24/03/06

The Queen Is Dead

Isto foi assim, uma história como outras, invariáveis outras, os quatro encontram-se e decidem formar uma banda, viviam-se os anos de ferro de Thatcher, a idade do reencontro no tempo do desencanto, e já se sabe, Manchester é uma cidade cinzenta, negra de tão cinzenta, imagino assim que os quatro se juntam e se divertem a tocar, e Stephen Patrick Morrissey, descendente directo, como sabemos, de Oscar Wilde, julga que o palco a que Wilde não teve direito estará definitivamente ao seu alcance. Nem tudo é perfeito. A persona que se passeia pela cidade exibindo em doses iguais tristeza e cinismo estará mais protegida do que os seus companheiros, pensam, mas não, talvez devaneie, amigos, afirmou o outro génio que calhou em sorte a Mike Joyce e Andy Rourke - em favor dos dois, elogie-se aqui a competência acima da média no acompanhamento dos dois fora-da-lei humana residentes - e dizia que Marr continua a reafirmar a amizade que unia a banda durante os anos de percurso em conjunto, Morrissey durante muito tempo renegou o legado, mas, enfim, alguém achará que a carreira dele a solo alguma vez se aproximou sequer do brilho dos Smiths? Dizia que era assim, por exemplo podia acontecer, numa noite Marr à guitarra compor duas ou três músicas, entregar a cassete a Morrissey e no dia seguinte este ter prontas as letras, repito, dois dias, não vale a pena insistir no espanto, corro o risco de me repetir. Quem ache que o êxito depende dos tais 99% de transpiração depressa devia ter uma conversinha com os seus deuses. Isto é, alguém duvidará da desprendimento de Marr e Morrissey escrevendo para as estrelas? Não o sabiam, no máximo desconfiavam, um bom músico é, antes de mais, um bom ouvinte. Wilde intuía qualquer coisa, mas a dúvida nunca se dissipou completamente, talvez tivesse estado muito perto (Cemetry Gates é uma daquelas músicas... vibra tão fundo que quase se aproxima do silêncio puro) quando finalmente morreu de despeito em Paris, a fama de que se vira privado de um dia para o outro era um sinal para o futuro, depois do seu desaparecimento. Kafka, e este nem sei porque é chamado à contenda, passou pela vida achando que o fracasso era uma segunda pele que teria de carregar até morrer, não poderia saber o que veio depois. Mas de que falo? Dos criadores, quando deveria falar da obra? Pois se é apenas ela que sobrevive, apenas ela que pode aspirar à ilusão de eternidade? (The Boy With the Thorn..., guitarra tão clara desbravando o caminho de sombra que as palavras de Morrissey semeam.) Talvez quem não tenha passado por aquela época não devesse ter o direito de se emocionar de forma tão patética como eu o faço, o choradinho da pop é chão que deu uvas, mas o que o tempo tem instigado na minha coluna vertebral é a clara noção de belo nas sua múltiplas manifestações. Os amigos alguns anos depois zangaram-se. Como deve ser, quando se trata de música pop. A brevidade da beleza é o seu mais decisivo atributo. Para o resto já temos aí a vida.

(Vale a pena escrever: os mais perfeitos 37 minutos da música pop.)

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