31/05/06

Desilusão Rau

Foi uma pequena desilusão a minha visita à exposição Rau no Museu Nacional de Arte Antiga. Muito se escreveu sobre esta exposição, pela sua qualidade inquestionável, mas, ao trazê-la a Lisboa, deveria ter havido mais sensibilidade para o público que gosta de visitar museus e que o faz com intuitos de fruição e de aprendizagem dos quadros expostos. Em primeiro lugar, é criticável o conceito de exposição em causa e que se resume a uma exposição literal das obras numa sequência cronológica. A ordem cronológica foi, de resto, o único método presente, uma vez que tudo o mais que se exige a uma exposição de circuito internacional faltou, nomeadamente, qualquer intuito informativo ou pedagógico. As únicas coordenadas presentes no espaço da exposição da visita eram a ordem cronológica e o agrupamento em salas temáticas identificadas (por escolas, como na sala impressionismo/fauvismo). Nem uma indicação relativa ao coleccionador, Gustav Rau, às circunstâncias das compras, aos motivos das escolhas ou até aos critérios estéticos inerentes. À partida, nada relaciona o gosto de Rau por arte sacra, retrato ou paisagismo bucólico. Quanto aos conteúdos expostos, é inegável a qualidade destes mestres da pintura (com Canaletto, Sisley, Signac ou Monet) se bem que, por exemplo, no quadro de El Greco se sinta a falta do verde que tanto impressiona os visitantes do Prado. Bom, na verdade, não nos podemos queixar pois ultimamente não fomos marginalizados no que diz respeito a exposições importantes mas, há que ter recursos para as trazer cá.

Grandes Mestres da Pintura Europeia: De Fra Angelico a Bonnard
Colecção Rau, de 18 de Maio a 17 de Setembro no MNAA.

[Susana Viegas]

Estilo

Admito a miserável queda para o lirismo barato. A irreprimível tendência para a palavrinha xaroposa, a metáfora redundante, o adjectivo desnecessário. Comovo-me com pouco, apesar de quase nunca se notar; dizem que sou seco. Dou por mim a apagar frases inteiras, parágrafos, textos, provação de escriba (cliché, bingo!) à míngua no deserto que faz, desgraçado, por merecer. Mais que o choradinho das palavras, o facilitismo da emoção fácil, o que prende, qual mosca, no melaço do sentimento, é a sensação absurda, mas oh tão errada, de achar que o putativo leitor me acompanha mais facilmente na via sacra da leitura. Lamento, tudo é estilo. O conteúdo é uma coisa que um semiótico qualquer inventou numa noite de atroz insónia, do mesmo modo que a verdade é um truque ficcional mais eficaz como estratégia de engate do leitor ideal, que no meu caso será uma mulher vaguíssima, de olhos ternos e atenção desmedida, ponta do indicador no lábio superior, perna cruzada, óculos caídos sobre o nariz, pele morena. Mas devaneio (e lembro Liv Tyler num filme banal realizado por Kevin Smith de que agora não me recordo o nome, com o canastrão do Ben Affleck e a inefável Jennifer Lopez. Se conhecem o filme, é desta imagem que falo; se não, paciência.), e evoco o mandamento supremo de quem escreve: o estilo. Pode mentir, inventar uma vida, um passado de que não se orgulha, seduzir o casto leitor com pleonasmos de cortar a respiração, arriscar oxímeros, experimentar mil e uma vozes diferentes, copiar outros, sem pudor, desde que mantenha um estilo. Pode o escritor nem saber ao certo o que pretende dizer, não é importante. Se a cadência das frases clicar um qualquer botão escondido no coração do inocente que está do lado do texto, está feito. Bom, bom, escrevia sobre o romantismo tardio que aborrece, apesar de preferir dar um exemplo concreto do que a seguir escrevi: o texto de Joaquim Manuel Magalhães no Expresso de sábado, sobre a poesia de Pedro Mexia. Uma ideia boa repetida em círculo perpétuo, uma reafirmação do lugar de Mexia no seio dos "reais" da poesia portuguesa, e pouco mais, no que diz respeito a conteúdo. Mas a forma, a forma. Ler um ensaio de JMM pode ser quase entusiasmante como ler um poema dele. E entedio o leitor, eu sei, mas podemos pôr as coisas de outro modo. O deleite estético é tão profundo como aquele que sinto ao ouvir de uma ponta à outra o "The Queen is Dead", e está tudo dito. E está explicado o meu vergonhoso romantismo. A frase que serve como epígrafe do blogue pode não ser apenas pose. A sério.

30/05/06

Palavra

João Gonçalves, nesta entrada, questiona-se, dando voz às palavras de Bento XIV, sobre a Fé depois do Holocausto - será possível crer lembrando o horror do extermínio? Não sei se tinha presente a formulação mil vezes repetida de Adorno sobre a poesia e a Shoah - todos a conhecem -, se o paralelismo foi propositado. Nada, depois "daquilo". Mas o que me seduz não é a utilização instrumental da frase de Adorno; é o modo como facilmente se pode substituir a palavra "Deus" por "poesia". Num plano de infinita incerteza, o uso da metáfora pode apaziguar os demónios do abandono a que estamos votados. Ocupar, como se fosse uma extensão de terra, o vazio, acendendo no seu lugar a palavra.

