vantagem neste confronto. Conhecemos as motivações, convivemos com eles, chegamos a sentir as suas dores, as suas razões, as suas penas. A mestria do criador permite que muitas vezes sintamos simpatia por parricidas, assassinos em massa ou seriais. O anti-herói, uma das mais perversas categorias criadas por escritores - e que o cinema aproveitou, enriquecendo as palavras com inesquecíveis imagens -, colocou-nos num campo desconfortável: o da relatividade moral. Ao compreendermos as intenções de um assassino, ao vivermos com ele o desconforto, ao encontrarmos motivos para os seus actos hediondos, desistimos de parte da nossa humanidade? Talvez não. Porque ao confrontarmo-nos com o lado mais negro da alma humana - o vilão é sempre uma extensão da psique, uma emancipação do ego sobre os constrangimentos das regras de convívio social -, exorcizamos a violência gerada pelas agressões do quotidiano. Aceitamos os impulsos homicidas de Dexter porque há sempre uma extensão de nós que compreende o fascismo da violência que combate a violência. Entendemos a deriva niilista de Walter White porque vivemos as nossas vidas recolhidos na mesma placidez doméstica castradora de que ele tenta libertar-se ao longo da série.

Os escritores moldam as suas personagens como barro, mas moldam também os corações e o espírito dos seus leitores. Ao escolherem vilões como personagens principais, sabem que estão a conduzir o leitor para um jogo perverso. Quem ama uma história ama também quem a protagoniza. Mesmo quando no fim o vilão acaba por ser derrotado. Estamos do lado de quem, de Iago ou de Othelo? 

Mas a realidade é outra coisa. Mantém-nos à distância, impossibilitados de compreender actos extremos. O assassino em massa que, enfiado dentro de uma caixa de vidro, clama pela normalidade do que fez, é um estranho. Em vão lemos as notícias de jornal procurando saber as razões pelas quais alguém decidiu fazer o que fez. Conhecemos as confissões, as cartas escritas, os livros que relatam as atrocidades, mas haverá sempre uma zona de sombra a que não acederemos. O impulso homicida, o sadismo, parecem estar apenas a um palmo de distância, mas são inacessíveis, existem para lá da barreira de vidro. Por isso, não se compreende a defesa ensaiada por este advogado. Defensor de um dos cúmplices de uma mulher que matou três pessoas e tentou matar mais duas, decidiu associar o carácter da assassina, Joanna Dennehy, ao dos vilões do teatro shakespeareano. Afirma que o seu maquiavelismo e a capacidade de manipular quem a rodeava levaram a que o cliente que ele defende a tenha ajudado a cometer os crimes de que é acusada - como se o livre arbítrio se tivesse ausentado das decisões tomadas pelo cúmplice. Encontrar na literatura a defesa para a violência da realidade é arriscado, não lembraria a ninguém - ou lembraria apenas a um advogado, essa figura de moralidade esquiva também retratada com especial cuidado por muita ficção. Contudo, desconfio que os juízes não embarcarão na conversa do advogado. Olhamos para a fotografia da serial killer e encontramos ali a tal opacidade impenetrável, o limite que não queremos ultrapassar. Que diferença em relação aos vilões literários, figuras de apelo irresistível, companheiros de muitas horas bem passadas. A realidade é demasiado real para ser suportável.

30/01/14

Exílio

I'm not of those who left their country
For wolves to tear it limb from limb.
Their flattery does not touch me.
I will not give my songs to them.

Yet I can take the exile's part,
I pity all among the dead.
Wanderer, your path is dark,
Wormwood is the stranger's bread.

But here in the flames, the stench,
The murk, where what remains
Of youth is dying, we don't flinch
As the blows strike us, again and again.

And we know there'll be a reckoning,
An account for every hour... There's
Nobody simpler than us, or with
More pride, or fewer tears.


Um poema de Anna Akhmatova sobre os que ficaram, encontrado n'O Melhor Amigo.

