10/04/06

Bartleby Cavaco Silva

Talvez seja um equívoco, mas a meu favor joga o facto de qualquer opinião sofrer do defeito a que se pode chamar de sub-evidência: o que o futuro esconde nem sempre compensa a clarividência em relação ao passado. Mas a julgar pelo que temos visto nestes primeiros dois meses de presidência - Cavaco presidente, Cavaco presidente, habitua-te! - há uma coisa que não vai mudar na figura: o estilo Bartleby. O de Melville, o escrivão que, a certa altura, decide enveredar pelo estranho caminho do desvanecimento. A resposta de Bartleby, plena de um desarmante non-sense, não exige uma réplica ou uma arguência. É assim, subsiste por ela própria. "Preferia não o fazer." Em vão o chefe se esforça para convencer Bartleby da bondade dos seus pedidos, da justeza da sua autoridade, da imoralidade do procedimento do escrivão. A tudo, Bartleby prefere não fazer. Esconde-se a um canto do escritório, alimenta o rancor dos colegas e a ira do patrão, acaba por desaparecer, literalmente, vive no escritório e ninguém - a não ser o advogado que o contratou - dá pela sua presença. Cavaco, desde o "Tabu", cultiva o estilo Bartleby. "Vai recandidatar-se?" "Preferia não responder." "Candidata-se a presidente?" "Preferia não responder." "O aborto, que tal?" "Preferia não falar disso agora." "Poderes do presidente?" "Preferia não emitir uma opinião neste momento." "Lei da nacionalidade?" "Preferia não levantar ondas." "Aprova a política do governo para a saúde?" "Preferia abster-me de emitir uma opinião sobre o assunto." E assim estamos. Mutismo e respostas evasivas. Quem temia - ou desejava - uma vigência de Cavaco agressiva e conflituosa pode ir tirando o cavalinho da chuva. Esta vai ser a presidência Bartleby. Foi assim que ele conseguiu ganhar - à segunda, não esquecer - o voto dos portugueses, será assim que ele irá conquistar o coração de um povo. Combate de uma vida. Como em Melville, as respostas de Cavaco nada dizem porque nada pretendem dizer. Não ouvimos da sua boca a negativa peremptória ou a retumbante positiva, tudo é sim, mas se, talvez. "Preferia não o fazer, que maçada. Pensar, preocupar-me, levantar ondas, que sentido há nisto tudo?" Bartleby, o escrivão, acaba como uma personagem de Beckett - ah, bendito diacronismo! - prostrado contra o solo sob o peso da existência. Não se recusa a ser. Apenas preferia não o ser. Diferença fundamental, também em questões de retórica. Passando despercebido por entre as gotas de chuva.

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