Fé e Razão

A maior parte dos ateus que conheço continua a tratar o Papa por Ratzinger, negando-lhe o nome que escolheu na sua missão de incubência divina. Uma atitude de óbvio despeito, de desvalorização da importância do seu actual papel em relação ao anterior, infinitamente mais exposto à crítica, de responsável pela ortodoxia da Igreja. Diferenciam-no também de João Paulo II, mas não posso afirmar com exactidão se o fenómeno aconteceu nos primeiros tempos depois da transformação de Karol Wojtyla em João Paulo II; acredito que não tenha sido assim. A sua nomeação foi uma surpresa, não era um cardeal mediático como o alemão, e a Igreja precisava de esquecer o curto pontificado de João Paulo I, nos dias de hoje ainda envolto numa nuvem conspirativa de origem difusa. Com Ratzinger, persiste no entanto o desprezo de uns e, mais sintomático, a desconfiança de outros, nomeadamente dos crentes mais progressistas. A verdade é que Bento XVI é um Papa diferente. Oriundo de um meio académico, respeitado teólogo que partiu de uma posição liberal em relação ao Concílio Vaticano II até desembocar em teses mais conservadores na defesa da fé católica, acaba por não agradar nem ao mundo laico, que esperava reformas profundas - por que razão, não sei, a César o que é de César, a Deus... já se sabe - nem à grande massa católica, que ainda não compreendeu muito bem a complexidade do pensamento do Sumo Pontífice. De que modo será recebido por exemplo o discurso de Bento XVI em Auschwitz-Birkenau, até hoje a mais produnda retractação do pecado alemão e ao mesmo tempo católico por parte do mais alto representante do Vaticano? Lamento, mas o povo nem se apercebeu da revolução implícita nas palavras de Bento XVI, e não espero que as beatas do costume (em Portugal, João César das Neves e afins) teçam loas à lucidez demonstrada. Assumir a dúvida, no fundo foi o que Bento XIV fez. O guardião máximo do dogma católico questionou a presença de Deus no mundo, ou melhor, a sua ausência durante o Holocausto. Assombrou-se perante o silêncio. Uma mínima revolução ou um pequeno lapso discursivo? Esta segunda hipótese não me parece possível, conhecendo o rigor do pensamento de Ratzinger, a sua geometria precisa no traçar do caminho para a Igreja. Ele sabe que não pode ceder às heresias que pretendem mudar a orgânica funcional da instituição. Se isso acontecesse, ruiria por completo o já frágil edifício que tem vindo a ser erguido desde a Contra-Reforma. Mas pode-se permitir uma subtileza conceptual que permita que sejam dados pequenos passos no sentido de uma religião que seja mais humana e, simultaneamente, mais racional, se é que isso é possível, esvaziando a importância do legado populista de João Paulo II, campeão das massas. Se quisermos, a Igreja de Bento XVI é mais elitista, rege-se por um catecismo fundamentado e pensado, mas sem abdicar de nenhum dos pilares que sustentam a instituição. A única via possível, mesmo admitindo uma falha na solidez irracional que a Fé representa. Tentando a (inconciliável) união entre Fé e Razão, quinhentos anos depois da Reforma. E isto não é tarefa fácil.

29/05/06

Muralha

A imagem da Grande Muralha da China descrita por Franz Kafka, fragmentada e inconclusa, mandada erigir por um Imperador que ninguém conhece, arquétipo de onde emana um poder difuso e ao mesmo tempo assertivo, pode ou não pode ter alguma relação com o texto que escrevi antes deste. Como pista, escrevo apenas (mas servirá este acto como prova de realidade?) que a associação me ocorreu já depois de ter ter clicado no publish. E tenho presente que a Grande Muralha da China nunca foi terminada. Mas ainda se vê do espaço. (Alguém viu?)

28/05/06

Máquina e memória

Aprendemos a confiar na passagem do tempo e na consequente fixação da memória; sabíamos que o presente apenas se poderia repetir como imagem da memória, e mesmo quando inventámos instrumentos que ajudavam à preservação do passado (livros, desenhos, máquinas) havia sempre um limite que impedia a repetição do acontecimento: o limite que transformava o momento do passado em outra coisa qualquer. Olhar para uma fotografia não era ritualizar o passado; era apenas produzir no presente um acontecimento que substituía o verdadeiro, que passava a existir no lugar da inalcançável realidade. Desconfio que o processo de crescimento pressupõe esta perda irreparável. Ao tornarmos o passado simultâneo ao presente que passa, associamos os dois tempos de forma definitiva, tornamos o passado um rito natural ao ser no presente. Mas o paradigma está a mudar. A infância pode ser empacotada e vendida nas grandes superfícies. Recuamos no tempo recorrendo ao mais básico dos artifìcios: a simulação da realidade, que substitui a ritualização do passado que até aqui acontecia. Séries, jogos, música. A acessibilidade destes objectos sacralizados pela poderosa máquina consumista consegue criar em nós a ilusão da momentânea felicidade. Esta felicidade, pelo cansaço, pela repetição, entranha-se e dilui-se, e a cada novidade rejubilamos menos, extinguimos em nós o desejo e substituímo-lo por uma vontade apenas funcional e vazia de sentido. O rigor do pessimismo das velhas gerações esquece-se porém do óbvio: a mudança não significa degradação, nunca significou, cada geração deve usufruir da felicidade que merece. Se a nossa é breve e extática, rápida e facilmente esquecida, é porque nos munimos das ferramentas que substituem a função da memória. Não lembramos, é verdade. Criámos máquinas que o fazem por nós.

25/05/06

O modelo

César, aspirante a escritor, apanhou naquele dia uma enchente na secção dos modelos. Detectou ao longe a multidão, enquanto passava pela promoção do dia, mesmo em frente à banca dos legumes. Desanimou um pouco, contudo não o suficiente para dar meia-volta e volver, apêndice espinal metido entre as pernas. "Coragem", pensou, neste caso entre aspas, "se não for hoje nunca mais começas aquilo", e seria verdade, tinha a agenda atafulhada durante pelo menos um mês, era uma oportunidade única. Controlou os nervos aspirando o ar em volta, enchendo o peito de forma resoluta. Sem dar por isso, quase deitou ao chão uma grávida que procurava preservativos nas prateleiras erradas, e porque não viu a expressão de fúria que nasceu na cara da mulher, acabou também por lhe escapar o ar horrorizado de um homem de meia-idade (são sempre homens de meia-idade) ao perceber que tipo de artigo a mulher procurava. Chegou por fim à secção dos modelos, encontrando uma densa barreira de corpos e cabeças rodeando o desejado produto. Se pudessem espreitar o enfado que lhe enfeitou o rosto veriam as pequenas rugas ao canto dos olhos, habituais nele, principalmente quando alguma contrariedade surgia. Nem sempre conseguia utilizar de forma sábia o dom da invisibilidade que um professor em tempos lhe tinha augurado num tom jocoso, mas acontece que naquela altura conseguiu activar o interruptor secreto, que para o caso se situava nas costas, mesmo por cima do rim direito, a dez centímetros da coluna, o que tinha obrigado a um esforço agravado do seu braço esquerdo. Invisível portanto aos olhos de todos, ele foi tentando furar por entre o maralhal empurrando e beliscando, puxando e soprando e bufando, agachado ou saltando, pisando pés e dando ombradas, sem contemplações ou angústias. Ao fundo, lá estava o prémio. Ele sabia ao que vinha, e assim que olhou para o modelo reconheceu nas suas linhas o ideal que há tanto perseguia. Era aquele, não podia ser outro. O rigor das feições, o corpo bem proporcionado, a elegância das roupas, o toque de classe do cachimbo pendente dos lábios, o carácter afirmativo dos óculos de massa pretos, o apontamento final da boina encimando o cocuruto careca da cabeça, tudo se encaixava de modo, senão justo, pelo menos imperfeitamente certo. Isso, assim mesmo. Todas as imperfeições do modelo se enquadravam nos planos de meses. Levaria o artigo para casa, sem olhar sequer para o preço. Dirigiu-se à prateleira, retirou-o com cuidado e colocou-o debaixo do braço. Nem notou o peso excessivo, as gotas de suor que lhe perlavam a pele quando chegou à caixa. "Cartão ou numerário?", perguntou a proletária moça, mascando pastilha. "Ah, American Express, por favor." Vinte segundos depois, o modelo era seu. Podia chegar a casa, correr as cortinas, deixar o dia entrar, sentar-se ao computador e desatar a escrever como se não houvesse amanhã, o seu modelo bem paradinho ao lado da cadeira reclinável, de ar sério e bem-posto, pronto para qualquer sugestão, oferta de estilo, consulta de vócabulos; era aquele e não outro que iria servir de guia metódico na tarefa espinhosa que tinha em mãos. Podia ser agora, verdadeiramente, um escritor.