29/01/14

O duelo


Rússia, pátria de Dostoievsky e de Gogol, a nação dos funcionários irascíveis e das paixões exacerbadas - pelo frio e pelo álcool. O carácter sanguíneo da alma russa - não posso falar com certeza sobre isso, mas acredito no que os escritores me vão dizendo - é um dos traços distintivos da literatura produzida, assim como da sua história. Raskolnikov, levado a um extremo de violência por necessidade, ou Ivan, o Terrível, o tirano retratado por Eiseinstein no filme homónimo, partilham características únicas. 

Depois de há uns meses ter sido notícia uma discussão sobre Kant que acabou com um disparo de pistola, hoje voltamos a ter mais uma prova da singularidade da alma russa. Dois homens envolveram-se num combate de ideias que acabou por ganhar uma fisicalidade inesperada, tendo tudo terminado na morte de um deles, à facada. Podemos lamentar o desfecho trágico da peleja, mas certamente temos de admirar que tudo tenha começado por causa da literatura. O eterno combate entre poesia e prosa teve o seu corolário lógico numa casa em Irbit, nos Urais, onde um convidado, antigo professor de literatura, não conteve a paixão na defesa da sua dama, a poesia, e assassinou o seu anfitrião, fervoroso defensor da prosa. Certamente que o álcool - se tudo tiver corrido de acordo com o esperado, terá sido vodka - e o frio extremo daquela região terão contribuído para tão funesto fim, mas a verdade é que a essência da discussão é tão original e irresolúvel que, de certo modo, acaba por ser natural o extremismo das duas posições. Vejamos: quem, na realidade, poderá preferir Tolstoi a Pushkin (que, recorde-se, morreu ao vigésimo nono duelo em que esteve envolvido, imitando Lenski, personagem da sua obra mais conhecida, Eugene Onegin), ou Tcheckov a Mandelstam? Será Dostoievski o escritor que melhor exprime as angústias da existência ou Tsvetaeva consegue ir mais longe na representação de todas as particularidades da condição humana? Será a poesia de Boris Pasternak superior à sua prosa? E Nabokov, o russo que escrevia em inglês, emigrante na América, representará melhor a literatura russa do século XX do que Anna Akhmatova, que lutou contra o regime estalinista sem nunca ter abandonado o país?

Na aparência, estes combates literários parecem fáceis de dirimir: a escolha entre poesia e prosa é absurda, pela sua natureza e pela sua forma. Contudo, não devemos menosprezar as contradições e o fogo da alma humana. No fim de contas, quem poderá afirmar com convicção, além de qualquer dúvida, que a literatura não é mais importante do que a vida?

28/01/14

Pete Seeger (1919-2014)


Conheço mal a história e a música de Pete Seeger. E estranhamente o que me trouxe a ele é uma daquelas lendas apócrifas que polvilham a história da música popular. A sua reacção ao concerto electrificado de Bob Dylan no festival de folk de Newport é mítica: furioso pela atitude rebelde do seu discípulo, Seeger terá pensado em cortar os fios dos amplificadores que alimentavam a guitarra de Dylan com um machado, porque não conseguia entender as palavras cantadas por baixo de toda a distorção eléctrica. No momento em que acontecia um ponto de cisão na carreira daquele que será o maior génio da folk, Seeger terá escolhido o conservadorismo, manter-se fiel à pureza do som acústico da folk. O cantor progressista, o activista socialista, não gostou da mudança na música e na atitude de Dylan. Acabaria mais tarde por reconhecer que se enganara, considerando que algumas das melhores canções de Dylan são eléctricas.

E para lá das histórias e do combate, há a música.  

24/01/14

Breaking Bad (2)


