20/06/13

Notas para uma crise (5)

"O país trabalha em ordem, vós os dizeis e os políticos vossos servos muares. O país trabalha em paz, vós mo dizeis desde a cabeça do poder até à última prostituta e limpa-retretes. Também as formigas trabalham porque a natureza as fez estúpidas para isso. Também a besta anda à nora e com os olhos vendados para não ver que anda e ter acaso uma hipótese negativa na sua capacidade de besta. Também o burro puxa à carroça e leva pancada se faz greve de zelo, porque não calcula que é ele o sujeito desse puxar. Assim não é possível chegar a uma formiga e dizer-lhe pára um pouco e pergunta-te que diabo ando eu aqui a fazer?"

Vergilio Ferreira entra em território desconhecido quando os seus narradores - ou alguma personagem - começam a falar de política, explicita ou alegoricamente. É uma marca que se repete em vários dos seus romances - e se em Portugal existissem editores à maneira anglo-saxónica, essas longas diatribes, entre o moralismo e a indignação bacoca, seriam cortadas sem apelo nem agravo. Isto sou eu quem diz. Eu, que em Saramago também não gosto dos narradores intrusivos e que têm opinião sobre questões de política, os narradores sentenciosos e demasiado próximos da própria personagem saramaguiana. Sei que pensando isto nego parte da arte da ficção tal como Saramago a entendia; várias vezes ele afirmou que o narrador se confundia com o autor, ou pior, que o narrador (nas suas narrativas na terceira pessoa) nunca deixa de ser o autor. Mas o que mais me fascina em Saramago é o domínio do tempo e do ritmo das histórias contadas e a destreza linguística. E os defeitos que lhe encontro não esvaziam este fascínio.
Mas voltando a Vergílio. Será este talvez o terceiro verão em que regresso a ele. Agora, Em Nome da Terra, do qual retirei a passagem acima. A política entra na minha vida sem pedir licença, e mesmo quando  me afasto ela me persegue, nem que seja através da voz da personagem de um romance. Tudo é política, ainda hoje eu dizia - os aspectos mais banais do nosso quotidiano dependem de decisões tomadas por outros, decisões que não conseguimos controlar. Não sei se somos formigas ou bestas, "com os olhos vendados para não ver", mas sei que facilmente caímos nessa dócil escravatura que nos obriga a percorrer o carreiro das formigas de Zeca Afonso. Vivemos um tempo em que se é cada vez mais difícil seguir em sentido contrário. Quando a herança de Zeca (e de Saramago, e até de Vergílio Ferreira) é assim traída, o que nos resta? 

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