José Luandino Vieira

A eternidade tem um pedaço de terra reservado aos escritores que recusam as comendas dos seus contemporâneos. Em 1996, Herberto Hélder, intransigente na sua reclusão, não aceitou que lhe fosse atribuído o Prémio Pessoa, sem adiantar razões nem desculpas, e todos lhe compreenderam o gesto. Luandino Vieira seguiu-lhe o exemplo, e o de Sartre a Barnard Shaw, e persistiu no isolamento de dez anos no seu convento particular em Vila Nova de Cerveira. Quem o conhece aceita, o sistema entende. Do mesmo modo, quando se fala de prémios Nobel mais depressa se lembra os que nunca ganharam do que meia academia de notáveis nobelizados que caíram no esquecimento do mundo. Nada que surpreenda, e o escrutínio do tempo consegue ser radical nos seus processos. Cada escrito de Kafka, cada conto de Borges, é mais admirado e estudado que toda a obra de Erik Axel Karlfeldt (1931) ou Johannes Jensen (1944), por exemplo. Dou por mim a olhar para a lista dos esquecidos pelo cânone e a pensar nas razões que possam ter levado ao actual estado de coisas. Como é impossível encontrar traduções destes autores, nunca poderei confirmar as suspeitas. Será o valor intrínseco da obra a fixar o escritor na memória colectiva ou dependeremos na totalidade dos critérios de um panteão de académicos que perpetuam os mesmo autores de sempre, produzindo infindáveis teses à volta do mesmo tema? Aprendemos a confiar no gosto alheio, não temos alternativa. O critério parte sempre de uma subjectividade extrema, a que decorre da credibilidade daqueles que lemos e escutamos. Que fazer senão aceitar esta irreversibilidade? Confio nos prémios, no meu gosto ou no gosto dos outros? O critério Bartleby costuma ser bom juiz das minhas escolhas. Este critério obriga a que admire o escritor que se exclui do sistema, se torna objecto de um jogo de negação e recusa. Ao afimar a sua individualidade pela negativa, o escritor-Bartleby (recorrendo à preciosa ajuda de Enrique Vila-Matas) torna-se objecto passivo do meio onde antes pertencia, coloca-se fora do acontecimento, não esperando compreensão ou reconhecimento. Simplificando, presta-se à marginalidade, sabendo no íntimo que apenas o que não pertence à comum mundanidade pode julgar de modo exacto a obra produzida. O escritor que recusa protege a obra dos efeitos secundários da realidade: a vaidade, o orgulho, a mesquinhez dos anões da História. Afirmar que a recusa é também uma atitude mundana não me parece contraditório. É a mais admirável concessão que se pode fazer ao Outro.

23/05/06

A retórica da invisibilidade

Uma das coisas que mais me azucrina em alguma literatura contemporânea é o excessivo name-dropping. O defeito será meu, decerto. Parece que existe uma pós-modernidade que se consola com um sistemático bombardear de referências estéticas, sejam elas de origem erudita ou mais popular. Haruki Murakami, escritor com evidentes méritos, abusa do efeito. Mas isto é literatura pop. As personagens dos seus romances ouvem Miles Davis, Coltrane, Radiohead. Lêem Fitzgerald, Camus, Ibsen. E andam perdidos numa espécie de universo pós-existencialista, onde nem o niilismo é remédio para o sofrimento do mundo. O.K., percebi a mensagem. Mas chega de atirar à cara a cada página a perfeita uncoolness da minha existência. Enrique Vila-Matas é outro exemplo deste nocivo hábito. Falamos de outra divisão, é certo, e nião deixo de achar que o escritor catalão é um dos grandes modernos. Mas as suas últimas obras, "Paris Nunca se Acaba" e "O Mal de Montano", são um fartar vilanagem de citação, evocação e bajulação de tudo quanto é escritor que tenha intervindo na sua formação literária. Descontado o carácter autobiográfico de ambos escritos, assim como a deliciosa ironia aplicada com estilo ao name-dropping, devia ter havido um travão no entusiasmo de Vila-Matas. Contra mim escrevo se admito que a retórica da intertextualidade me aquece o coração. Sinto-me acompanhado de uma multidão de autores lendo apenas um livro, e permito-me sonhar com uma erudição que, na verdade, não possuo. Dou por mim, não raras vezes, sorrindo ao encontrar num autor outros autores de quem eu gosto. Mais reconfortante é, contudo, que um romance me toque sem que grite a plenos pulmões ideias e conceitos. Que fale de modo discreto, baixinho, e consiga provocar o clique do entendimento absoluto e súbito, fenómeno raro de impossível explicação. Tenho em mente alguns autores, Don de Lillo é um deles, Sebald outro. Entre o exército dos silenciosos e o dos terríveis narcisistas da palavra, prefiro sem dúvida o primeiro. Lamento ser o oposto de quem queria ser.

