03/12/13

Diário de Dezembro (1)

O frio não é tanto que não se consiga suportar. Queixar-me dele e pensar no Norte, nos países dos prolongados invernos e das noites que não chegam a ceder ao dia, é um sintoma de fraqueza. Viver acima dos trópicos – os de Michaux e os de Claude Lévi-Strauss, onde a doença acampa à porta de cada coisa e vive na vizinhança de uma beleza transcendente – e abaixo do círculo imaginário da neve – tem tanto de conforto como de delicada monotonia. Até que ponto a ausência de filósofos e o excesso de poetas não será consequência de um incidente geográfico? Vivemos a sul, mas não o suficiente para que tivéssemos inventado o samba – simplesmente fomos tão longe levar a melancolia que criou a bossanova e a morna. Não somos capazes da alegria, mas não somos tristes a ponto dos nossos criadores, ao longo dos séculos, se terem fechado dentro de casa a estabelecer modelos filosóficos. Fernando Pessoa, encerrado no seu quarto de funcionário, abria uma janela e deixava a luz entrar, apagando os vestígios de angústia e eliminado qualquer possibilidade de impor uma ordem aos seus infinitos papéis, às suas múltiplas identidades. O estilo fragmentado do “Livro do Desassossego” é a prova de que a filosofia falha, decompõe-se, e esboroa-se, quando manuseada pelo gesto intermitente e incerto de um qualquer pensador português. O trabalho do filósofo, rigoroso, aborrecido, dividindo cada ideia na ideia de si mesma até ao ínfimo pormenor, precisa de um tempo e de um espaço concentrados de tal modo que desapareçam, e no seu lugar apenas as palavras dando corpo às ideias e aos esquemas da mente sobrevivem. O poeta, mesmo quando metafísico, como Bernardo Soares, perde-se e afasta-se da ideia inicial, diverge, viaja dentro de si próprio sem mapa nem bússola. Escrever é sempre um acto de partida – de um lugar preso de incerteza para o outro ainda mais incerto – e tem uma potência em si que o filósofo quase sempre despreza - o seu material de trabalho são ideias, as palavras apenas um meio de as transmitir, uma ferramenta. Para o poeta as palavras são ferramenta mas são também “metal fundido”, pronto a ser moldado, transformado noutra coisa distante da sua função original – a língua na qual elas existem.

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