14/06/13

Notas para uma crise (3)

Como não acautelei a compra do livro de Herberto Helder, fiquei sem ele. Parece que a edição de 5000 exemplares foi comprada por especuladores e leitores de circunstância - mas isso não é o mais importante.
Dos poemas que tenho lido, nota-se essa transição de uma poética da transcendência para um regresso a uma imanência que se faz contra um mundo que mudou bastante nos últimos anos. Não será o "regresso ao real" de que falava Joaquim Manuel Magalhães - apesar de essa premissa se ler nas entrelinhas do depoimento de Manuel de Freitas e do texto António Guerreiro no Ipsilon de hoje - mas uma aproximação a um "tempo final" que não só se manifesta pelas circunstâncias da biografia do poeta, mas também através da fala de uma época consumida por ecos de um fim.
Esse fim não é o "fim da História" profetizado há mais de duas décadas, mas será antes o fim do Ocidente, tal como o conhecemos. Vivemos "tempos interessantes" desde pelo menos a crise de 2008 - e que se pressentiam depois do 11 de Setembro -, quando a finalidade última da política e dos políticos deixou de ser o "serviço do povo" para passar a ser uma qualquer vassalagem a poderes mais ou menos invisíveis ou a uma ideia que se afirma além da política (mas não é, porque tudo é política) e se alimenta de números, previsões e modelos económicos
É claro que a urgência passa ao lado da maior parte dos países da Europa. Esta restrição abrupta de parte da nossa vontade não se fará sentir nos países "não-intervencionadas". A destruição sistemática de um modo de vida fundado na solidariedade entre povos e entre classes - que nunca chegaram a ser verdadeiramente desmanteladas - é como uma onda selectiva que apenas varre os povos do Sul - que sejam a Grécia, berço da civilização ocidental, e Portugal, porto de partida da globalização mundial, é significativo. Lá fora, fora de nós e do sufoco que nos oprime, o mundo continua a rodar, sem percalços e forças de maior. 
A forma como está a ser construída a União Europeia trouxe-nos a um ponto em que a legitimação democrática é comprometida a cada momento. O voto, expressão última da vontade do povo, deixou de criar a ilusão de controlo de que as democracias representativas se servem para resguardar a sua existência. A descrença na política e nos políticos, sintoma maior da doença da democracia que fere a União Europeia, não tem sido convenientemente tratada por quem detém o poder. E este desdém pelo "sentimento do povo" não é inócuo ou sinal de uma displicência; numa União Europeia em que a maior parte dos cargos de decisão são ocupados por pessoas não-eleitas, é apenas natural que não exista uma verdadeira preocupação com este fosso cada vez mais aprofundado entre as decisões políticas e as pessoas que são afectadas por elas. É perfeitamente indiferente a um burocrata de Bruxelas que uma decisão sua envolva milhões de pessoas. E neste ponto o burocrata não está assim tão distante dos "burocratas" do Holocausto, retratados por Hannah Arendt na sua reportagem ao julgamento de Eichmann em Jerusálem. O burocrata do Holocausto limitava-se a cumprir ordens e a fazer o que lhe pedia. Um burocrata de Bruxelas segue a cartilha económica dominante e cumpre o decidido à partida. O burocrata da troika tem "um programa" para implementar e aterra em Lisboa para averiguar se esse programa é seguido à risca. O burocrata do Governo olha para os números e comove-se com a beleza intrínseca do "ajustamento", da mesma forma que o burocrata do Holocausto se comoveria com a beleza de uma tarefa bem cumprida. Não existe compromisso com as consequências da beleza, mas sim uma espécie de frieza sociopata possibilitada pela distância entre eleitos e eleitores - e por isso o burocrata do Governo se orgulha de "não ter sido eleito coisíssima nenhuma". 
O mal estar de um tempo. O fim da democracia tal como a conhecemos. O progressivo abandono das pessoas e das suas vidas por parte de quem decide o destino delas. E essa espécie de sufoco diário de quem vive sujeito a poderes que não controla e a decisões que podem mudar o curso de uma existência. A ilusão de que o voto poderia mudar este curso definido, ou a ilusão de que o progresso não teria fim, terminou.  Que exista um poeta que, no fulgor dos seus oitenta anos, tenha decido tratar - no sentido de cuidar, também - estes problemas, criando uma identificação entre o sujeito poético e o sujeito civil, abandonando o manto do demiurgo (como Manuel de Freitas o qualifica) e assumindo a precariedade de um corpo e de um fim, simultaneamente afirmando a potência de quem sente e vive no mundo, e com ele pensa  e combate, é o milagre possível. Nada vai mudar, certo. Mas sim, fica a poesia.

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