O confronto

Algo de estranho se passa neste país quando um debate televisivo é mais emocionante que um jogo da selecção. Outros textos há por aí que dissecam de forma mais certeira o que se passou ontem no prós e contras, vou-me limitar a deixar impresso e espanto perante o sucedido. A selecção sub-21 hoje jogou mal, sem imaginação e com excesso de confiança e foi perfeitamente controlada pela França, grupo com excelentes jogadores e um colectivo afinado. Ontem, Carrilho mostrou as suas razões e foi amplamente derrotado. O problema é que, por muito fundamento que as suas queixas tenham, Carrilho sofre de uma irremediável falta de credibilidade. A sua gesta começa a parecer um trabalho digno de Quixote, e acaba por ser decepcionante que um homem com o passado de Emído Rangel se preste de modo tão lesto ao papel de Sancho Pança. Pacheco Pereira, intratável e um exemplo de bom-senso a toda a prova no meio da vozearia de Fátima Campos Ferreira, conseguiu separar o que parecia inseparável: o homem da sua argumentação. Quase tudo é verdade, quase tudo deixa de ter força por vir de quem vem. Credibilidade, repito. Quem se expõe ao público vive na corda bamba da aceitação. Carrilho, e isto é trágico, não percebe que há muito deu a queda fatal. E o assunto morre por aqui, como também lembrou Pacheco Pereira, sem que seja esclarecido o que devia ser esclarecido. O secreto alívio de alguns apenas aumenta o agastamento. O tema merecia que um outro arauto nele pegasse. Carrilho, nunca.

21/05/06

Rule Britannia

Uma honrada linhagem de vilões ingleses tem assombrado o cinema americano desde a sua fundação, e terá de haver alguém que me convença que o caso nada tem que ver com a sublimação do ego edipiana que a grande nação yankee vem ensaiando desde o seu nascimento. Um caso difícil, para todos os efeitos; já lá vão trezentos anos e, no fim de contas, George Washington continua a ser um inglês descontente com o Rei, liderando uma revolta de colonos contra a Coroa Britânica. Declaração de Independência? Carta dos Direitos? Pequenos acidentes da História. Se o teimoso parlamento inglês tivesse baixado os impostos sobre o chá que entrava na colónia, por que ruas se arrastava agora o orgulho pátrio americano? O rancor é, portanto, ancestral. E a arte, já se sabe, quando não se supera a si própria, imita a vida.
Descontando períodos específicos da História da América em que outros tomaram o lugar de mau da fita - nazis, comunistas, franceses - quando os argumentistas de Hollywood precisam de um vilão, charmoso e inteligente, carne para canhão no eufórico fogo-de-artifício final das grandes produções, contratam um britânico. Esqueçam Laurence Olivier. Nas adaptações de Shakeaspeare, são todos ingleses. Pensem em grandes psicopatas, desequilibrados, viciosos, gente ruim com uma dicção perfeita: britânicos. O filme que inaugurou um género, "Psico"; o vilão, inglês, o alucinado Anthony Perkins. O filme que culminou o género, "O Silêncio dos Inocentes"; outro Anthony, este Hopkins, frio, calculista, diabolicamente inteligente. As quase-paródias, a série "Die Hard", com dois vilões marcantes para o cinema xunga americano: Alan Rickman no primeiro e Jeremy Irons no terceiro. O defeito físico está quase sempre presente. Irons gageja, Hopkins é um louco para além de qualquer salvação usando um açaime que limita o seu desejo de carne humana. A prótese substitui o órgão defeituoso. Não é fundamental que as personagens sejam inglesas, basta que os actores o sejam. Rickman e Irons interpretam alemães e Hannibal é apenas britânico no filme; no livro, não. A América esquece o viveiro de loucura em que o seu território se especializou, a produção em série de serial-killers que se tornou um ex-libris distorcido do american way of life, e culpa os pais ancestrais por todo o Mal que a atingiu. Claro que há Robert Mitchum em "A Noite do Caçador" ou Robert de Niro em "O Cabo do Medo", mas repare-se na diferença. Quase sempre o vilão americano é um pobre atormentado com o seu passado, anti-herói apenas com uma redenção em vista: a morte, de preferência imolado pelos heróis acidentais e inocentes arrastados na espiral da violência fílmica. O inglês é um vilão sem passado, saco de pancada do voluntarioso herói americano, quase sempre um grunho G.I. Joe derrotando no final o sofisticado adversário com alguma esperteza saloia e muita sorte à mistura; no fundo, o ideal do self-made man aplicado ao mais básico entretenimento. Pense-se em "Senhor dos Anéis", por exemplo: quase todos ingleses, menos o rei que se torna o salvador do mundo: Aragorn. Gandalf, claro, é inglês. Os hobbits, também. Mas quem lidera as tropas é o herói com sotaque americano. A vocação militarista da América brilha no esplendor do celulóide. E o vilão, o very british Christopher Lee, derrotado e humilhado, sujeito à escravatura em vez de lhe ter sido proporcionado o destino de Sauron, a destruição gloriosa.
Nada como o velho maniqueísmo para separar as águas. Com o Atlântico pelo meio, a colónia e a metrópole continuam a perpetuar o seu jogo de dominação e conquista. O fluxo mudou, agora vem do lado de lá do oceano. Aliados? Apenas quando dois países estão ao mesmo nível. E quem subjuga quem, neste jogo perigoso das metáforas?

