Há quem passe uma vida inteira tentando perceber a razão do esquecimento de Deus, matutando no génio a que não consegue aceder, aplicando fervorosamente as regras a que são sujeitos os outros mortais, aqueles onde não habita já a cinza da centelha original. Os esforçados, os laboriosos, os funcionários aplicados nas suas tarefas corriqueiras sonhando obter algum dia o reconhecimento dos que com eles suportam o fardo da injustiça divina. E depois, há os outros. Os que ostentam o génio que um bastardo qualquer decidiu distribuir de forma aleatória, esquecendo a maioria invejosa e frustrada que apenas existe como carne para canhão, massa de indivíduos banais que serve como balanço dos extraordinários, ou simplesmente como turba adoradora que se limita a assinalar o génio dos escolhidos. E estes, quase sempre, estão a leste de tudo, ignoram olimpicamente a genialidade e passam pela vida naquele limite perigoso entre razão e loucura, a fronteira entre a iluminação e a alienação. E depois, há os outros. Os que, além de terem caído nas boas-graças da Providência Divina, ainda gozam com o resto de nós, gritando ao mundo a puta da injustiça de que fomos alvo recorrendo aquilo a que o comum mortal chama arrogância mas a que se deveria chamar simplesmente de assentimento, um reconhecimento do fardo a que o génio está sujeito. E enquanto escrevo isto, é um acaso que esteja a ouvir os Stone Roses, incluindo "I wanna be adored", perfeita geometria musical onde tudo parece ter sido forjado de maneira a imitar um qualquer arquétipo inacessível, com a ressalva da cópia ser ainda mais perfeita do que o original. Aplicando uma expressão prosaica a esta canção, tudo parece existir no espaço e tempo exactos. Aquele início com uma reverberação sónica em crescendo, o baixo de Mani a entrar, a primeira guitarra, a segunda, como água assomando, a bateria de Reni primeiro discreta e reassumindo um protagonismo quando a guitarra de John Squire o decide acompanhar, até que entra a voz de Ian Brown, o ritmo muda, recua, acelera, varia, o baixo contínuo com a bateria saltando de variação em variação, o refrão, guitarras em uníssono, solo, Ian Brown calado - um achado, o refrão ser apenas instrumental - o recuo da vaga, o regresso aos tons mais baixos, a repetição de Brown "I wanna be adored" até que o solo de Squire volta e de repente pára. Tudo no sítio. É isto.
[Sérgio Lavos]
[Sérgio Lavos]
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