Domingo passado. Leio com interesse ameno no início, espanto a meio, alguma exasperação no final, a entrevista de Maria João Seixas a J. Pinto da Costa na revista Pública. O que me cativou de imediato a atenção foi uma fotografia, espantosa, de Augusto Baptista, um preto-e-branco de um velho caminhando na moldura de um corpo de árvores que se entrelaçavam formando um arco irreal de luz e sombra. Quase que me permito adivinhar o local exacto, a alameda dos Liquidambares, em Serralves - permito-me achar que sim. A entrevista fala de morte. E de envelhecimento. A actividade de Pinto da Costa, director do Instituto de Medicina Legal, assim a conduziu. A ideia não será exactamente original; quem, de entre nós, poderá conhecer de modo mais exaustivo e directo o assunto? Sabemos, e o médico-legista confirma-o, como são necessárias certas ferramentas para enfrentar esse horizonte que limita a existência. Quem a isso é obrigado, por defeito profissional, defende-se usando o desprendimento de toda a metafísica; um corpo é apenas um receptáculo, um instrumento de análise, uma coisa que imita palidamente algo que já não é. A sabedoria que se adquire com este rigor frio de legista é, quase sempre, um estado de graça inalcançável para o comum dos mortais. A determinada altura da entrevista, Pinto da Costa não percebe mesmo o sentido de uma questão de Maria João Seixas, quando esta lhe pergunta sobre o que vem após o fim. Ela fala de metafísica, da alma, e ele responde falando de física, da mecânica do ritual indeciso entre o enterramento e a cremação, do corpo. Os cientistas conseguem disfarçar de forma admirável o medo. Que eu não duvido que eles também sentem, apesar de, por momentos, ter acreditado no modo como a questão foi colocada por Pinto da Costa: morremos a cada momento, cada dia é um dia mais em que somos obrigados a agradecer a continuação da vida. Assim, a morte é obrigada a recolher-se, desaparecer. Bela ideia, e como todas as belas ideias, uma utopia. Escondemos a morte, temos vergonha dos velhos e do envelhecimento. Ponto em que insiste o entrevistado. Quando olhamos para o modo como, por exemplo, está a ser tratado o afastamento de João Bénard da Costa da obra que ele alimentou e ajudou a crescer durante vinte anos, apenas podemos concordar tristemente com a conclusão de Pinto da Costa. A idade de reforma é uma forma que as sociedades modernas encontraram de matar a velhice e os valores que lhe estavam associados: a experiência, a sabedoria, o culminar plácido de uma vida. Fazemos aos nossos velhos o que, um dia, será feito a nós, pelo menos enquanto não se encontrar uma forma mais higiénica de varrermos para debaixo do tapete a pior das imperfeições, a velhice. No fundo, queremos não lembrar a imparável marcha do tempo. Tornámo-nos reféns de uma aterradora cobardia. Vivemos.
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