Pulp Fiction

O que distingue um objecto como "O Código da Vinci" de outro qualquer consumível literário não é a qualidade final do produto; é a sua natureza. Um livro que não passa de um jogo literário, bem pensado e relativamente bem estruturado, um passatempo para duas ou três noites passadas a resolver enigmas de fácil solução. Nem sequer tem o atractivo da escolha múltipla e da ilusão de interactividade, como acontece num jogo de consola ou num daqueles livros da colecção "Aventura Fantástica", em que o leitor avança na história com a ajuda de um lápis e de um par de dados, até morrer ou desvendar o enigma final. Tudo está à vista, no livro de Dan Brown: o esquema narrativo, competentemente planeado, e que se baseia em capítulos curtos que deixam em suspenso a solução de um micro-enigma no capítulo que se segue; a sábia dosagem de ritmos e tempos, intercalando sequências onde domina a narração pura (e a acção propriamente dita) e trechos onde as personagens discutem o que se passou até aí, com algumas analepses que introduzem (sem quebrar o ritmo) os elementos da conspiração que fazem mover a acção (as recordações de infância, as digressões pela História de Robert Langdon, etc.); um interesse romântico que não é plenamente desenvolvido até ao final, à boa e velha maneira dos clássicos de Hollywood; o cliché das personagens, imediatamente reconhecível pela maior parte dos leitores - o académico americano metido em aventuras que o ultrapassam (hello, Indiana Jones), a francesinha mignon e inteligente, o polícia irascível mas com o coração no sítio certo (quantas vezes já vimos Jean Reno neste papel? Casting previsível...), o vilão deformado e fanático religioso (Umberto Eco, knock, knock), a entidade difusa que conspira contra os heróis (Eco parodia o tema no seu romance "O Pêndulo de Foucault"), o brilhante, sardónico e aleijado vilão inglês, seduzido pelo poder até à loucura (desde Shakespeare que os vilões têm de ser ingleses; malvados; e com um defeito físico); finalmente, a facilidade do tema, new age para as massas, interpretações alternativas à história contada na Bíblia num tempo em que Deus está morto há quase cento e cinquenta anos.
A referência a tipos-cinematográficos não é coincidência. A grande influência de Dan Brown é mesmo a sétima arte; o livro respira cinema de acção americano por todos os lados. É precisamente por causa disto que a adaptação era, ao mesmo tempo, inevitável e a tarefa mais fácil do mundo. Mas parece que isso não parou Ron Howard, medíocre tarefeiro que meteu a pata na poça, uma vez mais. Afirmação que carece de confirmação visual, e que irá continuar a carecer enquanto o filme não passar numa matiné televisiva qualquer daqui a um ano ou dois. O lugar onde "O Código da Vinci" pertence: a prateleira da pulp fiction esquecida pela história. Podia ser pior.

(Ler também o blogue Porque, sobre o mesmo tema.)

19/05/06

A caminho da silly season

- O festival da Eurovisão entrou na sua fase pós-moderna; ontem, vi a caminho da final uma banda de metaleiros-light filandeses vestidos com aquilo que parecia ser sobras de um guarda-roupa de um filme de série B FC-xunga, assim como um conjunto de rapazes que alegremente repetiram durante três ou quatro minutos um mantra que dizia qualquer coisa como "votem em nós, nós vamos ganhar o festival da Eurovisão!" Eládio Clímaco, falando directamente de uma cápsula criogénica, não queria acreditar no que via. Mas manteve a compostura, tendo inclusive mimado os metaleiros filandeses com o inexcedível epíteto de "monstrinhos". Será que o Sampaio lembrou-se de condecorar esta figura mítica da televisão nacional? (A canção portuguesa? Parecia ter sido composta há trinta anos. E isto não é um elogio.)

- Margarida Rebelo Pinto não tinha razão na providência cautelar. Não é uma marca abrangida pela propriedade industrial. Não foi ofendida directamente pelo livro do crítico. Alguns milhares de exemplares no bolso depois, alguns milhares de euros fora do bolso dos contribuintes depois. Oh, boy...

- Há quem ainda se preocupe em atacar um objecto de literatura menoríssimo, em defesa de um dos mais belos exemplos da literatura produzida pela civilização ocidental nos últimos cinco mil anos. Ficção, ficção. Uma obra como a Bíblia Sagrada não precisava deste tipo de defesa.

18/05/06

Objectos

Quando comecei a visitar a feira da ladra, descobri um mundo novo, até aí desconhecido para mim; o mundo dos objectos que nunca morrem. Aos sábados de manhã, percorria o local em busca de um ou outro disco mais barato do que nas lojas, ou então comprava roupa nova ou em segunda mão, sou capaz ainda de ter guardado alguma peça adquirida lá. Apesar de nunca procurar nada em especial, acabava por perder algum tempo olhando para os objectos velhos expostos em simples panos colocados no chão, tentando ignorar o trajecto que tinham percorrido até chegarem às mãos dos vendedores. Alguns ocasionais, putos tentando ganhar um dinheirinho extra ou toxicodepedentes procurando desfazer-se das pratas baças roubadas da casa de pais ou avós, outros profissionais, com lugar mais ou menos marcado e confirmado todos os dias de feira às cinco da manhã. Sabia de onde provinham as mercadorias traficadas pelos profissionais da feira; conhecia um deles por interposta pessoa. Esperavam ofertas de familiares, compravam barato a vizinhos ou a pessoas em dificuldades, vasculhavam no lixo de gente sem pudor na decisão de deitar fora o que antes teve algum valor. Não passo pela feira há anos, mas imagino que a fauna que visita o local não tenha mudado muito, assim como a oferta ao dispor de quem lá vai. Os objectos continuam a viver naquele microcosmos onde o passado pode ser negociado pela oferta mais alta; os mortos a quem pertenciam em tempos as coisas negociadas não podem evitar que outras mãos toquem espelhos, pentes, máquinas de costura, óculos, cadeiras, roupa amarela e bafienta, colecções de cromos e postais a sépia com nomes na parte de trás, cartas resgatadas à intimidade da vida familiar. Um coleccionador sabe do que falo; parte do prazer que se retira do acto de coleccionar vem do reconhecimento do passado que vive em cada objecto coleccionado. Um selo antigo traz consigo uma história, uma corrente que liga todos os antigos proprietários. Mas um selo não tem, nunca chegou a ter, vida. Um postal escrito, com nomes e moradas, tem. Um pente, ou um espelho, também. O tempo que estes objectos em segunda-mão arrastam seria razão suficiente para que ninguém ousasse voltar a ser dono de tal coisa. Porém, há quem continue a coleccioná-los, a cada troca insuflando neles um sopro de vida mínimo. Partículas que se colam à matéria, invisíveis a olho nu, átomos sensíveis que apenas se revelam quando se coloca em marcha a máquina da memória. A centelha deixada por todos os dedos que alguma vez tocaram os objectos.

