06/06/06

O fim do mundo

Cumpre-se hoje a profecia anunciada no Livro do Apocalipse, capítulo 13, versículo 18: "Aqui é preciso entender: quem é esperto, calcule o número da Besta; é um número de homem; o número é seiscentos e sessenta e seis." O que de algum modo pode dificultar os planos que tinha para o dia que agora se julga começar mas que verdadeiramente apenas se inicia daqui a umas horas, depois de um sono reparador e, espero, vazio de sonhos. Pois é, lamento mas chegámos ao último dia do mundo. Último dia do mundo. Soa bem, grandioso. E, repare-se na discreta figura de estilo casando mundo com dia. O mundo não tem dias. Pensando bem, o que tem dias? O tempo? Os dias são o próprio tempo. Ponto. Tempo que de mansinho se vai escoando sem darmos por ele. Daqui a pouco, não sei a que minuto, a que segundo. Não me posso esquecer de regar as gardénias, abrigá-las dos ataques furibundos das mariposas que anunciam o fim do mundo. O calor, a moléstia.
No outro dia, descobri o meu bonsai morto. Coberto por uma pestilência pulurenta e castanha, da base aos capilares mais finos. Procurei com minúcia a origem da doença, encontrando ao fim de alguns momentos, num dos ramos que ascendem do tronco, um minúsculo ponto negro coberto de uma pelagem cizenta quase até à transparência. Suspirei, mas não por desespero ou abdicação. Não julguem que tomei o desgraçado fim do vegetal como um sinal daquilo que se avizinha. Não ligo a estas coisas, e ninguém me poderá acusar de excessos metafísicos ou exageros transcendentais, cultivo a modéstia de opinião com o mesmo cuidado que usei durante os anos em que o bonsai se manteve vicejante. Assim aconteceu, portanto. Depois de retirar com cuidado a árvore do vaso, deitei-a sem arrependimentos no caixote de lixo e passei por água o recipiente para futuras utilizações. Lembro-me que depois me sentei pensando nas horas lentas que passei cuidando da minha companheira dos dias vazios, e esta foi a única cedência que fiz à melancolia.
Amanhã, que é hoje já, sairei de casa satisfeito e irei comprar o jornal, como é hábito, ao quiosque do sr. Fernando, e depois entrarei assobiando no café do sr. Martinho e pedirei um galão morno e claro, tão claro e quente como a manhã que transpira lá fora. Como já referi, não sei até que ponto o fim do mundo irá dificultar os planos que tinha para mais logo, pelo facto evidente de não estar determinado o segundo exacto em que acontecerá. O que está previsto é a ordem exacta dos acontecimentos: agora, julgamos ser, de seguida, deixamos de o poder julgar. Não vejo a necessidade de chorar o facto de esta simples sucessão de estados se poder estender a todos os habitantes deste mundo. Será talvez mais simples aceitar a situação, pelo menos para mim foi. Choro mais o mundo sem mim do que eu sem o mundo ou o mundo desaparecido de todo. O que é uma fatalidade inultrapassável é eu já não estar aqui e os outros continuarem. Mas não adianta gastarmos o pensamento em possibilidades improváveis, concentremo-nos nas realidades mais imediatas da existência. Beberei o café, pagarei ao sr. Martinho e irei a casa do sr. Alberto, alfaiate que conheço há longos anos e que consegue transformar qualquer banal pedaço de tecido numa obra-prima. Prometeu-me que o fato que poderia vestir por ocasião da festa em minha homenagem estaria pronto amanhã, por volta das onze horas. E sei que cumprirá, homem rigoroso e sério, apesar do humor que exibe de forma manietada.
Se por essa altura o mundo ainda persistir, encaminharei os meus passos por uma rua apertada perto do rio, onde se situa o restaurante onde combinei almoçar com o sr. Francisco, para tratarmos de pormenores relativos à anulação do meu testamento. Apesar das inquietações do meu advogado, decidi avançar com a decisão tomada; não sei que sentido fará um testamento depois do fim do mundo; parece-me, de resto, uma extraordinária contradição de termos. A quem deixar as minhas posses, se ninguém estará cá para usufruir delas? Deste modo, quando o jovem escriturário Francisco chegar com a necessária papelada, espero que traga com ele a clareza de espírito suficiente para se abster de quaisquer comentários ou inquirições redundantes. O que me parece muito provável; Francisco já mostrou, apesar da idade, possuir um espírito capaz de contrariar uma personalidade nervosa original que a juventude ainda não lhe permite disfarçar na totalidade. Os seus olhos fundos, marcados por uma sombra densa que condensa todas as limalhas de uma alma que adivinho brilhante, conseguem transmitir na perfeição a possibilidade de um futuro radioso. O que me entristece um pouco, sabendo como sei que o dia depois de amanhã será apenas um vislumbre, mais ténue que um sonho sonhado por um louco. Quase que desejo que o dia não acabe antes de me sentar com Francisco a um canto da apertada sala do restaurante, depois de apertarmos as mãos num constragimento breve, e ele retirar da pasta os documentos a discutir durante a refeição. Queria poder resistir a este sentimentalismo macio, mas não consigo. A verdade é que aprecio a eloquência do jovem, e uma última agradável conversa seria o culminar justo para uma existência marcada pelas palavras. Um capricho razoável e prazenteiro, antes que o dia acabe. Natural.

[SL]

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