O percurso de afirmação de um artista pop acaba sempre por partir das margens para o centro, da descoberta de uma novidade para a institucionalização. Desde o primeiro momento, da primeira peça, ele – o artista – talvez não deseje mais do que isso: que a sua obra acabe na colecção permanente de um museu, que pertença a um canône – qualquer que seja ele -, que seja vista pelo maior número possível de pessoas. E, em última instância, que o poder político a normalize e legitime, tornando a obra de arte aceitável para a esmagadora maioria do público. No limite, a obra de arte apenas se define quando consegue chegar a um público que esteja para lá da crítica e do diminuto círculo de iniciados.
Joana Vasconcelos percorreu todos estes estádios da normalização da arte. De uma nova artista que, desde o início, teve o respeito e o elogio da crítica e do meio, até à massificação da produção artística, começando pelo primeiro passo do processo – no seu atelier um conjunto de pessoas produz em série, à maneira da fábrica de Andy Warhol – até ao derradeiro: as suas obras são vistas pelo grande público e o poder político apadrinha-a, sendo criada uma identificação entre a subjectividade da obra e um “sentir nacional” também subjectivo, mas na aparência fundado em símbolos objectivos, como os galos de Barcelos, as saias nazarenas, o vidro verde das garrafas.
É compreensível que se gere uma resistência entre a obra de Vasconcelos e parte da intelectualidade distante do poder. Durante algum tempo, achei que o risco que ela corre – o de aproximação ao centro afastá-la da periferia que desde o início a legitimou – não compensava os méritos eventuais da obra. Mas a verdade é que o caminho que vai da margem ao mainstream não só é ilusório – toda a criação existe para chegar ao maior número de pessoas possível (dentro do público ideal que o artista visa) e mente quem afirma o contrário – como, no caso de Joana Vasconcelos, desde o início o espírito da consagração popular estava incorporado na obra, na sua essência.
As peças de Joana Vasconcelos caracterizam-se não só pela ironia com também pela apropriação de ícones da cultura popular entretanto tornados obsoletos e esvaziados de parte da sua carga de representatividade. O kitsch, à maneira de Jeff Koons, é simultaneamente matéria-prima e instrumento de trabalho. A pós-modernidade transformou o que antes era um conjunto de imagens exemplares da identidade nacional – por sua vez, estas imagens eram símbolos, imitações da verdadeira arte popular – em ícones de um fulgor nacional ultrapassado. Note-se que a carga simbólica destes objectos implica um uso apriorístico da ironia – os cães de loiça sobre os frigoríficos – no seu uso quotidiano; são tão irónicos os cães sobre os frigoríficos como os que são expostos por Joana Vasconcelos nos museus. As lições de Duchamp ainda são válidas, mas é também certo que o gesto que transporta o urinol para o museu não é bem o mesmo que o que leva o cão de louça para esse espaço. O carácter prático do primeiro não é equivalente à natureza lúdica do segundo. Ninguém encara um urinol ironicamente, a não ser que esteja num museu. O mesmo já não se pode dizer de um cão de loiça ou de um galo de Barcelos. O kitsch existe antes da instituição artística o legitimar enquanto tal.
De que modo podemos então olhar para a própria artista? Se ela, desde o início, procurou, através da ironia, questionar modelos convencionais e teorizar sobre o papel da mulher – a instalação com os tampões ou os sapatos gigantes, por exemplo – ou sobre a herança cultural do país, por que razão não poderá estar, no momento em que se institucionaliza, a confrontar a sua persona com quem legitima a sua obra? É difícil olhar para a fotografia recente da inauguração da exposição no Palácio de Ajuda sem interpretarmos ironicamente a figura de Joana Vasconcelos. As poses institucionais do secretário de Estado da Cultura, do primeiro-ministro e da primeira-dama contrastam com o vestido da artista. Esse vestido, criado intencionalmente para o acontecimento, evoca vários trajes tradicionais, desde o minhoto ao nazareno, e, na mesma medida em que contém diversos motivos referindo explicitamente as preocupações artísticas de Joana Vasconcelos, contextualiza a seriedade do momento. O vestido de Joana é como um fato de carnaval usado por uma criança. Contudo, quem aparece deslocado, no meio do festim kitsch de Joana Vasconcelos, são os membros da instituição legitimadora. Assumindo a ironia de ser apadrinhada pelo poder político, Joana Vasconcelos expõe ao ridículo esse poder e os seus representantes. É um gesto equivalente a tantas obras que recontextualizam os símbolos nacionais – o primeiro-ministro, o secretário de Estado da Cultura e a primeira-dama são os galos de Barcelos e os cães de loiça que a ocasião solene proporciona. Joana Vasconcelos, no processo de institucionalização da sua obra, não deixa de distanciar-se ironicamente de quem lhe atribui importância e poder. A obra exposta em Versalhes – o lugar do kitsch, por excelência -, as photo oportunities com políticos e o cacilheiro a caminho de Veneza não passam de performances, tão plenas de sentido artístico como tudo o que Joana Vasconcelos produziu até aqui. Quem cai no ridículo não é a artista, mas sim o poder político que, sem perceber - ou sem querer perceber - a obra que apadrinha, se coloca como mais uma figura no universo irónico criado por Joana Vasconcelos.