17/05/06

Lynchland

Concordo que seja difícil a unanimidade em torno de David Lynch. O cinema anda há mais de cem anos tentando convencer o espectador da verosimilhança da realidade criada na tela. Lynch reafirma o carácter onírico do filme e converte o espectador em sonâmbulo perdido no escuro das imagens projectadas. Todas as imagens são mostradas com o fim último de condenar o espectador a um labirinto sem saída. Cinema sem pistas, sem caminho por onde prosseguir.

Ficção

Haverá coisa mais entediante do que ouvir um sonho contado por outro?
Haverá coisa mais emocionante do que ler um conto sonhado por outro?

Sonic Youth

A tocar ali ao lado, os Sonic Youth recriando uma música dos xaroposos Carpenters, "Superstar". A segunda cover mais carismática que eles fizeram, depois do "Get Into the Groove", de Madonna. Excelente versão esta, de resto, que, para dizer a verdade, já não ouvia há cerca de dez anos, desde os tempos em que passava na XFM. Está incluída no álbum de homenagem ao duo fraternal que terminou a sua carreira de forma trágica; e, neste caso, a morte de Karen (na sequência de complicações cardíacas relacionadas com anorexia, a doença mais cool dos tempos modernos) foi o passaporte para a imortalidade, o que inclui o respeito de figuras insuspeitas do meio musical. Confirma-se a excelência ou apenas o hype mórbido?

14/05/06

Quaresma

quem lembre o exemplo da traição napolitana no Itália 90. Que isto do patriotismo futebolístico pode suportar excepções à regra. Mas falamos de alhos, portanto esqueçamos os bugalhos. Por muito que seja incomprensível que Scolari relegue Quaresma e Moutinho para os sofás de casa, promovendo no seu lugar - previsivelmente - Boa-Morte e Hugo Viana, não se trata da mesma coisa. Os napolitanos apoiavam um deus maior que, por um acaso do destino - para o caso, uma passagem falhada por Barcelona - aterrou na cidade do sul de Itália. Não era por razões de ressentimento, apenas de um fervor que ultrapassava em muito o fenómeno futebolístico. Scolari prepara o Mundial arregimentando um conjunto de jogadores em quem confia, desprezando a pura e isenta avaliação de cada um. Isto é, arrisca-se a levar maus e a deixar bons. Não é claro, no entanto, que resultados a estratégia vai trazer. Uma consequência imediata, todavia. Já conta com a minha antipatia, assim como, desconfio, com a da maior parte dos portugueses. Treino de bancada à parte, é preciso dizer que é uma burrice não levar o melhor jogador do campeonado português ao torneio da Alemanha. Que razões servem os interesses de Scolari ao não convocar Quaresma?

Carrilho (2)

O longo texto em draft nunca verá a luz da blogosfera. Não vale a pena. Aconselho, em vez disso, uma excelente entrada de HMBF no Insónia. Reavaliei uma ou duas coisas a propósito de Carrilho e da cabala. Continuo a não gostar dele. Passei a desconfiar ainda mais do jornalismo que temos. Freitas do Amaral é outro exemplo disto. Até que o homem se demita, lá teremos todas as semanas que ler o Vasco Pulido Valente zurzindo a torto e a direito. Outras histórias, não são para aqui chamadas. Até que ponto a verdade de Carrilho se aproxima da realidade dos factos?

13/05/06

Radiohead

Terá sido em 1992 que ouvi pela primeira vez os Radiohead. E claro que foi "Creep". O miserabilismo adolescente que transparecia daquela música apenas podia fazer sentido como continuação do fenómeno Nirvana e do hedonismo cultivado com prazer que estes transmitiam. No fundo, ouvia-se, no início da década passada, música para putos mimados e habituados ao bem-estar material que as gerações anteriores tão arduamente tinham produzido. A minha geração, como cantavam os outros. Desiludidos com um mundo que lhes ofereceu demais e agora se prepara para fechar a torneira. Os Radiohead, com as suas canções tristes e neuróticas, escritas por uma estrela de rock que nunca o quis ser, acabaram por se tornar, a partir do perfeito "O.K. Computer" - que se seguiu à obra-prima imperfeita que é "The Bends" - um cadinho onde se produziram sons inovadores e irrepetíveis, oscilando entre o rock com raiva e a electrónica minimal, sempre com o ostensivo cuidado de que o modelo não se afastasse muito do berço pop onde nasceu. Quinze anos depois, afastamo-nos dessa época a uma velocidade cada vez mais estonteante; os Radiohead arriscam-se a cumprir o destino nunca contrariado da música pop: a efemeridade. Nada dura mais que dez ou quinze anos, criativamente falando. Depois do auge, apenas sangue novo pode voltar a mudar o paradigma. Tentando contrariar esta ideia, a nova música dos Radiohead e as respectivas imagens de uma recente actuação ao vivo, no post em baixo. Chama-se "Arpeggi". O álbum, só lá para o final do ano.

Arpeggi


Radiohead

12/05/06

Literal e alegórico

A grande notícia do dia é, para fastio de uns e contentamento de outros, a saída do livro de Carrilho. A grande aposta editorial é a indignação e a má-criação congénita. Nada de novo. O homem, que tudo fez para perder uma eleição que, à partida, não passava de favas contadas, decide ripostar contra a corja de fantasmas que lhe assombrou o (supostamente) impecável percurso. Tudo começou ainda ele era ministro (da Cultura e dos amigos que parasitam a cultura) com a célebre história da remodelação da retrete, e culminou na apresentação de candidatura com o vídeo caseiro do Dinis Maria à mistura. Parece que ele agora vem dizer que o que vimos não foi aquilo que vimos. Isto é, tudo boatos, ilusões, mentiras, invenções jornalísticas, empolamentos e perseguições injustas, enfim, uma autêntica campanha que devia envergonhar a classe dos jornalistas. Já não me quero recordar do caso da retrete do ministro, mas lembro-me muito bem da reportagem feita por Ana Sá Lopes no CCB e do exploitation video mostrado. A crediblidade dos jornalistas, atacada por Emídio Rangel (pertencerá ainda à classe que vitupera?), é de criticar, mas cada um fala por si, e a jornalista da reportagem que eu li é das mais competentes que por aí trabalham. Quem acredita no chorrilho de Carrilho? Os amigos, os poucos que não o abandonaram no calvário a que voluntariamente se submeteu desde que emergiu das catacumbas do meio académico para a ribalta das luzes mediáticas. Aquilo com que Carrilho não contava foi com o facto de que a súbita exposição à luz pode provocar cegueira. A platónica caminhada da caverna à superfície, ensaiada num momento de vaidade absoluta, redundou num brilhante fracasso. Ninguém duvida da inteligência da personagem. A perspicácia e a sensatez, por outro lado, são qualidades que lhe faltam, e isso é fatal no meio mediático onde ele tentou nadar. Isso e a tal ridícula vanitas que o conduziu nos últimos quinze anos. Nunca lhe perdoaram ter chegado à política dono e senhor de um currículo admirável. E ele nunca conseguiu perceber a rasteira. Se não fosse anedótico, poderia ser trágico. Para esquecer.

