20/03/06

José Manuel Fernandes e a verdade

Mais que a coerência de José Manuel Fernandes na defesa da intervenção americana no Iraque, surpreende-me que os mesmos de sempre esperassem uma reviravolta à posteriori de uma das principais vozes do dono em Portugal. Nem ele, nem Pacheco Pereira, ninguém irá mudar de opinião e admiti-lo, e por uma razão muito simples: escrúpulos. A falta deles. A utilização de uma estratégia de intoxicação da opinião pública, com o objectivo primeiro de defesa de uma decisão que foi tomada muito antes daquilo que foi anunciado. É claro que afirmar isto publicamente é meio caminho andado para a descredibilização de quem o afirma, mas a verdade é esta: durante o período pré-invasão, poucos duvidavam da palavra dos inspectores Hans Blix e Baradei, e como eles foram insistentes na tese da falta de vestígios que provassem a existência de armas de destruição maciça no Iraque. No entanto, Bush e os seus conselheiros decidiram enveredar por essa linha de argumentação. A movimentação a que assistimos nos meses que se seguiram foi uma exibição digna do tempo em que vivemos, quando as armas a que as ditaduras recorriam, a censura, a manipulação da memória, a ausência de liberdade de imprensa e de opinião, foram eficazmente substituídas pelas armas dos que acedem ao poder pela via democrática, esquecendo nessa ascensão os valores que fundaram os estados modernos; métodos como a desinformação, a manipulação da informação, o controle dos media por grupos económicos favoráveis aos governantes, e as inevitáveis consequências que daqui resultam: uma ilusória liberdade de imprensa, um excesso de opinião que substitui a informação pura, jornais e televisões que tendem para a subjectividade no tratamento das notícias. Exemplo, dos dois lados: a Al-Jazeera e a Fox News. A outro nível, um exemplo mais do tratamento oferecido aos factos incómodos das actualidade: o permanente desconversar da direita quando se fala de coisas como direitos humanos, direitos das minorias ou o fosso crescente entre países ricos e países pobres, disfarçando qualquer tentativa de discussão destes problemas através do uso e abuso da acusação de politicamente correcto, seja lá o que isso for.
Se nós sabíamos que a razão para a invasão era inexistente, quem defendeu a operação também sabia, e contudo continuraram a avisar para um perigo potencial, e agora voltam-no a afirmar, sem pudor, como José Manuel Fernandes hoje faz, mostrando no mínimo que viu o filme de Spielberg, "Relatório Minoritário", em que se fala de crimes que ainda não aconteceram. Lamento, mas ainda não conseguimos adivinhar o futuro. Mas a doutrina de guerra preventiva é isto mesmo, actuar antes do facto acontecer, e se ela não se assemelha a tirania, não sei a que se possa assemelhar. Depois, defende-se o inconcebível apesar de... esquecendo os milhares de mortos, o estado de guerra civil iminente, os abusos das forças ocupantes, o vampirismo dos contratos efectuados com companhias com provadas ligações aos instigadores da invasão para a reconstrução do país e exploração dos poços de petróleo, etc., etc., etc. Mas a mim não me surpreende a posição de José Manuel Fernandes. Quando, sabendo o que sabia - e, principalmente, o que não sabia - defendeu um erro colossal, colocou-se do outro lado da barricada. Exactamente o sítio onde eu nunca me hei-de colocar.

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