O ritmo estabelecido pelo correr dos dias, o ritmo circadiano – a manhã, a tarde, a noite e o adormecer – tem tanto de biológico como de cultural.
Li recentemente uma notícia sobre uma descoberta científica (histórica?), revelando que o horário habitual para o período do sono – as sagradas oito horas diárias que os médicos aconselham e a que os poetas e os loucos procuram escapar – era consequência de uma invenção humana. A progressiva introdução da luz artificial nos hábitos humanos, ocorrida sobretudo a partir do século XVI, permitiu que a vigília se prolongasse muito para além do pôr-do-sol. Esta mudança – como quase todas as que o progresso tecnológico traz – ocorreu primeiro nas camadas mais ricas da população. A nobreza e a burguesia podiam dar-se ao luxo do convívio social noite fora. Os mais pobres, nem por isso: mesmo com luz artificial, a obrigação do trabalho cedo, raiando o sol, continuaria a não permitir o usufruto dos avanços científicos.
E como se regulava o ciclo dos dias, até essa época? As pessoas deitavam-se assim que a noite caía, após a última refeição do dia, e espantosamente (aos nossos olhos) acordavam a meio da noite e conversavam durante uma ou duas horas, comiam, e voltavam a adormecer até ao amanhecer. Estaria assim o ciclo circadiano humano mais próximo do de outros animais; repartíamos o sono (e os sonhos) ao longo das vinte e quatro horas estipuladas. Segundo a pesquisa feita, ainda agora conservamos resquícios dessa prática natural. Quem nunca acordou a meio da noite e sentiu vontade de assaltar o frigorífico?
Vivemos portanto os nossos dias lutando contra a natureza, contra aquilo que nos fez humanos. Mas o que nos fez humanos foi tudo o que conquistámos ao que a Natureza nos impôs. Não precisamos de viver de acordo com os ritmos naturais, inventámos os instrumentos necessários a contorná-los, sobrepô-los, esquecê-los. Precisamos da noite e da luz artificial para prolongar o nosso tempo de lazer. O dia para o trabalho, para a ocupação monótona do corpo; a noite para a leitura, para a conversa, para estarmos uns com os outros – a noite para a libertação completa do espírito.
Distanciarmo-nos tanto do que em nós é animal, instintivo, poderá ter um preço. É à noite que o medo espreita. Se quando vivíamos nas cavernas esse medo era palpável e usava o rosto dos animais que nos caçavam, agora tornou-se difuso, e em vez de ser uma presença, é esquivo, misterioso: uma ausência. Na noite, entregamos o espírito ao que não pode ser descoberto. Não temos feras que nos matam, ameaças claras, e no seu lugar há como que um círculo invisível ao redor do qual traçamos infinitas investidas, voos de reconhecimento, que nunca chegam a determinar de forma exacta as coordenadas espaciais que procuramos. Rondar a verdade antes de adormecermos é um inútil exercício, votado à derrota. E contudo a ele voltamos diariamente, ou então esforçamo-nos por não voltar, tentando enganar o que não poderá ser enganado. Quando vivíamos no meio de feras, o mundo era mais certo.
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