Posso apontar a diferença entre a boa e a má literatura se transcrever aqui dois parágrafos apenas de dois livros que entre ontem e hoje comecei a ler. Não sei se o farei, o correr do texto assim o ditará. Enquanto não chego lá, preciso de escrever sobre o primeiro livro que tentei, "Dias Exemplares", de Michael Cunningham. Pedantismo, excesso de coloquialismo, falta de nervo, uso e abuso do lugar-comum, personagens inverosímeis. Aguentei até à página, não sei, vinte, talvez. Hoje, escolhendo ao acaso o que tirar do canto para onde cinquenta por cento dos livros que compro são atirados, vejo um livro que não é meu. É isto. "Uma Abelha na Chuva", de Carlos de Oliveira, autor de uma obra para mim desconhecida, apesar das múltiplas referências. No comboio, por entre "Codex 632" e Nicholas Sparks avulsos, uma pequena maravilha. Desde a primeira página, ouso mesmo escrever primeiro parágrafo, um assombro. Um bom livro é aquele que nos prende pelo estômago, e tanto o pode fazer recorrendo ao pior da alma humana como ao melhor, e quando penso nisto ocorre-me a palavra inveja. Os cultores da língua conseguem curar os males do espírito mas instigam em nós o pior dos sentimentos, mesmo quando este é confundido com admiração. Emoção mais baixa não há. Estenda-se esta tese a toda a arte, e obteremos assim a matéria de que somos feitos. Raiva por não pintar como Tintoretto, ódio de morte ao labor minucioso de Bach, ira de ir às lágrimas visionando a genial dança da câmara de Orson Welles em "A Sede do Mal". Se me posso gabar de alguma coisa com o avançar da idade é da capacidade de reconhecer a arte menor ao primeiro olhar. Cunningham, de quem já li o pastiche de cordel "As Horas", cheira a oportunismo à distância. Apanhado, amigo. Pena que esta ilusão de sabedoria ainda não me permita evitar o contacto inicial com a baixa literatura. Se ao olhar, ou mesmo aproximar, se acendesse qualquer luzinha que avisasse do perigo de contágio a vida seria mais fácil - e mais longa. Já li muito mau livro na minha vida, e pude retirar algum proveito dessas leituras, nem que seja pelo facto de pertencerem ao meu património pessoal, ao meu breve pedaço de memória. Mas se pensar no tempo ocupado por estes desperdícios e no que poderia ter lido no seu lugar, ficarei deprimido. Não vale a pena. Resultado final, não me darei ao trabalho de explicar a razão da escolha, o descanso imediato que dei à obra de Cunningham fala por si próprio. Paz à sua alma.
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