3. A droga.
Terá sido um acaso o que levou o criador da série (Vince Gilligan, antigo guionista de X-Files) a Albuquerque, Novo México. Vantagens financeiras ditaram que a acção se situe nessa cidade, em vez de Los Angeles, a ideia original. Por outro lado, a proximidade da fronteira com o México, principal porta de entrada de estupefacientes nos EUA, permitiu que as diversas linhas narrativas conquistassem uma riqueza que Los Angeles não permitiria. Para além da paisagem - uma das marcas da série, de que falarei depois - há a questão geográfica. Os principais fornecedores de droga daquele que se tornará empregador de Walter White, Gus Fring, são mexicanos. A cultura de violência ligada ao tráfico tem uma expressão extremada do outro lado da fronteira. El Paso, no Texas (a cidade para onde Hank, o cunhado, é a certa altura deslocado), fica a uma ponte de distância de Ciudad Juarez, considerada a cidade mais perigosa do mundo. O culto da violência dos carteis associado a uma religiosidade pagã transfigura a ideia de morte, torna-a mas próxima dos vivos. A presença da morte é uma banalidade, a violência inevitável. A droga é o pretexto, rastilho dessa violência, que desde o início impregna a acção. Numa pacata cidade perdida do meio do deserto, existe um outro mundo de que Walter White toda a vida se alheou - apesar da relação familiar próxima com uma agente da lei. Ao fazer uma escolha, ao tornar-se fabricante de metanfetamina, o que se torna estranho aos seus hábitos, à sua nova vida, é a vida familiar - recorde-se, a razão pela qual ele se envolve com as margens da sociedade burguesa a que pertence. A lenta transição do homem de família para um fabricante de droga, no seu sentido pleno, vai alterando as coordenadas de normalidade que antes regiam a sua vida. O que antes era normal passa a ser uma fonte de preocupações - a família torna-se alvo de quem vive além dos valores tradicionais do homem médio americano - e o novo normal passa a ser o dia a dia no laboratório de metanfetamina, produzindo para o maior distribuidor de droga do sudoeste.

4. Os traficantes.
Há dois tipos de traficantes na série: os que não passam de estereótipos semelhantes aos que vemos em filmes e séries de televisão, e os que se diferenciam, e que são desenvolvidos ao longo de muito tempo, até se tornarem personagens credíveis, combatendo o cliché do qual se destacam. Walter White e Gustavo Fring aparentam ter bastante em comum - mas o desenrolar da série mostrará que não será tanto assim. Walter ainda não é traficante - apesar de aos olhos da sua mulher ele passar por um -, é apenas um homem que usa uma máscara social que encobre as suas actividades ilícitas. Como ele, Fring compõe uma personagem, passando por homem de negócios sereno, benemérito, ajudando a polícia e fazendo generosos doações à DEA, a hospitais, a lares da terceira idade. A história de Fring será mostrada em flashbacks, e ele revelar-se-á tão implacável e duro como os estereotipados traficantes mexicanos, os barões da droga que vai eliminando ao conquistar o poder que detém no presente. Nunca sabemos o que ele verdadeiramente pensa, mas temos a certeza de que estará sempre um passo à frente do que vai acontecendo à sua volta, como Walter salienta a determinada altura. Como este, Fring demonstra ter uma inteligência superior, é isso que lhe permite movimentar-se no seu mundo. Partilham assim duas características, Walter e Fring: a dissimulação e a inteligência. O que os distingue serão os valores éticos, a família e o sentido de pertença a uma comunidade. Fring perdeu isso há muito, ou nunca chegou a ter. Somos assim colocados perante uma clara oposição entre o herói, Walter, e o vilão, Fring. A simpatia inicial que sentimos por este vai desvanecendo, à medida que o vamos conhecendo.

(Continua. Primeira parte aqui.)

22/01/14

Breaking Bad

1. O título.
É esclarecido logo num dos primeiros episódios, quando Jesse Pinkman atira a Walter White: "descobriste que tens uma doença que te vai matar, e por isso é que tornaste traficante". Esta frase resume a linha narrativa da série: o que é que acontece quando um homem banal, submetido às regras implícitas do capitalismo e aos ditames da classe média a que pertence, se vê confrontado com a morte, iminente mas com um prazo mais ou menos alargado de tempo? Claro que Walter White não é um homem banal; é um professor de química num liceu de uma cidade de província, um "underachiever" - como mais tarde é referido por um dos criminosos que com ele trabalham -, alguém que nunca concretizou em pleno o seu potencial, o que é suposto acontecer numa sociedade competitiva. Mas o seu génio é o que lhe permitirá sobreviver durante o tempo suficiente para deixar uma herança à sua família, não o que o define enquanto ser humano. Ele utiliza a sua superior inteligência para providenciar à sua família o necessário sustento (o que a sociedade capitalista espera de qualquer homem). O "tornar-se mau", no caso de Walter, não é cair no lado do mal, tal como ele é entendido no seu sentido absoluto e filosófico. Há um imperativo categórico na decisão de Walter: ganhar suficiente dinheiro para deixar à família. Portanto, ele transgride, passa para o lado de lá da lei - e o cunhado, agente da DEA, está do lado de cá, sinalizando a transgressão -, mas fá-lo em nome de preceitos da comunidade onde vive, das regras sociais que o constringem.