Teenage angst

Uma pergunta: se Kierkegaard vivesse entre nós e mantivesse um blogue escreveria textos como este? A adolescência será mais ou menos isto, mas o pior ainda está para vir. O que aumenta ainda mais o grau de desencanto. Coisas, um blogue que se recomenda.

11/05/06

Fever pitch

Uma coisa é certa: não iremos longe no Mundial. A culpa: da teimosia de Scolari. O homem vai insistir nos mesmos de sempre, vai pôr a jogar atletas sem clube e coxos em baixa de forma, e vai deixar a ver a bola pela televisão jogadores que mereciam lá estar (o futuro irá dar razão a Quaresma). Há quem diga que esta teimosia é uma qualidade. Mas no futebol, ser casmurro é uma vantagem apenas quando falamos de algum iluminado, seja por deus ou pelo acaso, e a esse Olimpo poucos conseguem aceder. O que Scolari tem para mostrar? Foi campeão do mundo com uma equipa brasileira a jogar à defesa e um Ronaldo no seu cume futebolístico - o que não é pouco -, com alguma sorte e falta de opositores à altura pelo meio. Nesse Mundial, recorde-se, ainda não houve Ronaldinho, mas também já não vimos Zidane e parece que a selecção nacional também andou por lá, trazendo à pendura dois ou três lesionados e algumas estrelas em fim de carreira, gloriosa pandilha treinada pelo irmão do dono da bola em Portugal. Quando Madaíl - o homem que nem no Burkina Faso seria presidente de uma simples companhia de amendoins, mas que nos calhou em sorte para o lugar de marioneta de serviço dos dirigentes dos clubes - dizia, quando Madaíl, numa jogada com rasgo de génio, contratou o seleccionador campeão do mundo para calar quem exigia um belo pontapé no sítio onde mais lhe dói, sabia o que estava a fazer. Scolari, também. Este período de pré-reforma dourada é a cereja que lhe faltava no currículo. Não surpreende a fuga para a frente no affair selecção inglesa. Lá, no primeiro mundo, se a federação não conseguir, no mínimo, trabalho, da parte do seleccionador, tem os jornalistas à perna, e eles não perdoam. Scolari sabe bem do que se livrou. Valerá (Cristiano) Ronaldo a Scolari, uma vez mais? Aperreado como ando, penso na final que perdemos contra uns gregos que nem um artista tinham para amostra. Nada. Conjunto de cepos bem treinados, e nós perdemos. Dois anos depois, vamos mais fracos para a Alemanha. Qualquer que seja a equipa. Guardem as bandeirinhas para o hóquei em patins.

10/05/06

Bola e memória

Uma das imagens que melhor consigo associar à ideia de solidão é um campo de futebol vazio. Não um estádio, com bancadas e relvado para os grandes desafios. Penso antes num pelado, um campo de clube de aldeia abandonado, um simples terreno cercado a toda a volta por um muro: imagino a areia suja, vestígios de cal das linhas de marcação, a erva a crescer no meio das pedras que entretanto, à custa de uns quantos pontapés de putos em dias de domingo, rolaram para dentro das quatro linhas, quase que consigo visualizar a desolação dos paus sem bandeirola de canto a largar tinta branca que, outrora, já foi fresca, e as balizas, claro, de redes esfarrapadas, caídas por terra, esqueleto de metal exposto à chuva e ao lento desgaste da ferrugem, que bem podia ser outro modo de escrever tempo. Atrás de mim, as bilheteiras, sem portas, sem bilhetes, o portão de entrada escancarado e preso por arames, inseguro nos gonzos, comido pelo bicho da madeira que foi roendo o miolo até à casca. Ao fundo, as cabines dos jogadores, as instalações da cooperativa, a memória de umas marcações esquecidas do chinquilho que costumava entreter os velhos, distraí-los, e observo os jogadores fora de forma entrando em campo antecedidos pelo árbitro. O público aplaude e assobia em doses iguais a equipa de casa e o adversário, e a determinada altura do jogo o defesa central, talhante de aldeia e homem encorpado, atira a bola para as nuvens; saio do campo pela porta das traseiras, bem escondida por detrás da sala da direcção. No meio do matagal, encontro um resto de couro preto e branco. Chuto o despojo por cima do muro de cimento gasto. A bola voltou ao lugar de onde veio. No centro do grande círculo, ninguém espera para a dominar.

08/05/06

Somar os dias

Quando se chega à idade adulta, convém que se tenha em devida altura preparado um papel para a nossa vida. Podemos até treinar antes. Comprar umas roupas. Mimar gestos. Imitar quem admiramos. Sem querer fugir muito ao cliché, é necessário ter à mão as necessárias máscaras para o dia-a-dia. Mas ninguém pode prever a mais exigente necessidade: a ocupação do tempo, para que ele não se torne uma série infindável de números acumulados sobre o passado, como insectos presos numa teia. Ninguém antecipa as artimanhas de que precisamos para escapar à invisível aranha. Corremos o risco da lentidão, no entanto quase sempre nos movemos em excessiva velocidade. Exageramos na importância dada à relatividade na sua relação com o tempo.

Existenz

Em "Norwegian Wood", o capítulo que evoca a "Montanha Mágica" - não é só evocar, as personagens discutem a obra de Mann, abertamente - é uma brilhante caracterização do mal moderno: a depressão existencial. E ser existencialista sem parecer um chato é uma rara qualidade. Kierkegaard goes prozac. E ouve Beatles. Poder-se-á ser mais cool que isto?

