10/04/06

Da bola

O que me torna desconfiado em relação ao adepto que pretende ser racional ao falar de futebol é a suposta superioridade do intelecto sobre o instinto no que a estes rituais que imitam realidades recalcadas diz respeito. Falar sobre futebol, pastichando essa outra frase que na minha memória já se tornou apócrifa, é como pintar sobre música. Ou, para todos os efeitos, escrever sobre música no pleno convencimento de que aquilo que se escreve consegue sequer aproximar-se do fenómeno descrito. Se alguém, por obrigação profissional ou confesso masoquismo, tem mesmo de escrever sobre esse jogo de selvagens, ao menos que o faça com estilo, no mesmo tom dos selvagens de que fala. A outra opção é falar enviesado, atirar ao lado, munir-se da ironia distante do intelectual que por acidente do destino de quando em vez é apanhado no estádio com um qualquer outro eu que aplaude, pula, urra, insulta, abraça, chora, arrepia-se, sua e esgadanha-se até que quase nada reste do exemplar perfeito de polido cidadão que, em qualquer outro dia, pode ser visto fingindo desconhecer o duplo que esbraceja do fundo de uma outra realidade desconhecida. O deslumbre e a cólera, a alegria estúpida e a mais profunda tristeza, a euforia e a depressão pós-coital não são extremos do mesmo espectro para quem se permite a fraqueza de gostar de bola; se o adepto pudesse por um momento permitir-se olhar com cinismo para o outro em que ele se torna quando o seu clube está em causa, toda a ironia do mundo seria necessária para controlar o desprezo sentido, e não há volta a dar nesta história. Como em tudo na vida, aliás. Quando se fala de futebol, muito cuidado. Todas as regras da discussão podem ser subvertidas. Quem poderá acusar o adepto de argumentação falaciosa, falsas ideias, subjectividade extrema, desinteresse pela opinião adversária? Regras certas, jogo errado. Jogo errado. Quem fala de futebol não se pode dar ao luxo do uso e fruto dessa faculdade adquirida com a ajuda do tempo. Falamos de algo intemporal. Não da razão.

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