14/04/06

Sexta-feira santa

Bela primeira página do Público, a Pietá segundo Delacroix, de Van Gogh. Sexta-Feira Santa. Famílias perdidas num meio-termo entre uma religiosidade em perda e um materialismo cada vez mais absoluto e desregrado. O sentido que um ateu em construção pode encontrar nestes feriados apenas pode decorrer da estética que a eles está associada. E a memória é também uma questão de estética, neste caso. Recordar o horror mínimo que as reuniões familiares me provocavam não é uma verdadeira opção; é um trauma. Mas a estética da memória pode evocar prazeres que, à partida, estão vedados a quem se limita a passar pelo presente sem ter a corda do passado presa ao pescoço. Olhar um quadro, ouvir uma composição musical, ler um livro. Recorrer à obrigatória memória e passar o objecto sentido pelo seu feroz crivo. Escutar a Paixão segundo São Mateus tendo presente a primeira vez que a ouvi ao vivo; ver o quadro de Van Gogh estampado na primeira página de um jornal e achar que, apesar do pouco interesse que no presente o pintor holandês me desperta, foi um feliz acaso ele ter aberto o caminho que me levou ao conhecimento dos grandes que o antecederam. O Delacroix citado. Rembrandt. Rafael. Caravaggio. Miguel Angelo. A reconversão da religião em matéria estética surge no percurso de um ateu do mesmo modo que o regresso da pintura ao seu pedestal de objecto de devoção acontece na vida de um crente esteta. Adoramos os quadros na exacta medida em que acabamos por odiar a religião e os fanatismos que lhe estão associados. Bem, talvez esta apropriação da primeira pessoa do plural seja abusiva. Falo por mim, evidente. Conheço quem se tenha desinteressado da pintura renascentista precisamente em consequência da aproximação desta ao desprezado sagrado. Esses esquecem que a arte sempre foi um meio de confrontar a ordem estabelecida, mesmo quando na aparência segue os modelos e as regras definidas pelo poder vigente. As poses eróticas das virgens pintadas no Renascimento, os adolescentes pré-púberes de Caravaggio, os rostos de devoção que se confundiam com o facies do espasmo amoroso, será possível maior subversão do que a dos artistas que trabalhavam para a Igreja e patronos católicos?
Enquanto existirem ayatolahs como João César das Neves e éditos religiosos que desaconselham a televisão e a Internet ao praticante, manterei a firme opinião que tenho em relação a qualquer religião monoteísta, em concreto aquela em cujo seio cresci, a religião Católica, Apostólica e Romana. Mas vacilo. Por exemplo, ao ver o quadro de Tintoretto exposto no Prado, "O Lavatório". Quem inspira tal obra de génio desconfio que está muito além da compreensão humana. E eu apenas consigo falar do que conheço.

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