Aspectos

Haruki Murakami escreve como se fosse um adolescente deprimido e padece da doença passageira da idolatria. Por escritores, músicos, pela cultura pop ocidental. Preenche na perfeição o cliché do japonês moderno. Se não fosse real, seria uma personagem secundária de "Lost in Translation". Mas escreve bem como tudo.

05/05/06

Histórias

Não consigo perceber a expressão "uma história bem contada". E sou bem capaz de já ter dito ou escrito isto algumas vezes. Falamos do enredo, da narrativa, do estilo da escrita, das intenções do autor e do modo como ele tenta concretizar essas intenções? A simplicidade será uma qualidade, o hermetismo um defeito? Ou será o contrário? Pedro Mexia, num artigo escrito há umas semanas no DN, enquanto se divertia a fazer uma crítica negativa ao último livro de uma das "novas vozes da literatura portuguesa", Mafalda Ivo Cruz, queixava-se da ausência de um meio-termo na ficção escrita por portugueses; ou os autores pouco se interessam pela disponibilidade do leitor para a obra, ou interessam-se demasiado, escrevendo livros que vendem muito mas que dificilmente se podem enquadrar na categoria de literatura. Ora, o problema não será esse. Um mau escritor será sempre um mau escritor, a forma como escreve nunca conseguirá disfarçar o conteúdo. Nem todos podem ser Maria Gabriela Llansol, mas há muitos que tentam; o máximo que conseguem, quase sempre, é escrever como Rui Nunes. De qualquer maneira, será difícil atingir a límpida perfeição de Camilo ou de Eça. Nos contemporâneos, apenas Mário de Carvalho se aproxima. Claro, pode-se dizer que o estilo de Mário de Carvalho não é, evidentemente, escorreito e simples. Mas que sabe contar uma boa história, sabe. E o prazer que se retira da leitura de um português sem falhas é inultrapassável. Porém, a grande maioria dos leitores, já se sabe, pouco se prende aos pormenores, preferindo ao gosto da leitura de terceiro grau (de acordo com a classificação de Umberto Eco) o prazer imediato da leitura em primeiro grau. Para a hermenêutica do texto bastam os académicos. Poder-se-á censurar o facilitismo do leitor que apenas tem tempo para ler nos transportes, o leitor que encara a obra como passatempo ou diversão? Educar o gosto do leitor é uma pretensão inócua, a que os virtuais educandos respondem de modo directo e sucinto: mostrando o dedo do meio. Como a democracia, o gosto não é uma coisa que se possa impôr à força; a coisa vai lá devagar, dando pequenos passos, começando por uma Margarida ou um Paulo Coelho na esperança de que se possa chegar a James Joyce. Poucos lá conseguem aceder. Não é um problema, nem uma desilusão. Ou será que pretendem fazer crer que Joyce escreveu "Finnegan's Wake" tendo em mente uma vasta audiência?
O meio-termo de que falava Pedro Mexia pode ser fundamental. A tal história bem contada é este meio-termo que falta. Haverá algum Murakami, algum Pérez-Reverte, algum Ian McEwan à espera de aparecer na literatura portuguesa?

(Sobre o assunto, ler também aqui e aqui. E siga-se os outros links que aparecem nos textos referidos.)

Scott Walker

Na grafonola ali ao lado, uma música do primeiro álbum a solo de Scott Walker, "Scott". A distância que vai do som límpido dos anos 60 até ao mais recente "The Drift" - com passagem pelo assombrado "Tilt" - é um espelho daquela que o diabo teve de percorrer desde o inferno até alcançar Scott Walker. Neil Hannon, dos Divine Comedy, e Jarvis Cocker, dos Pulp - que foi produzido por Scott no último álbum da banda - devem conhecer os riscos de admirar tal figura. Comprove-se contra a corrente do verão que se aproxima.

01/05/06

Dia dos Trabalhadores

Uma das mais maravilhosas dádivas que o capitalismo trouxe ao nosso mundo perfeito foi o consumismo desenfreado. Quem não gosta de sair de casa sem qualquer ideia em mente para gastar o dinheiro suadinho do mês, entrar num refulgente centro comercial e desatar a comprar a inutilidade total em forma de objecto? Roupa, acessórios, discos, livros, gadgets perfeitos de tão desnecessários, infinitas maneiras de satisfazer o egozinho de burguês que cada um de nós alberga dentro de si. Que comovente é ver as grandiosas romarias domingueiras rumo aos mil e um santuários - e a contar - que crescem na medida inversamente proporcional (segunda vez em poucos dias que uso a expressão; chiça!) à retracção da nossa economia, aquela que alegremente vai pulando em direcção aos braços da multidão de países terceiro-mundistas que se acotovelam lá em baixo, no abismo que nos espera, que bonito é observar o povão estourando o crédito e o descrédito da família para gozo de uns quantos empresários esfregando as mãos de contente e ansiando o salto definitivo para paragens mais acolhedoras do que esta. (Brasil, aqui vou eu!). Primeiro de Maio, dia do trabalhador. Repito: 1º de Maio, dia do trabalhador. O trabalhador vivendo na ilusão do capital gastando o que julga ter, e o trabalhador/imigrante/licenciado caixa-de-supermercado fazendo juz ao dia instituído no calendário, laborando, pois então, no dia do trabalhador. Quando, há uns anos atrás, se quis fechar os centros comerciais do país, ia caindo o carmo e a trindade, ai jesus que a economia vai por aí abaixo, é investimento no futuro, grandes superfícies abertas ao fim-de-semana. Ainda bem que se avançou no sentido correcto. Anos depois, passamos por um dos períodos mais prósperos da nossa História recente, o povo anda contente, não protesta, tece loas aos políticos que o governa, o futuro é um risonho sol no horizonte (irra, que imagem pirosa!). A gente até vai aos países mais avançados e vê o comércio fechado ao fim-de-semana e shoppings fora do centro das cidades, mas eles é que estão errados. Qual o sentido de levar os filhos a passear num jardim, ir a uma exposição, fazer uma curta viagem de carro a uma cidade perto, quando há tanto dinheiro no bolso e tanto para comprar faiscando nas montras das multinacionais abertas aos domingos e feriados? Alegres romarias, fatos desportivos reluzentes, ar saudável, meninos correndo e saltando, mulher satisfeita e sogra calada, é desta fibra que somos feitos. Ah, as doces ilusões do capital! E o Mundial que ainda vem tão longe...