01/11/13

Janus

O meu primeiro morto foi o meu avô. Muitos anos depois, mais velho, uma rapariga dizia-me, em tom irónico (como pôde?), que nos tornamos adultos quando a primeira morte nos apanha, e a partir daí nada será igual. Muitos anos depois, percebi que esta ideia, sendo um lugar-comum a evitar, é mais uma daquelas coisas que pertencem ao património humano, algo que herdamos e que se transmite culturalmente, ou talvez esteja inscrito nos genes - a sensação de perda.
Rapidamente passamos dessa fase de ilusão para a adolescência. Quem não passa por esse primeiro momento acaba por lá chegar. Dizem os cientistas que a consciência de um "eu" começa a desenvolver-se - ou a evidenciar-se - desde cedo, nos primeiros meses de vida. Mas desconfio de que esse "eu" apenas se torna pleno, verdadeiramente humano, quando aprendemos que um dia vai desaparecer, e com ele o mundo. A idade da razão é sobretudo a idade do medo. Vivemos todos os dias no mundo a caminho de um fim. E saber que ele poderá continuar, matéria persistente depois da partida, não atenua o medo nem diminui o sentimento de urgência. 
A psicanálise encontrou uma fórmula para descrever esta aceitação do que perdemos, do que vamos perder: a negação. No fundo do espírito, espreita a verdade, a que viramos a cara. Essa verdade é como Janus, o deus latino com dois rostos, um virado para o futuro, outro para o passado. Nós vivemos de rosto voltado para o passado - a memória - existindo no presente, e forçamo-nos a esquecer a máscara que olha para o futuro. Recusamos a verdade que Janus nos oferece, o futuro que está atrás, do outro lado. Somos cegos por vontade própria, um esforço que nos permite a sobrevivência - a psicanálise também diz que quando esta barreira se rompe, e desaparece a negação, caímos num abismo mais profundo do que a própria morte. Prefiro a palavra melancolia para descrever este estado, em detrimento da mais comum depressão. 
Durante alguns dias depois do funeral, fomos obrigados ao silêncio em casa. Não podíamos ligar a televisão, mostrar alegria, e as brincadeiras, apesar de autorizadas, tinham de ser discretas. Os rituais que envolvem o desaparecimento oscilam entre a verdadeira tristeza - a perda é real - e a encenação. Simulamos a tristeza para que o morto deixe em nós uma marca mais profunda. Quando a tristeza é demasiado real, e se entranha, torna-se patológica, e não conseguimos regressar ao mundo. O luto tem de ser feito, temos de tornar simbólico o que é real, para que a verdadeira realidade - a nossa vida, sozinhos, isolados de quem nos rodeia - nos volte a abraçar e voltemos a poder emergir no seu tecido. 
A questão a que todos voltamos: será melhor saber ou não saber? "No tempo em que festejavam o dia dos meus anos/Eu era feliz e ninguém estava morto". Fernando Pessoa tem uma resposta.

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