2. As regras.
A meio da primeira temporada, Walter diz: "antes sofria de insónias, acordava a meio da noite pensando na vida, e desde que recebi a minha sentença de morte tenho dormido como um anjo". Ficaremos durante algum tempo na dúvida sobre a razão desta súbita paz de espírito. O movimento que o levou ao outro lado, a "tornar-se mau" trouxe-lhe a (ilusão de) compreensão do que antes o deixava perplexo. A angústia existencial foi domada, e o sono regressou. Mas esse alívio não vem da nova actividade a que ele se dedica, mas da libertação dos sofrimentos que a vida traz. A proximidade da morte foi a causa da libertação? Não. Foi ter deixado de sentir-se preso às regras que, durante toda a vida, o conduziram a um ponto tão agudo de frustração que apenas a suave anomia de uma vida familiar lhe poderia oferecer um simulacro de felicidade. Morre Walter White, e no seu lugar nasce Heisenberg, o perigoso traficante de droga sobre o qual se tecem lendas e se escrevem canções, como os músicos mexicanos fazem aos barões que comandam os carteis. 

(Continua)

07/01/14

Existir

Dando mais um passo na invasão da privacidade dos utilizadores, a Google adicionou uma funcionalidade ao interface mail/blogue/rede social, e agora podemos ver todas imagens postadas no Facebook e no blogue. Esquecendo a questão da privacidade - se eu estivesse verdadeiramente preocupado com isso, não existiria na virtualidade real por onde ando -, a verdade é que o conjunto das imagens associadas ao que vou fazendo mostra parte do que sou, da minha identidade - forjada, claro que está, até porque sabemos que todas as identidades são uma fabricação, o pano que deixa a descoberto outro pano sobre o palco.
Muitos frames de filmes são o sinal evidente que a vida virtual compõe-se sobretudo de ficção. Os filmes que vejo, as actrizes - várias mulheres, quase todas mortas e a preto e branco -, os enquadramentos que me marcaram. É uma história paralela da minha vida - olho para trás e quase que consigo saber quem fui quando me apaixonei pelo "Paciente Inglês" ou quando me comecei a perder nos labirintos mentais de David Lynch. 
É claro que muito do que fui publicando no blogue reporta-se a um tempo anterior às redes sociais. A passagem para a vida adulta, aquele momento em que se estabelecem os pilares de uma personalidade - ponto de partida da identidade que floresce a partir da inevitabilidade melodramaticamente metafísica dos trinta anos - é pontuada pelas inúmeras vias divergentes, os mil e um focos de interesse numa rede que se afigura quase infinita, como se sentindo tudo de todas as maneiras fosse o único modo de viver. Estão lá os livros, os filmes, as bandas, os quadros reproduzidos no espelho ausente do mundo virtual. Sei o que fui quando gostava do que fui publicando, mas já não tenho tanto a certeza de que aquilo que fui tenha sido mesmo. Aquele começo de dúvida subjectiva, entre o espanto e a desconfiança, que transforma a vida num filme projectado contra uma parede de vidro, a transparência e a luz, a evidência e a incerteza concentradas num intervalo de sombra. 
Os dois passados coabitam no mesmo espaço. O código de programação que marca o avanço do tempo pode ser facilmente subvertido. Consigo mudar datas, alterar acontecimentos, mentir. Mas enquanto a falsa identidade que vamos construindo no passo dos dias é dificilmente rebatível pelos outros - o que passou, passou -, a que vamos por aqui deixando deixa uma pegada mais nítida. A única vantagem desta existência de bits é a curta distância entre o ser e o nada, o clique na tecla delete. Vale isto alguma coisa, enquanto quero. A ilusão de controlo é tudo.

Estrada de Sudek