17/09/13

Notas para uma crise (7)

O rapaz que agora toma conta do país afirmou em tempos - numa entrevista dada quando ainda era apenas um simples candidato a líder do maior partido da oposição - que cedo se dedicara ao ensaio, tendo lido Jean-Paul Sartre na adolescência, nomeadamente um livro intitulado "Fenomenologia do ser". Claro que vários ilustres membros da nossa intelligentsia lhe caíram em cima, fosse por despeito fosse porque simplesmente... esse livro não existe. Não existe no sentido material e concreto da coisa - Sartre nunca tinha escrito obra, ou ensaio ou nota de diário que levasse esse nome. Os jornalistas que depois pegaram na peça tentaram compôr a coisa à jovem esperança da política portuguesa, sugerindo que ele se poderia estar a referir a O Ser e o Nada e ao subtítulo deste: "ensaios de ontologia fenomenológica". Todavia, o episódio não se livrou de ficar ao mesmo nível dos concertos para violino de Chopin apreciados por um antigo presidente de um clube de futebol. Mas a verdade é que esse é o menor dos seus pecados - a ignorância pusilânime de um imbecil; tudo o que tem feito desde que se tornou primeiro-ministro é uma nódoa que nem o mais bem intencionado biógrafo conseguirá apagar. 
Os políticos medíocres e os escritores com aspirações ao respeito do meio caem muito nestas armadilhas montadas pelos jornalistas - esses sacanas sem lei. Há uma rapariga, Margarida Rebelo Pinto, que é especialmente dotada a citar autores e livros e frases. A mim, sinceramente, desconserta-me, porque nem tem de todo mau gosto. Ou então é esperta o suficiente para saber quais os nomes de que deve falar, quais os grandes escritores que fica bem dizer numa entrevista. Certo que Rebelo Pinto sofre a bom sofrer. A cada entrevista que dá, sentimos um rancor por escrever a tal literatura light. Colada com cuspo na testa, a marca nunca mais sairá. Não é que não seja justo - se a literatura light é o lúmpen da literatura, que outro selo de qualidade lhe deveria estar apenso? Duas coisas são certas: mesmo que um dia Rebelo Pinto escreva os "Cem Anos de Solidão" do seu contentamento, não será promovida a esse tal meio que a execra; e nunca Rebelo Pinto conseguirá escrever os "Cem Anos de Solidão" do seu contentamento. 
De cada vez que, por uma razão ou outra, leio essa história do político, lembro-me do Jean-Sol Partre, o filósofo que Boris Vian criou para A Espuma dos Dias. Vivíamos tempos de risco e de polémica. Vian não se importou de parodiar aquele que seria, já à altura, um dos mais importantes intelectuais e escritores franceses. Talvez não fosse ainda a instituição que depois se tornaria, mas seria digno do respeito de um recém-chegado como Boris Vian, sobretudo porque acabaria por publicar excertos do livro de Vian na revista que dirigia com Simone de Beauvoir, Temps Modernes.
Eram outros tempos. Estes, infelizmente, são de chumbo. Quando a apatia toma conta de tudo, até os intelectuais desaparecem. Tirando um ou outro fogacho de figuras isoladas, nada se passa. No outro dia, corria pelo Facebook um texto de Natália Correia, escrito em 1992, sobre o futuro do país. Quase tudo o que está escrito naquele texto se concretizou. E em profunda abulia vamos sofrendo este apagamento da cidadania. No mesmo dia em que li esse texto, um ministro da educação vinha para a televisão mentir sem qualquer pudor. Com a educação pública a ser destruída, por onde andam os intelectuais - escritores, músicos, artistas - que dela beneficiaram? Não escrevem manifestos, não promovem abaixo-assinados? Não reclamam, não dizem nada, calam-se? Temos políticos a governar contra os interesses do povo, e quase ninguém se levanta. Os intelectuais, silenciosos - com uma ou outra honrosa excepção. Enquanto alguém como o rapaz que em tempos leu um livro que nunca existiu - escrito por Sartre - vai brincando com o que não domina, desistimos. 

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